A Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou, a 12 de
dezembro, com o apoio esmagador de 153 países, uma resolução não vinculativa
que exige um cessar-fogo humanitário imediato em Gaza, depois de o Conselho de
Segurança ter falhado em aprovar a mesma exigência, com o veto dos Estados
Unidos da América (EUA). O resultado excedeu o apoio à condenação da invasão
russa da Ucrânia que, na melhor das votações na Assembleia Geral, obteve 143
votos, resultado que os EUA consideraram, na ocasião, uma prova do isolamento
da Rússia.
O projeto de resolução sobre Gaza, apresentado pelo Egito e copatrocinado
por cerca de 80 Estados-membros da ONU, incluindo Portugal, obteve 153 votos a
favor, 10 contra e 23 abstenções, no quadro dos 193 Estados-membros. Votaram
contra o texto países como Israel, os EUA ou a Áustria; e, entre os países que
se abstiveram, estão a Ucrânia, a Itália, o Reino Unido, a Argentina, a Alemanha
ou Cabo Verde.
A resolução responde a uma exigência sem precedentes do secretário-geral da
ONU, António Guterres, que teme um “colapso total da ordem pública” no
território palestiniano.
O texto aprovado manifesta preocupação com a “situação humanitária
catastrófica na Faixa de Gaza”, “exige um cessar-fogo humanitário imediato” e
apela à proteção dos civis, ao acesso humanitário e à libertação “imediata e
incondicional” de todos os reféns.
Riyad Mansour, embaixador palestiniano junto da ONU, saudando a “mensagem
poderosa” enviada pela Assembleia Geral, defendeu que se trata de um “dia
histórico”.
“É nosso dever coletivo continuar neste caminho até que possamos ver o fim
desta agressão, desta guerra contra o nosso povo. [...] É nosso dever coletivo salvar
vidas”, disse, vincando: “Não iremos descansar até vermos Israel a cumprir esta
exigência da Assembleia Geral.”
“As crianças palestinianas são tão importantes como qualquer outra criança
ao redor do Mundo. Não deveria haver diferenciação entre crianças. As crianças
palestinianas são preciosas para nós, precisamos de salvá-las, precisamos de
protegê-las e permitir-lhes sonhar os seus sonhos e reconstruir o Estado da
Palestina e viver em liberdade e em dignidade”, salientou o embaixador.
Ao invés das resoluções do Conselho de Segurança, as da Assembleia Geral
não são juridicamente vinculativas, mas, como disse, no dia 11, o porta-voz da
ONU, Stepháne Dujarric, as mensagens da assembleia “são muito importantes” e
refletem a opinião da comunidade internacional.
Esta votação reflete o crescente isolamento dos EUA e de Israel, que se
recusam a aderir às exigências de um cessar-fogo em Gaza. “O tamanho desta
maioria vai prejudicar muito os Estados Unidos”, frisou o analista Richard
Gowan, do International Crisis Group, em declarações à Agência France Press (AFP).
A grande maioria perdeu a paciência com Washington. Mais do que a ONU ou
qualquer outra organização, os EUA são tidos como os únicos capazes de
persuadir Israel a aceitar o cessar-fogo como seu aliado mais próximo e maior
fornecedor de armamento.
Face ao posicionamento norte-americano, são cada vez mais as vozes a acusar
Washington de “cumplicidade”, face aos crimes que estão a ser cometidos por
Israel no enclave.
O Canadá, que alinhava, até agora, com as políticas dos EUA e de Israel,
mudou o seu posicionamento e apoiou, pela primeira vez, um cessar-fogo imediato
na Faixa de Gaza.
Tal como o texto adotado pela Assembleia Geral no final de outubro – que
obteve o apoio de 120 países e que apelava a uma “trégua humanitária imediata,
duradoura e sustentada” –, a resolução agora aprovada não condena o grupo
palestiniano Hamas, uma ausência que tem sido criticada por países como os EUA,
o Reino Unido ou Israel.
Face a esta omissão, Linda Thomas-Greenfield, embaixadora dos EUA junto à
ONU, antes de votar contra, discorreu: “Porque é que é tão difícil condenar o
Hamas? Dizer, inequivocamente, que assassinar bebés e matar pais a tiro, na
frente dos filhos, é horrível. Que queimar casas enquanto famílias se abrigam
lá dentro e fazer civis como reféns é abominável.”
***
Joe Biden está cada vez mais isolado na defesa do direito de Israel a
defender-se. Os analistas acreditam que as alterações de perspetiva na
comunidade internacional e a subsequente pressão sobre Telavive são significativas,
mas sustentam que nem os EUA são capazes de influenciar os desígnios israelitas,
neste momento
Foi um resultado enfático, que os EUA já não podem ignorar, apesar de se
manterem entre os 10 países desfavoráveis ao apelo. A surpresa da Assembleia Geral
foi ver Reino Unido e a Alemanha absterem-se. Di-lo Rex Brynen, investigador de
Ciência Política, na Universidade de McGill, no Quebec (Canadá). O analista
garante tratar-se de importante mudança, nomeadamente por parte de países como
o Reino Unido, que se absteve, e do Canadá, da Austrália e da Nova Zelândia,
que votaram a favor. Esta distribuição de votos reflete a preocupação
internacional pela crescente perda de vidas civis e pela crise humanitária em
Gaza, bem como a visão de que Israel pretendia devastar grande parte de Gaza e,
até, empurrar Palestinianos para o Egipto.
A resolução imediatamente anterior, com apelo a um “cessar-fogo
humanitário”, a 27 de outubro, tinha atraído 120 votos favoráveis, 14 contra e
45 abstenções. A resolução já expressava a grave preocupação com a situação humanitária
catastrófica na Faixa de Gaza e o sofrimento da população civil palestiniana
(já morreram 18 mil pessoas na ofensiva israelita). Mas o documento apelava
ainda à proteção dos civis israelitas e palestinianos, ao abrigo do direito
internacional, e exigia a libertação imediata de todos os reféns. A seguir, no
Conselho de Segurança, foi vetada pelos EUA uma resolução com conteúdo similar.
E as autoridades norte-americanas e austríacas chegaram a propor alterações, em
momentos anteriores, para incluir a condenação aos “hediondos ataques
terroristas do Hamas”, não perfazendo nenhuma das iniciativas o apoio total – e
exigido – de dois terços.
Horas antes, numa angariação de fundos para a campanha de reeleição de
2024, em Washington, o presidente norte-americano Joe Biden avisou Benjamin
Netanyahu de que estava a perder apoio internacional na guerra contra o Hamas.
Já na Assembleia Geral, a embaixadora dos EUA junto da ONU procurou um discurso
mais conciliador: “Israel, como todos os países do Mundo, tem o direito e a
responsabilidade de defender o seu povo de atos de terrorismo. Israel deve
evitar a deslocação em massa de civis, no Sul de Gaza, e deve garantir
assistência humanitária suficiente àqueles que fogem da violência.”
“Dentro dos EUA, Israel ainda goza de um apoio político considerável”,
sintetiza Yuval Shany, professor de Direito Internacional na Universidade
Hebraica de Jerusalém e especialista em direito humanitário, frisando: “Biden
tem de navegar entre a opinião mundial, a opinião pública interna e as vozes
divergentes no Partido Democrata. Está a fazê-lo, apoiando o caminho israelita,
mas pressionando Israel a melhorar a situação humanitária e a preparar-se para
o dia seguinte.”
Rex Brynen concorda que, apesar da pressão da comunidade internacional, o
apoio dos EUA permanece, pelo menos, durante as próximas semanas. Com efeito, a
capacidade norte-americana de influenciar Israel “pode ser mais limitada do que
alguns pensam”, o que poderá levar Israel a continuar a guerra durante “vários”
meses, mesmo sem o apoio dos EUA. O maior fardo é o custo económico da mobilização
militar, mas os Israelitas parecem muito dispostos a pagar tal preço.
Por sua vez, o Reino Unido já não faz defesa fervorosa de Israel. Rishi
Sunak, primeiro-ministro britânico, disse não concordar com as declarações de
Tzipi Hotovely, embaixadora de Israel no Reino Unido, que afirmara que Israel
não aceitaria a solução de dois Estados com os Palestinianos. Questionada sobre
a hipótese de os Palestinianos terem o seu próprio Estado, Tzipi Hotovely
declarou: “Absolutamente, não.” Porém, Sunak discordou: “A nossa posição, de
longa data, continua a ser a de que a solução de dois Estados é o resultado
certo.” O primeiro-ministro, reconhecendo que o que está a acontecer em Gaza é
“incrivelmente preocupante”, declarou: “Eu tenho dito consistentemente que
muitas pessoas inocentes perderam a vida. Ninguém quer que este conflito dure
mais do que o necessário.”
E foi claro, ao manifestar que o governo do Reino Unido continuará a apoiar
os apelos a um “cessar-fogo sustentável”, para permitir a libertação de reféns
e a entrada de mais ajuda em Gaza.
As declarações de Rishi Sunak dão mais força à ideia de que os Britânicos
já não apoiam Israel, de forma incondicional, como revelou a votação da mais recente
resolução na Assembleia Geral da ONU. Todavia, o analista Yuval Shany refere que
isso terá importância relativa: “As resoluções da Assembleia Geral não são
vinculativas e os apelos a um cessar-fogo humanitário já foram ouvidos
anteriormente, vindos de muitas direções. Já houve uma resolução do Conselho de
Segurança que também apela a pausas humanitárias. A nova resolução não representa,
portanto, uma mudança dramática, mas, em vez disso, ilustra a erosão gradual do
apoio à posição de Israel, o que é mais uma razão para terminar a guerra o mais
rapidamente possível.”
Se Telavive o fará, é outra questão. Quando Gilad Erdan, representante
israelita na ONU, censurou a resolução por não mencionar o Hamas, voltou a
referir-se aos “nazis do Hamas” (estes é que são os maus) e disse que a votação
a favor do cessar-fogo era a votação a favor da “sobrevivência do terror jihadista
e do sofrimento contínuo do povo de Gaza”.
Nenhum governo israelita dará, politicamente, por terminada a guerra, sem a
libertação dos reféns e uma aparente vitória, que pode ser, por exemplo, o
assassinato ou captura de altos líderes do Hamas. Enquanto o Hamas der luta, a
guerra continuará. Só a retirada total do apoio dos EUA poderá desviar as
intenções de Israel, visto que Israel depende dos EUA, para evitar sanções do
Conselho de Segurança contra o país e para o reabastecer militarmente. Porém, é
improvável que, a curto prazo, os EUA retirem totalmente o seu apoio a Israel,
sobretudo em ano de eleições.
***
Entretanto,
a população de Gaza está sem tempo e sem opções, pois enfrenta bombardeamentos,
privações e doenças, num espaço cada vez mais reduzido.
Philippe Lazzarini, chefe da agência da ONU de
Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA) advertiu que a
capacidade de assistência em Gaza está “à beira do colapso”, tendo já morrido
mais de 130 membros da agência.
Numa
intervenção especial no Fórum Global de Refugiados, em Genebra (Suíça), deu
conta do cenário de devastação e desespero, reiterando o que escrevera na
véspera na rede social X (antigo Twitter): a Faixa de Gaza é hoje um “verdadeiro
inferno”, onde “não há qualquer sítio seguro”.
De
facto, as infraestruturas civis e as instalações da ONU não foram poupadas pelos
bombardeamentos de Israel. Uma escola da UNRWA foi destruída por bombas, no Norte
de Gaza.
Lazzarini
explicou que “a maior parte da população de Gaza foi deslocada à força, em
grande parte para a parte sul da Faixa, Rafah”, cidade que alberga, atualmente,
“mais de um milhão de pessoas”, quando antes acolhia 280 mil, e que “não possui
as infraestruturas e os recursos necessários para sustentar uma tal população”.
Nos armazéns da UNRWA, as famílias vivem em espaços minúsculos, separados por
cobertores pendurados em finas estruturas de madeira. Ao ar livre, surgem
abrigos frágeis por todo o lado. Rafah tornou-se comunidade de tendas. E os
espaços à volta dos edifícios da UNRWA estão congestionados com abrigos e com pessoas
desesperadas e esfomeadas.
***
Haja,
pois, compaixão para com as pessoas, ajuda humanitária e força política para
acabar com a guerra e com a miséria. As pessoas têm direito a viver.
2023.12.17 – Louro de
Carvalho
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