Que a Ordem dos Médicos (OM) exagera no exercício
das suas atribuições já todos os sabíamos. Estão no caso, por exemplo, a obstaculização
ao alargamento dos cursos de Medicina, o óbice à criação de novas especialidades
e o seu papel preponderante na formação médica, nem sempre condicente com o
pensar das academias. E o recente veto presidencial ao diploma que altera o
Estatuto da Ordem dos Médicos é tido como muito justo pelo bastonário, Carlos Cortes,
que foi ouvido pelo Presidente da República (PR) antes do veto. Com efeito, o
PR atendeu às pretensões da OM, alegadamente por estar em causa o interesse
público.
***
Entretanto, surgiram dois factos a mostrar que a
OM age fora do âmbito das suas competências.
A Fundação Maria Inácia
Vogado Perdigão Silva, que gere o Lar
de Reguengos de Monsaraz, onde morreram 18 pessoas durante a pandemia, acusa a
OM de mentir e de inventar factos, pelo que intentou, a 24 de julho, ação em tribunal em conjunto com mais 23
pessoas a exigir a indemnização de 2,25 milhões de euros. A OM, que nega tudo, ainda
não foi notificada, segundo o bastonário Carlos Cortes. A OM é acusada de ter orquestrado um
plano para impedir os médicos de prestarem auxílio no Lar e para mobilizar a
opinião pública através de um relatório que afirmasse a falta de condições na
residência para pessoas idosas por culpa da Fundação e do Estado. “De acordo
com vasta prova, recolhida de diferentes origens para que fosse bem
fundamentada, incluindo documentos internos da Ordem dos Médicos, esta Ordem
quis encontrar uma forma de recusar a indicação da ARS [Administração Regional
de Saúde] para que os médicos fossem ordenados a prestar serviço no Lar, tendo
desenvolvido um plano para esse efeito”, diz José Gabriel Calixto, presidente
do conselho de administração da Fundação.
O plano,
segundo José Gabriel Calixto, foi mobilizar a opinião pública através de relatório
que atestasse a falta de condições por culpa da Fundação e do Estado, “o que
fez, com sucesso, criando danos irrecuperáveis nas pessoas dos seus
trabalhadores e dirigentes e na imagem da Fundação, enganando
deliberadamente a sociedade portuguesa com factos inventados, conclusões sem
premissas, omissão e censura de provas e testemunhas”.
Os factos
remontam a 2020, em plena pandemia, após a morte de 17 utentes e de uma funcionária
do Lar por covid-19. As denúncias de médicos que trabalharam no Lar levaram a OM
a abrir uma comissão de inquérito, que viria a revelar falta de condições.
O relatório
final foi enviado a diversas entidades oficiais, entre elas a Direcção-Geral de
Saúde (DGS) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), e levou o Ministério
Público (MP) a instaurar um inquérito, que foi arquivado em junho deste ano. De
acordo com a procuradora Ana Margarida Sebastião, quando o surto eclodiu na
instituição, a pandemia de covid-19 estava em fase inicial e as medidas
preconizadas pelas autoridades para o controlo da doença “eram ainda muito
exíguas e estavam em constante mutação”, o que terá condicionado as melhores
decisões, o que se deve dizer em relação às dúvidas sobre a atuação das
entidades públicas e dos profissionais de saúde. Terá havido “alguma
desorganização na implementação das medidas de controlo da infeção”, mas os
envolvidos apesar da “impreparação de todas as entidades”, “conjugaram esforços”
para encontrar soluções. E, sobre as acusações de maus-tratos no Lar, o MP
concluiu que os indícios da prática de crime não eram suficientes, ainda que
tenha havido falhas com reflexo na qualidade dos cuidados prestados aos
utentes.
José Calixto
diz que a lista de erros é longa, mas os erros intencionais mais graves são
oito.
A OM
sustenta que não morreram só de covid, quando não tinha indicação de outro
quadro e os relatórios oficiais referiam que todas as mortes se deveram a covid.
A OM sabia
que havia plano de contingência desde março de 2020, delineado com a
Segurança Social (SS) e com uma equipa médica de um estabelecimento de saúde
e recebeu-o por e-mail da Fundação, a 6 de agosto de 2020, antes de ter
divulgado a sua inexistência à comunicação social.
A OM diz ter
criado uma comissão para investigar queixas de médicos de falta de condições.
Ora, o que a motivou foi a necessidade de encontrar razão para os médicos
se recusarem a cumprir a ordem da ARS que os ordenava a ir para a ERPI
[Estrutura Residencial para Pessoas Idosas].
A OM tinha
em seu poder um relatório exaustivo da SS, do início da pandemia, onde se
verifica a existência de todas as condições de qualidade como ERPI, cumprindo
toda a regulamentação e todos os critérios de qualidade.
A Fundação não
permitiu que a falta de recursos humanos se prolongasse. A falta de pessoal
deveu-se a doença e a recusas, sabendo a OM e os 24 autores desta ação que há
provas de que a Fundação, desde o início do surto, antecipou que haveria quebra
de pessoal e que a única forma de ultrapassar essa falha seria retirar os
idosos do Lar para uma estrutura de retaguarda ou de saúde, nunca deixá-los num
estabelecimento de apoio social que não está pensado para um cenário de surto
generalizado. A instituição fez tudo “para conseguir trazer mais profissionais
para dentro, desde a primeira hora, ativando protocolos institucionais, as
forças armadas e até estruturas de voluntários, amigos, familiares e outras
entidades privadas. Assim que a OM anunciou a mentira da falta de
condições, para além dos médicos que se recusavam desde o início, começaram a
recusar-se outros médicos e pessoas, agravando o problema.
A Fundação
não foi responsável por testes lentos. A entidade responsável pela testagem foi
o Agrupamento de Centros de Saúde, que não tinha testes suficientes.
A primeira
pessoa afetada não foi uma trabalhadora, mas uma utente, o que está documentado.
Porém, a OM quis criar a imagem de que o surto se iniciou por descuido da
Fundação, através de uma funcionária, dando mesmo duas datas diferentes
para esse facto inventado.
A OM chega a
referir a existência de sangue no chão do equipamento de retaguarda, tirando
fotografia, quando todos sabiam tratar-se de uma falha no pavimento”.
Para a
Fundação, a OM tem de ser responsabilizada. “Basta ler as provas do relatório
da Ordem dos Médicos para perceber: a história não está a ser relatada, está a
ser inventada. O que está fora desse relatório, e é a novidade desta ação, é a
prova do plano da Ordem dos Médicos, a intenção que levou às mentiras que
relatou e divulgou, os danos que causou e o exemplo heroico de um grupo de
pessoas que enfrentaram o primeiro grande surto em Portugal, com a adversidade
do julgamento público e das recusas que a Ordem dos Médicos egoisticamente
causou.”
Face às
acusações descritas, Filipa Lança, a médica que coordenou o relatório, reitera
que “tudo o que lá está escrito é verdade” e tem por base a recolha de “testemunhos
gravados”, de médicos e não médicos, e a ida de especialistas ao local.
O bastonário
da OM diz que, até ao momento, a OM não recebeu nenhuma notificação do tribunal
sobre o caso. E Filipa Lança garante que, na altura certa, “responderemos de
acordo”.
À data dos
factos, o bastonário da OM era Miguel Guimarães, que garante que foram
cumpridos todos os procedimentos normais para a situação e que nada moveu a
Ordem contra a instituição, a não ser o bem-estar e saúde dos utentes e
funcionários do Lar.
A Lar de
Reguengos de Monsaraz, gerido pela Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva,
está atualmente com lotação esgotada e tem ainda uma vasta lista de intenções.
***
Outro caso em que a OM está a interferir
indevidamente, segundo alguns, é o episódio atinente às gémeas luso-brasileiras
tratadas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
O ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales considera o
inquérito aberto pela OM ao caso das gémeas luso-brasileiras como “inqualificável
intromissão na atividade de um órgão de soberania”. Em declarações à Rádio
Renascença (RR), o médico e ex-governante
garantiu que não marcou a consulta no Serviço Nacional de Saúde (SNS) para as
gémeas luso-brasileiras que receberam no Hospital de Santa Maria um tratamento
com um medicamento inovador no valor de quatro milhões de euros. Garantiu que
“nunca falou do assunto” com o PR nem com o primeiro-ministro (PM). E disse não
se recordar, pelo que aguarda documentação para se pronunciar sobre a alegada reunião
que terá tido com Nuno Rebelo de Sousa, filho do PR, que terá, alegadamente, metido
uma cunha para o tratamento das crianças.
O bastonário
da OM disse à Lusa que pediu ao
Conselho Disciplinar da Região Sul da Ordem dos Médicos que avalie o
comportamento dos médicos envolvidos no caso das gémeas luso-brasileiras, para
perceber se há matéria disciplinar em que possa ter intervenção.
“Ontem [11
de dezembro], perante toda a informação que nos tem chegado pedi ao Conselho
Disciplinar para avaliar este caso e para avaliar, obviamente, os médicos”,
inclusive o ex-secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales, disse
Carlos Cortes.
O bastonário
diz que a OM tem capacidade para avaliar todos os médicos, “os seus
comportamentos, as suas decisões, ao obrigo de parâmetros éticos e
deontológicos, ao abrigo das boas práticas da medicina, ao abrigo do
comportamento médico, independentemente do seu nível de decisão”.
Em resposta
a tais declarações, Lacerda Sales disse à RR
que “tem a consciência tranquila”. E, quanto ao processo de inquérito promovido
pela OM, em que o bastonário pretende que seja apurada, entre outros, a sua atuação
como secretário de Estado, diz que mais lhe parece uma oportunidade para o
bastonário “usufruir dos seus cinco minutos de atenção e fama por parte da
comunicação social”. Além disso, não se depreende outro alcance do processo de
inquérito, pois, à data qualquer que tenha sido a atuação do ex-governante não
o foi enquanto médico, mas enquanto secretário de Estado. “Por isso, estamos
perante uma sindicância da Ordem dos Médicos a um órgão de soberania do qual
fiz parte, com muito orgulho, e que me parece uma inqualificável intromissão na
atividade do órgão de soberania por parte da Ordem dos Médicos.”
Lacerda
Sales, que manifestou à RR a disponibilidade
para responder perante qualquer órgão e que integrou a equipa de Marta Temido,
reiterou que “nenhum secretário de Estado, nem ninguém tem o poder para marcar
uma consulta no SNS, nem para poder influenciar ou violar a consciência ou a
autonomia de um médico”.
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O constitucionalista
Vital Moreira (blogue “Causa nossa”) reconhece toda a razão a Lacerda Sales.
Com efeito, a OM “só tem poder disciplinar sobre os seus membros nessa
qualidade, por atos da profissão médica”, o que não é “o caso dos atos natureza
político-administrativa de um secretário de Estado da Saúde”, que é médico. Por
isso, o ex-governante deve “recusar-se a este inaceitável abuso de poder”. “A
ter havido conduta censurável do governante no referido processo, ela só pode dar lugar a responsabilidade política,
nunca a responsabilidade disciplinar perante a OM”, diz o renomado académico e constitucionalista.
É, pois, mais um caso de usurpação de funções por parte da OM, na obsessão de
se “intrometer na política de saúde e na gestão dos serviços de saúde e de
cobrar responsabilidade política pela gestão do SNS, substituindo-se à Assembleia
da República (AR) e à oposição, o que lhe não cabe”.
A quem sugere que Sales pode continuar inscrito na OM e que esta “não sabe distinguir entre os atos
profissionais e os outros”, Vital Moreira contrapõe: estar inscrito na Ordem não
a autoriza a submetê-lo ao seu poder disciplinar por factos alheios ao
exercício da profissão; a
distinção entre os atos do médico nessa qualidade e os da mesma pessoa noutra
qualidade é óbvia e intuitiva e, “se a direção da OM não percebe tal diferença,
um assessor jurídico ajuda”.
Quanto ao inquérito ao Lar de Reguengos, Vital Moreira sustenta que é “outro
caso de flagrante abuso de poder da OM”, que não tinha competência, por não ter
base legal, e que tirou conclusões lesivas para a instituição, que vieram a ser
infirmadas pelo MP. E a OM deve ser responsabilizada.
Livre-nos Deus de quem abusa do poder com intentos de protagonismo ou com excesso de zelo!
2023.12.13 – Louro de Carvalho
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