O acordo aplica-se a todos os médicos e
privilegia as renumerações mais baixas, prevendo-se um aumento de 14,6%,
já em janeiro, para os assistentes hospitalares.
Após 19 meses de negociação, o governo chegou, a 28 de novembro, a acordo
com o Sindicato Independente dos Médicos (SIM). O acordo, segundo o comunicado o
Ministério da Saúde (MS) enviado aos jornalistas, se aplicará a todos os
médicos e privilegia as renumerações mais baixas, prevendo-se um aumento de 14,6%, já em janeiro, para os assistentes hospitalares
(a primeira categoria da carreira). “O aumento salarial agora acordado vai aplicar-se a todos os médicos, privilegiando as
remunerações mais baixas. Assim, os assistentes hospitalares com
horário de 40 horas terão um aumento de 14,6%, os assistentes graduados [a
segunda posição da carreira] de 12,9% e os assistentes
graduados sénior de 10,9% [a terceira e última categoria da
carreira]. Modelo similar será aplicado a cada uma das carreiras médicas”,
revela a tutela.
Numa atualização ao comunicado inicial, o governo pormenorizou que, no caso
dos internos – os que se estão a formar para a especialidade – do quarto ano e seguintes, o aumento será de 15,7% e, para os internos do ano comum, será de “6,1%”. Já para
os médicos que frequentam o primeiro, segundo e terceiro anos
da especialidade, o aumento será de 7,9%. De notar que os médicos
demoram, pelo menos, seis anos a tirar a especialidade e a entrar,
efetivamente, na carreira.
O MS recorda as regras para jovens aprovadas e com impacto nos jovens
médicos, como a “isenção total de IRS [imposto sobre o rendimento das pessoas singulares]
no primeiro ano de atividade, de 75%, no segundo ano, de 50%, nos terceiro e
quarto anos, e de 25%, no quinto ano”.
O governo assinala que o acordo se soma a todas medidas já aprovadas,
nomeadamente a generalização das Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo B (que
permite a remuneração em função de critérios de desempenho) e à dedicação plena,
em regulamentação, pelo que “os cerca de 2000 médicos
especialistas em Medicina Geral e Familiar que transitam para as USF modelo B” terão um aumento salarial “de cerca de 60%”, já a
partir do próximo ano, enquanto os médicos dos centros de saúde e
dos hospitais que adiram ao regime de dedicação plena
“terão um aumento salarial, em janeiro de 2024, superior a 43%“, lê-se
na nota de imprensa.
“É um acordo possível”, reagiu o ministro da
Saúde, Manuel Pizarro, após a reunião, em declarações transmitidas pela RTP3.
O MS aproxima-se do que tinha sido proposto, na reta final, pelo sindicato
liderado por Jorge Roque da Cunha, que defendia um aumento de 15% transversal
a todos os médicos, em 2024. “Este acordo intercalar permite a todos os médicos ter uma
valorização salarial, algo que já não acontecia há vários anos, desde há mais
de 10 anos, de cerca de 400 euros mensais, para todas as carreiras, se
fazem urgência, se não fazem urgência, de uma forma transversal”, disse o
secretário-geral do SIM. A crise no SNS e a crise política, que se lhe juntou,
obrigava o SIM “a ter um sentido de responsabilidade”, acrescentou.
De fora do acordo ficou a Federação Nacional dos
Médicos (FNAM), que reivindicava um aumento de 30% para todos os médicos
(proposta inicialmente defendida pelo SIM), mas que, na reunião do dia 28,
chegou a baixar para 22%. “A FNAM não
aceita o acordo, a proposta que foi feita pelo Ministério da Saúde, uma vez
que isto é um mau acordo para os médicos, é um mau acordo para o
Serviço Nacional de Saúde, isto não vai permitir fixar médicos no SNS”,
disse a presidente da federação, Joana Bordalo e Sá, à saída da reunião no
Ministério da Saúde.
Quanto à redução faseada do horário de trabalho das 40 horas para as 35
horas e a redução progressiva do horário em serviço de urgência das atuais 18
horas para as 12 horas, que tinha vindo a ser discutida antes da crise
política, o governo adianta que, nas “atuais circunstâncias políticas e não
tendo havido atempadamente consenso sobre todas as matérias negociadas”, não
foi possível chegar a um compromisso sobre essas matérias.
A tutela “saúda a capacidade de diálogo e compromisso, em prol de melhores
condições de trabalho e de resposta aos utentes” e garante que “realizou um enorme esforço para ir ao encontro das reivindicações
das estruturas sindicais”, de modo a reforçar o SNS e não
descurando “um quadro de responsabilidade orçamental e equilíbrio entre as
carreiras da administração pública”.
***
Porém, um dia depois de o MS ter assinado um acordo de
valorização salarial com o SIM, a confusão voltou. Com efeito, o acordo pode
não ser automático para todos os profissionais, segundo a tutela, que está a
estudar o instrumento legislativo para o aplicar. Para o SIM, o acordo é só
para os seus associados. Para a FNAM, “tal não é possível”. E especialistas na
área do Trabalho dizem que a questão “é complexa” e que pode ter as duas
leituras.
Afinal, das 36 reuniões que, durante 19 meses,
juntaram à mesa e no mesmo processo negocial o MS, a FNAM e o SIM, fica um
processo marcado por alguma confusão, desde logo porque, poucas horas depois de
o MS ter assinado um acordo com o SIM, surgiu a dúvida se este compromisso
abrangerá, de forma automática, todos os médicos ou não.
Não era claro, para a tutela,
como é que os médicos que não são sindicalizados ou os que são sindicalizados
na FNAM terão acesso ao acordo. Em resposta à questão do Diário de Notícias (DN) sobre
o tema, foi referido que, de momento, “o Ministério da Saúde ainda está a
ultimar os termos concretos da sua operacionalização, que será concretizada em
1 de janeiro de 2024”.
A mesma fonte explicou que o que poderá acontecer é
não ser automático para todos os médicos, podendo os profissionais ter de dizer
se querem ser abrangidos pelo acordo ou não. Dependerá do “instrumento
legislativo que venha a ser fechado pelo governo para a aplicação do acordo”.
No comunicado lançado no dia anterior, o MS assinalava
o acordo com o SIM como “uma solução que garante a estabilidade do
funcionamento do SNS, pilar do acesso à saúde em Portugal, tendo a mesma sido
aceite por um dos sindicatos”, e que, “sem prejuízo do aumento salarial agora
acordado, vai aplicar-se a todos os médicos, privilegiando as remunerações mais
baixas”.
Todavia, o secretário-geral
do SIM anunciou que o acordo abrangerá os sócios do seu sindicato, ou seja, “irá
abranger os médicos com contratos em funções públicas, que são a esmagadora
maioria dos que estão nos cuidados primários, e os que têm contratos de
trabalho individual sindicalizados no SIM”. E a presidente da FNAM reagiu,
dizendo que tal “não é possível” e garantiu ter base jurídica para fundamentar
que “os novos valores remuneratórios que se vão aplicar aos médicos a partir de
1 de janeiro, aplicam-se a todos os médicos especialistas e até aos médicos
internos, sindicalizados ou não, que trabalham no SNS”.
O advogado Filipe Lamelas
considera que “a questão é complexa, a sua discussão não é de todo clara e a
sua aplicação pode ter as duas leituras”. Aliás, segundo ele, “os próprios
tribunais não são unânimes nesta matéria, havendo decisões que confirmam as
duas perspetivas, ou se quisermos os dois argumentos jurídicos”. Está em causa o confronto de dois direitos
ou de dois princípios: o princípio da filiação sindical, porque, numa
negociação coletiva, de um sindicato com um empregador, esta só abrange os
filiados desse sindicato; e o do “salário igual para trabalho igual”. Porém, “tanto
um como outro são argumentos falíveis”.
Questionado sobre se esta questão seria
constitucional, pois nenhum trabalhador é obrigado a ser sindicalizado, confirmou
que “nada obriga a um trabalhador a filiar-se, mas o princípio da filiação
também é um princípio constitucional”. Assim, do seu ponto de vista, “o que se
tem de fazer aqui é medir […] este conflito e ver o que deve prevalecer”. Na
verdade, “o que
o Estado, que não é um empregador normal, é um empregador público, pode definir
é um mecanismo de extensão a todos os médicos para garantir igualdade”.
A classe médica, depois de um acordo que foi só
assinado por um sindicato – cujo secretário-geral reconhece não ser “um acordo
que satisfaz por completo, mas foi o acordo possível e sempre é mais do que os
3% para toda a função pública” – vai ter de esperar mais tempo para saber quem
será abrangido ou o que terá de fazer para ter também tais aumentos salariais. Pelo menos, 24 mil médicos
vão ter de esperar pelo mecanismo legislativo que está a ser definido pela
tutela. Isto tendo em conta que o SIM diz contar hoje com cerca de sete mil
sócios e a FNAM com quase dez mil (3895 no sindicato do Sul, 3114 no do Norte e
2700 no do Centro, o que dá um total de 9704 sócios", dos 31 mil médicos
que trabalham no SNS, 21 mil especialistas e 10 mil internos.
Para o SIM, que, tinha manifestado, a 23 de
novembro, disponibilidade para discutir só a questão salarial, como o governo
pretendia, e para chegar a um compromisso, este “foi o acordo intercalar possível que dará aos médicos um aumento de
400 euros mensais (valor bruto, sem descontos)”, mas, “não esconde a
incompetência deste ministério e deste governo na dificuldade de fixar médicos
no SNS”. E, para a FNAM, que sempre intentou negociar “um
acordo global, que envolvesse condições de trabalho e valorização salarial”, e
que rejeitou a ideia de um acordo intercalar, este “não permite garantir o que
vem a seguir, [por isso] é um mau acordo”.
Do lado do MS, este “longo
do processo negocial” exigiu “um enorme esforço para ir ao encontro das
reivindicações das estruturas sindicais, tendo como princípio uma solução que
reforce o SNS e um quadro de responsabilidade orçamental e equilíbrio entre as
carreiras da administração pública”.
A FNAM não aceitou o acordo, porque foi para a
última reunião com a mesma estratégia do início, que era chegar a um acordo
global, pois não interessa apenas a grelha salarial. Queria discutir os pontos fundamentais
da proposta conjunta dos dois sindicatos, como a reposição das 35 horas
semanais, das 12 horas de urgência e dos cinco dias suplementares de férias para
gozar em época baixa, que foram retirados (no tempo da troika) e que são importantes para os médicos e para a organização
dos serviços. Ao invés, a tutela “apenas quis discutir a grelha salarial”.
Porém, a FNAM apresentou a
sua proposta assente no valor-hora da tabela do regime de dedicação plena,
aprovada pelo governo e publicada em Diário
da República, a 7 de novembro, até porque “não foram colocados limites à
entrada de médicos naquele regime”, pelo que “haveria orçamento para negociar o
mesmo valor-hora para todos os médicos”. Assim,
começou por um valor hora de 50 euros para todos os médicos, pois o MS tinha
admitido que poderia chegar a ele, o que permitia um aumento da ordem dos 30%.
Como a tutela não aceitou, houve o recuo para 48 euros, o valor da tabela da
dedicação plena e que ainda dava a todos médicos um aumento de 22%, o que a
tutela rejeitou, apresentando uma proposta que, para os médicos que aquela
estrutura sindical representa, não faz sentido.
A negociação que agora termina começou na primavera
de 2022, em conjunto com FNAM e SIM, e passou à negociação em separado, devido
às divergências entre as duas estruturas sindicais sobre a forma como a tutela
a estava a conduzir. No final, a negociação voltou a juntar as duas estruturas à
mesma mesa com proposta conjunta, mas terminou sem consenso total.
O SIM prepara o reinício das negociações, ao passo
que a FNAM espera pelos novos interlocutores, mas manterá a “estratégia de
acordo global”. Por agora, na semana em curso, o SNS tem mais de 30 serviços de
urgência com constrangimentos por falta de médicos.
***
É abstruso o mesmo empregador, neste caso o Estado, dispor de trabalhadores
da mesma área de atividade em dois regimes laborais diferentes: contrato individual
de trabalho e contrato em funções públicas. É anedótico que o trabalhador deva
dizer se quer ou não aderir a um aumento salarial. Ora, como “pacta sunt
servanda”, o Estado, que prometeu pagar a todos o aumento, deve produzir
instrumento legislativo que o leve a cumprir o prometido.
E ainda fica por resolver o problema de outros trabalhadores do Estado, que
também são gente.
2023.11.30 – Louro de Carvalho
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