Tem
dado que falar e levado a que muita tinta venha correndo nas pantalhas da nossa
praça o caso das duas meninas residentes em São Paulo, no Brasil, que sofrem de
atrofia
muscular espinal e que, no país de residência, estavam a ser
tratadas com um medicamento disponível e, até então, considerado aplicável à
doença e cuja próxima toma ocorreria a 17 de março de 2020.
Entretanto,
em fins de 2019, a família teve conhecimento da existência, em Portugal, do Zolgensma, tratamento inovador, aprovado e em uso nos
Estados Unidos da América (EUA), desde maio de 2019, e diligenciou no sentido
de as crianças poderem ser tratadas com esse medicamento no Hospital de Santa
Maria, estabelecimento integrado no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa
Norte, em Portugal. Porém, como se trata de crianças lusodescendentes
naturalizadas no Brasil e residentes nesse país, precisavam de adquirir a
nacionalidade portuguesa ou de residir em Portugal, para terem direito ao atendimento
em Portugal.
É perfeitamente legal adquirir a nacionalidade portuguesa,
residir em Portugal, ser tratado em Portugal com um medicamento do valor de
cerca de dois milhões de euros e ser disponibilizado a crianças cadeiras de
rodas elétricas e cadeiras de rodas manuais (Para quê seis: duas mais e quatro elétricas?
Estas quatro nem foram levantadas.). Tudo isso terá acontecido, a coberto da
legalidade, em favor de cada uma das gémeas.
Sendo assim, parece estranho que se fale de alegada especial intervenção
do Presidente da República (PR), do filho e da nora (sendo que esta era conhecida
da mãe das crianças em causa).
Só não o é, porque adquirir a nacionalidade portuguesa não é
processo tão fácil e rápido para todas as pessoas: não residiam em Portugal,
não era necessário agrupar a família, não havia iminência de contrato de trabalho
para qualquer dos progenitores. Terá alguém, com influência, pressionado o
consulado português em São Paulo para o apressamento do processo? A mãe das
gémeas, num primeiro momento, apontou a nora do PR, o que veio a desmentir.
Caberá a responsabilidade política à tutela ao tempo, designadamente ao
ministro dos Negócios Estrangeiros e ou ao secretário de Estado das
Comunidades?
O certo é que a primeira consulta, com o respetivo pai, no
Hospital de Santa Maria, ainda em dezembro de 2019, ocorreu, tendo as meninas
já a dupla nacionalidade (brasileira e portuguesa). Consta que o Infarmed
autorizou a utilização do medicamento em tempo recorde e que, segundo revela o Expresso online, a 6 de dezembro do
corrente ano, “a informação registada no processo clínico era de que a família
se tinha mudado para Portugal para realizar a medicação com o Zolgensma” e que
“o tratamento inovador
foi então aprovado numa reunião com a direção da Neuropediatria e com e o
diretor clínico do hospital”. De acordo com o processo, as meninas foram
observadas em consulta no Hospital de Santa Maria, a 2 de janeiro de 2020, na
sequência de uma primeira consulta feita com o pai em dezembro anterior. E os
médicos escreveram, na história clínica das crianças, que nasceram e residiam
em São Paulo, mas já tinham dupla nacionalidade.
As questões que se foram levantando prendiam-se com os altos
custos do medicamento e com a dificuldade em atender todos os cidadãos no
Serviço Nacional de Saúde (SNS), nomeadamente crianças portuguesas com o mesmo
problema, deixando-se entrever a hipótese de influência política, o que o
advogado dos pais das crianças desmente, garantindo que as crianças até
esperaram demasiado tempo para serem atendidas e que o tratamento só ocorreu em
junho. Além disso, nenhum dos apontados no Brasil conhece o PR, o filho ou a
nora.
Alegadamente, terá existido uma carta de médicos do hospital,
que terá desaparecido, a contestar o tratamento às gémeas brasileiras, pela
incerteza da compatibilidade do novo medicamento com o que fora ministrado no
Brasil. Todavia, recentemente, alguém veio a terreiro esclarecer que a carta
não visava tanto a não ministração do medicamento, mas a chamada de atenção
para o contexto das contas hospitalares.
Ao ser abordado sobre uma sua eventual intervenção no caso, o
PR, num primeiro momento, declarou não se lembrar de qualquer intervenção no
caso e que, se tivesse intervindo, obviamente se lembraria. Ora, se não se
lembra, é porque não interveio. E, o ver-se incomodado com as insistências de
alguma comunicação social, prometeu, não combatendo a liberdade de expressão,
ir a tribunal defender a honra do Presidente da República.
Não obstante, a 4 de dezembro, inesperadamente, convocou os
jornalistas para o Palácio de Belém, a quem revelou ter mandado examinar a
linha do tempo nos registos da Presidência da República e ressalta um e-mail
que o filho lhe enviou, em dezembro de 2019, a lamentar que a família das
crianças não obtivera resposta nem do Hospital Dona Estefânia, nem do Hospital
de Santa Maria. Face ao dito e-mail, o PR deu indicações ao chefe da Casa Civil
para que a assessora para os Assuntos Sociais tentasse saber o que se passava.
Depois, na posse da informação adequada, o chefe da Casa Civil enviou, a seu
pedido, toda a documentação disponível para o chefe de gabinete do
primeiro-ministro (PM), como é usual nos muitíssimos casos que são presentes ao
chefe de Estado, acabando aí a intervenção da Presidência da República. É
natural que não se recordasse, pois aquele foi um período agitado de posse do
governo e tinha feito uma operação ao coração.
Questionado sobre a alegada intervenção do filho, respondeu
que ninguém tem autoridade, seja filho ou quem for, para falar em nome do presidente;
e, se alguém interveio indevidamente, tem de assumir essa responsabilidade. E,
quanto a ter condições para continuar a exercer o cargo de presidente, diz que
não há qualquer dúvida, reiterando o que dissera em tempo, ou seja, uma coisa é
a família e outra é o presidente e quem foi eleito foi ele, não a família.
Porém, as coisas não param no PR, agora equiparado ao antigo
ministro Pedro Nuno Santos, que também não se lembrava de ter, alguma vez,
autorizado a indemnização de 500 mil euros a Alexandra Reis, mas, passado um
mês, ao analisar a linha do tempo no WhatsApp, viu que a autorizara. Só que o
ministro já se tinha demitido, mas o PR não tem de renunciar.
Também a ministra da Saúde ao tempo veio a terreiro atestar a
legalidade do tratamento do hospital às gémeas, que não houve qualquer
intervenção política para a decisão clínica, que não deu qualquer indicação
nesse sentido e que nunca falara com o PR sobre o caso.
Apontado o alegado facto de que a primeira consulta fora
marcada por um secretário de Estado da Saúde, Jamila Madeira veio declarar que
não se lembra de nenhuma sua intervenção relativa a este caso. E Lacerda
Santos, que também não se lembra, diz que é impensável uma intervenção política
condicionar a gestão hospitalar ou uma decisão médica. Não obstante, pediu uma
relação do processo para ver se houve falha.
A 6 de dezembro, o PM disse, no Porto, que o chefe de gabinete
recebera um conjunto de documentos oriundos da Casa Civil do PR e, como é
usual, foram remetidos para os respetivos ministérios, designadamente o Ministério
da Saúde e a Secretaria de Estado das Comunidades.
Resta saber se houve pressões, de quem e junto de quem, tal
como seria bom saber se e como alguém resistiu ou se todos foram na onda do
temor reverencial, até porque estava tudo dentro da legalidade. As entidades
que têm competência para fiscalizar as questões da saúde estão no terreno.
Aguardam-se as conclusões.
No entanto, é estranho que o Ministério Público (MP) tenha
avançado com um inquérito contra desconhecidos. Não entendo. As suspeitas
recaem administrativamente sobre uma entidade com rosto, o então conselho de
administração do centro hospitalar em causa, que tem o direito e devia ter a
oportunidade de se defender, bem como o ensejo de apontar eventuais pressões.
Garante-se que nem o PR, nem o PM, nem a ministra, nem
qualquer secretário de Estado marcaram qualquer consulta. Isso cabe ao médico,
à equipa, ao funcionário ou à gestão de consultas. Contudo, pode haver o
“pedido” de alguém, que, não necessariamente, uma unidade de saúde familiar ou
um serviço de urgência.
***
Nem tudo o que está previsto num diploma legal é legítimo.
Antes da lei, está a ética e a lei fundamental, que mandam aplicar a todos as
leis nas mesmas circunstâncias e segundo as necessidades de cada um. Assim, Paulo Morais, presidente da Transparência
e Integridade, Ação Cívica (TIAC), defende que a atuação do PR no caso das gémeas
luso-brasileiras que receberam tratamento para a atrofia muscular espinal no
SNS, configura o que a Transparency International (TI) define por corrupção.
Recordando que a TI apresenta a corrupção como “o abuso de poder delegado
para benefício privado”, o professor na Universidade Portucalense, que foi
candidato presidencial em 2016, acusa o PR de “destruir qualquer funcionamento
de um Estado normal”, ao “meter uma cunha” pelas crianças residentes no Brasil
que receberam tratamento para a doença neurodegenerativa em 2020.
“Não compete ao Presidente da República tratar de casos individuais”, vinca,
referindo-se ao facto, assumido por Marcelo Rebelo de Sousa, de ter
reencaminhado para a Casa Civil da Presidência da República e para a assessora
para os Assuntos Sociais um e-mail do filho, onde se dava conta de que os pais
das gémeas luso-brasileiras se queixavam de não terem obtido resposta do
Hospital de Santa Maria, ao solicitarem o tratamento com o medicamento
Zolgensma, um dos mais caros do Mundo. E o Palácio de Belém reencaminhou
documentação sobre a situação clínica das crianças para os chefes de gabinete
do primeiro-ministro e do secretário de Estado das Comunidades.
Paulo Morais defende, em declarações ao Diário
de Notícias (DN), a 6 de
dezembro, que qualquer “pedido de informação sobre doentes, alunos ou
contribuintes individuais” tem o condão de “transformar a Presidência da
República num alfobre de cunhas institucionalizado”.
Para o presidente da TIAC, o caso das gémeas luso-brasileiras pode
representar um ponto de viragem no segundo e último mandato de Marcelo Rebelo
de Sousa. “O Presidente dos afetos acabou”, sentencia o professor, antecipando
que o chefe de Estado possa vir a ser criticado na rua por quem acredite que “andou
a tratar dos interesses dos amigos e dos familiares”, uma “atitude nada
republicana”, que acaba por contribuir para uma “degradação da política”, quando a confiança dos
Portugueses nas instituições “está abaixo de qualquer nível”.
Apesar de
tudo, Paulo Morais sustenta que as situações que envolvem o PR e o PM “são
diferentes”. No caso do PM, há a detenção do chefe de gabinete por suspeitas de
envolvimento num caso de corrupção: “Se se verificar que houve efetivamente
cunha e que quem meteu a cunha foi, por exemplo, o chefe da casa civil ou um
assessor, o Presidente terá de fazer o mesmo que fez António Costa e apresentar
a demissão.” Com efeito, “ele é responsável por tudo o que faz o chefe da casa civil. São pessoas
que falam em nome dele. Uma coisa é uma secretária ou um adjunto qualquer.
Outra coisa é um chefe de gabinete”, lembra o especialista,
vincando que, “primeiro, há que ver se houve cunha ou não” e, se se confirmar
que houve “e tiver sido de alguém próximo do presidente, ele terá de tirar as
suas ilações”.
Luís de
Sousa, investigador principal do Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa na área do combate à corrupção, também lembra que o PR “já veio
negar” qualquer envolvimento no caso das gémeas e que não há sobre ele qualquer
suspeita concreta ou qualquer investigação. Por isso, Marcelo Rebelo de Sousa
“tem de continuar a fazer aquilo que são as suas funções, independentemente de o
contexto lhe ser ou não favorável”, assim como o PM não pode parar, apesar de
ter apresentado a demissão. “Se houver expediente que tenha de ser resolvido,
ele tem de o resolver. As instituições não podem deixar de exercer as suas
funções”, considera.
***
No entanto,
descansemos. O Parlamento vai ser dissolvido, haverá eleições, novo Parlamento,
novo governo e novas preocupações. E as gémeas serão esquecidas!
2023.12.06 – Louro de Carvalho
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