O Comité de Ética do Banco Central Europeu (BCE) concluiu que Mário
Centeno, ao aceitar refletir sobre a possibilidade de ser primeiro-ministro
(PM), na eventual sucessão de António Costa, cumpriu as exigências do Código de
Conduta da autoridade da política monetária e não pôs em causa a sua
independência. É uma informação que a presidente da autoridade monetária da
Zona Euro, Christine Lagarde, que solicitara o parecer daquele organismo, transmitiu
aos eurodeputados que tinham criticado o governador do Banco de Portugal (BdP).
Segundo o parecer do Comité de Ética, transmitido à presidente do BCE e por
esta remetido aos eurodeputados em causa, “a independência de Centeno não pode
ser posta em causa, pois não foi convidado formalmente a assumir a posição de
primeiro-ministro, nem deu nenhuma indicação de que estava inclinado a
aceitá-la”.
Aquando do seu pedido de demissão, a 7 de novembro, o PM propôs ao
Presidente da República (PR) que, para evitar eleições antecipadas, Mário Centeno
assegurasse a sua sucessão. O governador do BdP aceitou refletir, mas defende
que nunca deu qualquer resposta, até porque o chefe de Estado decidiu dissolver
a Assembleia da República (AR) e convocar eleições. Todavia, a oposição em
Portugal criticou o que viu como falha na independência do governador de um
banco central, e eurodeputados – como Nuno Melo e outros membros do Parlamento
Europeu do Partido Popular Europeu (PPE), família política inclui o Partido do
Centro Democrático Social (CDS) e o Partido Social Democrata (PSD) – questionaram
diretamente a presidente do BCE.
A resposta foi publicada, a 15 de dezembro no site da autoridade sediada em Frankfurt. “O Comité
de Ética conclui que Mário Centeno não agiu de forma que tenha comprometido a
sua independência enquanto membro do Conselho do BCE, nem pôs em causa os
interesses da União. Como tal, cumpriu com as exigências do Código de Conduta
do BCE”, indica o organismo presidido por Erkki Liikanen, um ex-governador
e ex-político finlandês.
Para este organismo, mesmo após a sugestão de António Costa, Mário Centeno
“manteve a sua agenda” enquanto governador e permaneceu sob “total discrição”
para proteger os interesses do BdP; e a “sua reflexão não ganhou maturidade
suficiente que justificasse” o contacto com o BCE para dar conta de eventual
saída do cargo. Os governadores em funções e nos dois anos a saírem de funções,
têm de informar Frankfurt para saberem se há impedimento.
Não há menção à entrevista de Centeno ao Financial Times, em que disse ter o convite sido feito pelo PM e
pelo PR, o que veio, depois, corrigir, porque o Presidente disse nunca o ter
convidado. Centeno desculpou-se com o facto de o PR ter sido informado previamente
do convite. Aliás, o BCE tem dado luz verde a casos de transição da banca
central para a política.
O Comité de Ética do BCE posicionou-se com base em “profunda e abrangente
troca de posições com o presidente da Comissão de Ética do Banco de Portugal”,
Rui Vilar, que sustenta que o caso não levantava dúvidas quanto ao cumprimento
das regras impostas ao governador, embora os “desenvolvimentos
político-mediáticos” pudessem causar “danos à imagem” do BdP. Assim, Mário
Centeno livra-se das dúvidas levantadas em Frankfurt sobre a sua independência.
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Já em meados de novembro, face às críticas dos
partidos da oposição, que pediam a exoneração de Mário Ceteno, a Comissão de
Ética do Banco de Portugal saiu em sua defesa e deixou um aviso a toda a
instituição: a independência do governador nunca esteve em causa com a sugestão
de António Costa para vir a ser PM, mas os efeitos da crise política e desse
caso podem causar danos à imagem do BdP, pelo que recomendava que todos atuassem
na defesa desta.
No parecer, datado de13 de novembro, a Comissão de Ética, presidida por
Rui Vilar, lia-se que “o governador, no plano subjetivo, agiu com a reserva
exigível naquelas concretas circunstâncias, cumprindo os seus deveres gerais de
conduta”. Aliás, foi Centeno quem pediu àquela comissão que avaliasse a sua
situação, já que podiam estar em causa potenciais conflitos de interesse e
falhas no cumprimento do Código de Conduta, devido ao facto de ter sido
convidado – sem declinar – por António Costa para poder ocupar o cargo de PM,
para evitar eleições antecipadas.
O Código de Conduta contém regras sobre
“independência” e “conflitos de interesse”, no caso do BdP e no do BCE, pelo
que Centeno também por ele se rege por ser governador de um banco central do
euro, como a autoridade monetária referiu a propósito do caso. Porém, a
Comissão de Ética diz que, não havendo nada a retirar de
negativo sobre a postura de Centeno no caso do convite, a verdade é que o BdP pode
vir a sofrer com este caso.
“No plano objetivo, os desenvolvimentos
político-mediáticos subsequentes podem trazer danos à imagem do banco”, segundo
o parecer. “A defesa da instituição é ainda mais relevante num período como o
atual, pelo que a Comissão sublinha a importância dos princípios que enformam
os normativos em vigor e recomenda que o governador, a administração e o Banco
no seu todo continuem empenhados na salvaguarda da imagem e reputação do Banco
de Portugal”, conclui o parecer assinado por Rui Vilar, ex-presidente da Caixa
Geral de Depósitos (CGD), Adelaide Cavaleiro, ex-diretora no BdP e Leão
Martinho (ex-bastonário da Ordem dos Economistas).
O líder do BdP recusara-se a responder aos órgãos de
comunicação social, mas disse ao Financial
Times que fora convidado a pensar pelo PM e pelo PR, mas este veio, de
imediato, esclarecer que nunca houve nenhum convite da sua parte, pelo que
Centeno, alegando erro de tradução daquele jornal, veio emendar a mão: Foi
António Costa que o sondou, após reflexão com o Presidente.
Os banqueiros não viam conflito de
interesse ou falha na independência de Centeno. O presidente da CGD já tinha
dito que o convite feito ao governador não afeta a sua independência, mas
sublinhou que a sua eventual saída causaria instabilidade. E, com a Comissão de Ética do seu
lado, Mário Centeno levou, de mediato, o parecer ao Conselho de Administração, o
qual solicitou à Comissão de Ética a sua divulgação, o que aconteceu no início
da manhã de 15 de novembro.
No comunicado que divulgou, “o Conselho de
Administração considera que sempre estiveram reunidas as condições de
independência do Banco de Portugal e dos seus órgãos para o exercício das suas
competências”.
O posicionamento do supervisor português surge depois
de o parecer ter sido entregue ao BCE, para que o seu Comité de Ética avaliasse
o caso. Aliás, a posição do BdP foi
divulgada quando decorria, em Frankfurt, um Conselho do BCE, onde Centeno
encontra os governadores do euro.
***
Do meu ponto de vista, este discurso sobre a
independência é balofo. Seria mau, se o Estado interferisse na administração do
BdP ou tentasse condicionar Centeno. De resto, um governador de banco central
nem é independente, nem deixa de o ser. As decisões são colegiais e têm em
conta circunstâncias políticas, sociais, financeiras e económicas. Estamos é perante
um fenómeno de relação obnubilada entre atores políticos, o que alguns, pegando
em palavras do próprio Mário Centeno, designam por mais um “erro de perceção
mútuo” entre o PR, Mário Centeno e o PM.
O governador do BdP emitiu um comunicado a esclarecer que o convite foi
para “refletir”, não “para chefiar” um governo de sucessão de António Costa.
A narrativa do que aconteceu não cessa de ter cada vez mais camadas e,
desta vez, a camada é de erros de perceção mútuos institucionais, por confusão
entre o PR e o governador do BdP, com o PM pelo meio. Desde 2017, os três
protagonizam equívocos ou problemas de interpretação.
A primeira vez foi, em 2017, aquando das condições que foram dadas a António
Domingues para a presidência da CGD. Afinal, o gestor podia ou não ficar isento
da entrega das declarações de rendimentos no Tribunal Constitucional (TC)? A
situação causou polémica e acabou com o então ministro das Finanças Mário
Centeno a assumir que poderia ter havido “erro de perceção mútuo” nas
comunicações com o gestor. O ministro pôs o lugar à disposição e o PM manteve-o
no governo. O mesmo fez o PR, mas deixando claro que o fazia tendo em conta a
situação económica e financeira do país, quando havia grande preocupação com a
banca.
Em comunicado, o PR aceitava que Centeno se mantivesse em funções “atendendo ao estrito interesse nacional, em termos
de estabilidade financeira”. Ou seja, a confiança já não existia, mas o
Presidente aceitava que Centeno continuasse nas Finanças, em plena saída do
procedimento por défices excessivos e em reorganização da banca. Mais: o PR
aceitava as explicações de Centeno sobre as alterações ao Estatuto do Gestor Público (EGP)
e referia ter entendido o “eventual erro de
perceção mútuo na transmissão das suas posições” também ao Presidente.
Em meu entender, essa narrativa do erro de perceção
mútuo é inconsistente. O PR promulgara o Decreto-Lei n.º 39/2016, de 28 de
julho (podia tê-lo vetado), que, alterando o Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27
março (Estatuto
do Gestor Público), estabelece: “O presente decreto-lei
não se aplica a quem seja designado para órgão de administração de instituições
de crédito integradas no setor empresarial do Estado e qualificadas como ‘entidades
supervisionadas significativas’, na aceção do ponto 16) do artigo 2.º do
Regulamento (UE) n.º 468/2014, do Banco Central Europeu, de 16 de abril de
2014.” Ou seja, o novo diploma retirava do EGP os
gestores da CGD. Porém, a seguir, o PR veio a
forçar a entrega das declarações dos administradores da CGD ao TC, invocando o EGP, de que os retirara, no que foi acompanhado
por muitos “sábios”.
Não houve, pois, qualquer erro de perceção,
mas “arrependimento” extemporâneo, que redundou num dos primeiros graves lances
do maquiavelismo presidencialista ao arrepio da Constituição. Um ministro não
responde diretamente perante o PR, a quem não se põe o problema da confiança
política. Responde perante o PM e perante a AR. O nosso sistema não é
presidencialista, nem semipresidencialista como o sistema francês, mas de forte
pendor parlamentarista.
Em 2020, as Finanças preparavam-se para fazer mais uma
transferência de 850 milhões de euros para o Novo Banco (NB). Mário Centeno
estava na AR a defender a decisão das Finanças, quando o PR decidiu tirar-lhe o
tapete. Em visita à Autoeuropa, com António Costa ao lado, em silêncio, o PR
corroborava a versão do chefe do governo, contra a de Centeno, de que essa
transferência só podia ser feita depois de conhecidos os resultados da
auditoria ao NB. A confusão no Governo era, assim, uma “falha de comunicação”.
O PM limitou-se a um “não tenho nada a acrescentar” ao que disse o PR e Mário
Centeno pediu uma reunião a António Costa, para dirimir o caso.
O PR deveria ter deixado que o assunto fosse resolvido
no seio do governo. Porém, como vem sendo hábito, assume-se como mentor,
porta-voz e crítico do executivo, o que não lhe compete.
A crise terminou com Centeno a declarar o seu fim, depois de Marcelo
assumir o equívoco: “A crise foi ultrapassada”, dizia. Centeno continuava
ministro, pois tinha tarefas a cumprir: acabar o mandar à frente do Eurogrupo e
fazer o orçamento suplementar. Saiu um mês depois para o BdP.
Três anos depois, volta a haver um “erro de perceção mútuo”, um “equívoco”
e uma “falha de comunicação” entre os três protagonistas. Sim, mas o erro está
na perceção do estatuto do governador do BdP. Ele nunca pôs em causa a sua
independência, o que podia ter posto em causa era a sua dependência do BCE,
porque, a aceitar um cargo político stricto
sensu, carecia de autorização. Ao mesmo tempo, colocaria em causa a imagem
do BdP, que podia ser tido como porta giratória entre o sistema financeiro e o
poder político. Também, neste aspeto, é a hipocrisia a reinar. A questão só se
colocou com Centeno e não com outros, que foram ministros e governadores ou
altos quadros do BdP.
***
Com o que se perde tempo! E eu também o perco!
2023.12.15 – Louro de Carvalho
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