Pela
primeira vez, nos últimos 15 meses, a instância responsável pela política
monetária da Zona Euro não deu novas más notícias para as famílias e para
as empresas endividadas da Zona Euro. Com a inflação a recuar e a economia
quase a entrar em recessão, o conselho do Banco Central Europeu (BCE), na sua
reunião, em Atenas, a 26 de outubro, optou pela não subida das taxas de
juro, mas deixou no ar a dúvida, acentuada pelo conflito no Médio
Oriente, sobre o que poderão vir a fazer nos próximos meses. Isso
aconteceu, apesar de a presidente do BCE, Christine Lagarde, ter avisado para
juros altos, durante um período prolongado.
Como apontam os
indicadores e os economistas, a inflação na Zona Euro
está a descer, tendo ficado nos 4,3%, em setembro, mas ainda é mais do dobro
dos 2% de referência para o BCE. Simultaneamente, está muito débil a economia
do espaço da moeda única, que terá contraído no terceiro trimestre, queda que
ameaça repetir-se nos próximos trimestres. O contexto é de estagflação (combina inflação
elevada, estagnação económica e aumento do desemprego), com o risco de recessão a crescer. A guerra em
Gaza, além do drama humanitário, é mais uma variável negativa a pesar no
cenário da economia. Os efeitos na Europa ainda são limitados, mas a eventual escalada
do conflito pode ser catastrófica.
Foi com este pano de fundo que o BCE voltou a reuniu: as projeções das
principais organizações internacionais para a economia da Zona Euro, neste ano,
são de estagnação, com 2024 pouco melhor. Porém, crescem “os sinais de recessão
na Zona Euro”, segundo uma nota do Commerzbank Aktiengesellschaft (o segundo maior banco comercial da Alemanha), destacando os índices PMI (Purchasing Managers’
Index), que são barómetro da atividade económica. Em outubro, o índice para o
setor dos serviços caiu para 47,8 pontos e está “em território de recessão desde
há três meses”, diz a nota, apontando que o índice para a indústria
transformadora recuou para 43 pontos, permanecendo em “território recessivo há
meses”. Por outro lado, a subida das taxas de juro de referência do BCE
(subiram para 4,5% em mais de um ano) “está a abrandar a economia em todos os
países da Zona Euro”, tendo o espaço da moeda única caído 0,1% no terceiro
trimestre, face ao trimestre anterior.
Francisco Louçã, professor do Instituto
Superior de Economia e Gestão (ISEG) da Universidade
de Lisboa, diz que a política de juros altos do BCE leva à distorção da estrutura
financeira, ao empobrecimento de parte da população, à acumulação de
superlucros no sistema financeiro e à redução do investimento. “Tem um efeito
recessivo”, diz, vincando que “o BCE quer reduzir a procura para baixar a
inflação, mesmo que à custa de uma recessão”. Sustenta que “a causa desta
inflação não é procura excessiva, mas uma espiral de preços de oligopólios, que,
com a guerra, têm o álibi perfeito para manter superlucros”, e que o BCE o sabe,
pois “tem estudos onde são atribuídos aos lucros das empresas cerca de dois
terços da subida da inflação na Zona Euro”. Porém, como “nada é feito sobre
isso e a situação está a cristalizar-se”, verifica: “Temos uma inflação de 5%,
este ano, a cavalgar uma inflação de 8%, no ano passado. Estamos a caminho de
uma situação de estagflação e mesmo de recessão na Europa.”
Ricardo Reis, professor da London School of Economics, no Reino Unido,
admite que talvez estejamos a caminho de uma recessão. “Tendo em conta o enorme
choque que foi o aumento dos preços da energia, seria de esperar uma recessão”,
vinca, lembrando que os preços da eletricidade e do gás natural “ainda estão
muito acima de 2019”. Salienta que, até agora, “a economia tem-se revelado
extremamente resiliente”, mas o choque é “de tal forma negativo que leva a um
crescimento modesto em 2023 e 2024, talvez mesmo a uma pequena recessão”, sendo
a causa “o choque energético”, não “a política monetária”.
E João Borges de Assunção, professor da Católica-Lisbon, sustenta que a
inflação e a subida dos juros contribuem para a deterioração das perspetivas
económicas. Vinca o “risco de contrações em cadeia do PIB [produto interno
bruto]”, começado “já no terceiro trimestre de 2023” (terminou em setembro), e
“pode haver uma contração no próximo ano”. Contudo, “o nosso cenário central
para a Zona Euro é um crescimento de 0,4%, este ano, e de 0,7%, no próximo”,
adianta, lembrando que “o desemprego da Zona Euro se mantém em níveis
historicamente baixos”, parecendo difícil “falar de recessão sem uma subida
significativa do desemprego”.
A guerra em Gaza complica mais o cenário. O drama humanitário é evidente,
mas o impacto económico, nomeadamente para a Europa, para já, é contido.
Sente-se instabilidade financeira e nos preços das matérias-primas. O barril de
petróleo brent subiu mais de 9%, após os ataques do Hamas a Israel, mas o preço
aliviou nos últimos dias e o aumento está nos 4%. Quanto ao gás natural de referência
na Europa, acumula a valorização de 37% (chegou a ser de 41%).
Francisco Louçã nota que “a situação em Gaza é imprevisível” e o impacto
“depende da escalada da situação, que pode ser catastrófica”, vindo os efeitos a
ser “sempre negativos sobre a confiança e o investimento”. E a João Borges de
Assunção parece “prematuro que esses efeitos alterem, de forma material, as
perspetivas de evolução do produto”. Para Ricardo Reis, se os preços da energia
dispararem, a recessão tornar-se-á “mais provável” e haverá choque inflacionista.
Por si só, o choque seria temporário e sem impacto persistente na trajetória da
inflação”, diz o economista, considerando que é cedo para especular sobre o
conflito”. E Borges de Assunção diz que o conflito afetará o preço do petróleo
e a inflação subjacente, que retira as variações de preços dos bens mais
voláteis, e para a qual o BCE olha com mais rigor.
Contudo, após mais de dois anos com a inflação na Zona Euro, acima dos 2%,
“as expectativas estão parcialmente desancoradas”, alerta Ricardo Reis. Assim,
“se um aumento nos preços da energia levar estas expectativas a subirem, isso
porá seriamente em causa a trajetória descendente da inflação”. E avisa: “Se a
inflação não estiver a descer de forma suficientemente rápida para regressar ao
alvo de 2%, o BCE tem de subir as taxas de juro.”
***
Há 10 anos,
Portugal integrava as cinco economias da Zona Euro resgatadas pela troika, desde 2010, de bancarrota tida
como certa pelos mercados. A nossa dívida integrava o clube das cinco piores do
euro, juntamente com a Grécia, a Irlanda, Chipre e a Espanha, sucessivamente
resgatados. Entretanto, ocorreu uma revolução na geografia do prémio de risco
exigido pelos investidores para deterem dívida de alguns dos periféricos do
euro.
A Irlanda subiu rapidamente para o clube dos melhores da Zona Euro, reduzindo
a dívida pública para menos de 80% do PIB, já em 2015, e Portugal trilhou um
caminho de vários anos para se financiar com juros de longo prazo mais baixos
do que a Espanha. Nos mais recentes leilões, na dívida a vencer em 2029, o
Tesouro português pagou o juro médio de 3,181%, enquanto o espanhol pagou
3,679%. Numa obrigação a vencer em 2035, Portugal pagou 3,632%, menos do que
Espanha, num título a vencer mais cedo, em 2033, em que Madrid pagou 4,067%.
Segundo as previsões recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) para 2024,
o rácio da dívida portuguesa no PIB já será inferior ao da Bélgica e ao da França.
Apesar da subida dos juros da dívida desde as anteriores reuniões do BCE
até 14 de setembro, graças ao agravamento do ciclo de aperto monetário, é
irreconhecível a posição portuguesa com lentes dos tempos da troika, quando a nossa economia se
incluía no pejorativo acrónimo dos PIIGS (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e
Espanha). Desde 14 de setembro, os juros a 10 anos para a nossa dívida subiram
pouco mais de duas décimas, registando 3,58%.
O ataque do Hamas, de 7 de outubro não agravou a trajetória: os juros
desceram de 3,63%, a 6 de outubro (véspera da operação o dia 7) para 3,58%, a
25 de outubro. Em termos de prémio de risco exigido pelos investidores, o spread para a dívida portuguesa é,
agora, mais baixo do que para 11 outras economias do euro. Está já muito
próximo do prémio exigido para a dívida belga. O prémio de risco corresponde ao
spread exigido em relação ao custo de
financiamento da dívida alemã, referência na Zona Euro. Num leilão recente de
dívida portuguesa a vencer em 2032, Portugal pagou 3,383%. A Bélgica, na
colocação de dívida a vencer em 2033 pagou 3,586%. O Tesouro português ainda
não lançou nova referência de dívida a 10 anos, a vencer em 2033, pelo que não é
possível a comparação direta com as emissões belgas e espanholas.
Segundo as projeções do algoritmo do portal World Government Bonds (WGB),
especializado na dívida pública mundial, a manter-se o nível de aperto
monetário do BCE ao longo de 2024, a trajetória de fundo dos juros será
ascendente. Em dezembro do próximo ano, os juros portugueses no prazo de
referência devem chegar a 4,5%, cerca de 1% mais do que atualmente. Apesar de
maior custo do financiamento das novas emissões de dívida de longo prazo, em
2024, a concretizar-se tal projeção, os juros portugueses deverão estar entre
os cinco mais baixos da Zona Euro, se a estratégia orçamental apresentada para
2024 se concretizar. O nível de juros português será similar ao da dívida
neerlandesa e apenas superior ao da Alemanha e da Irlanda.
Apesar da queda do rácio no PIB, a trajetória da dívida pública portuguesa
foi de agravamento até julho. Segundo dados do Banco de Portugal (BdP), a
dívida pública aumentou de 272,44 mil milhões de euros, no final de 2022, para 280,93
mil milhões, em julho. Em agosto, registou-se uma redução de dívida de 468
milhões. O BdP ainda não disponibilizou os dados para setembro, mas a tendência
de redução deve ter continuado a atender aos dados que a Agência de Gestão da
Tesouraria e da Dívida Pública (IGCP) publica sobre dívida direta do Estado (diferente
da avaliada pelo BdP, na ótica dos critérios de Maastricht). O stock da dívida direta reduziu-se cerca
de mil milhões de euros, em setembro, caindo 292,58 mil milhões, em agosto,
para 291,58 mil milhões, em setembro. E recentemente, Portugal amortizou uma
obrigação lançada em 2008, que tinha um saldo de 9364 milhões, e não realizou, em
outubro, a colocação de nova dívida em bilhetes ou obrigações do Tesouro, tendo
só feito operações de troca de dívida.
***
Tudo isto se reflete nas taxas de juro Euribor. Ao fim de quase dois
anos de subidas, o aumento das taxas de juro Euribor estará perto do fim. Os
mercados antecipam que o pico seja atingido até final deste ano, num patamar
quase em linha com os valores atuais. A partir do início de 2024, espera-se uma
descida nas taxas de juro Euribor, mas as famílias não terão grande alívio nas
prestações do crédito à habitação, pois o recuo deverá ser lento e contido.
Depois de anos em território negativo e atingidos mínimos históricos em
dezembro de 2021, as taxas de juro Euribor começaram a subir no início de 2022,
o que se intensificou desde o verão de 2022, por causa do aperto da política
monetária do BCE para combater a inflação. Em pouco mais de um ano, o BCE
aumentou as taxas de juro de referência em 4,5%.
Como resultado, as taxas de juro de mercado Euribor disparam, atingindo os
valores mais altos desde novembro de 2008, máximos renovados recentemente, no
caso da Euribor a três meses (nos 4%) e a seis meses (nos 4,14%) e, no final de
setembro, no caso da Euribor a 12 meses (4,23%). Desde então, as Euribor
aliviaram ligeiramente, mas mantêm-se perto desses patamares. Em Portugal, o
impacto foi sentido em força pelas famílias. Há cerca de 1,5 milhões de
contratos de crédito à habitação em pagamento, tendo quase 93% taxa de juro
variável indexada à Euribor, nalgum dos prazos (o mais frequente, em termos de
número de contratos, é a seis meses).
Com a Euribor a disparar, as prestações mensais têm sofrido forte aumento. Porém,
como esperam os mercados, a subida das taxas Euribor e das prestações mensais da
casa deve estar perto do fim. Os contratos futuros sobre a Euribor a três
meses, que traduzem as expectativas dos investidores, sinalizam que o pico será
atingido até fins de 2023, nos 4%, patamar quase em linha com os valores
atuais. Assim, as taxas Euribor subirão pouco e durante pouco tempo, caso se
cumpra a expectativa dos mercados. Os investidores estão pendentes das
mensagens do BCE, com as taxas de juro na agenda. Porém, a evolução da guerra
em Gaza pode induzir alterações.
Agora, mais do que dramática, a situação é incerta e o futuro está de tempestade.
2023.11.04 – Louro de Carvalho
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