A liturgia do 31.º domingo do Tempo Comum no Ano A
interpela-nos quanto à solidez do nosso compromisso com Deus e com o seu Reino,
que postula seriedade, verdade e coerência. São interpelados, em especial, os
animadores das comunidades cristãs acerca da verdade do seu testemunho, da
retidão e da pureza dos motivos, do efetivo empenho na construção de
comunidades comprometidas com os valores do Evangelho, na atenção aos sinais
dos tempos.
***
No Evangelho (Mt
23,1-12), Jesus fala à multidão e aos discípulos sobre a postura dos fariseus e
dos escribas, cuja pretensão à posse exclusiva da verdade critica
violentamente, denunciando-lhes a incoerência, o exibicionismo e a insensibilidade
ao amor e à misericórdia. Mais do que informação histórica, o texto evangélico
é interpelação aos crentes no sentido de as suas atitudes de hoje serem
semelhantes, pois, introduzindo-se tais atitudes na família cristã, destroem a
fraternidade, fundamento da comunidade.
A passagem proclamada nesta dominga introduz um extenso
discurso de condenação, que Jesus pronuncia contra os líderes religiosos de
Israel. Nesse discurso, surgem as sete famosas invetivas “ai de vós, escribas e
fariseus…”. É a resposta de Jesus à intransigência dos Judeus em acolher o
desígnio de Deus. Mateus põe na boca de Jesus uma apreciação extremamente
negativa dos fariseus e dos escribas (especialistas da Escritura, muitos dos
quais eram fariseus).
Este retrato dos fariseus não é totalmente justo, pois, regra
geral, eram crentes entusiastas, que procuravam conhecer e se esforçavam por
cumprir escrupulosamente a Lei de Moisés. Presentes em todos os passos da vida
religiosa dos Israelitas, procuravam instilar no Povo o respeito pela Lei, a
fim de que Israel fosse, cada vez mais, o Povo santo. Era um grupo sério,
bem-intencionado e empenhado na santificação da comunidade israelita. Contudo,
o seu fundamentalismo em relação à Lei foi criticado por Jesus, visto que,
afirmando a superioridade da Lei, desprezavam o homem e criavam no Povo o
sentimento de pecado e de indignidade que lhe oprimia as consciências;
esqueciam o essencial – o amor e a misericórdia. E, ao terem-se a si próprios como
os “puros” que viviam de acordo com a Lei, desprezavam o “‘am aretz” (povo do país)
que, pela ignorância e pela dura vida que levava, não podia cumprir
integralmente os preceitos da Lei.
A opinião de Jesus sobre os fariseus não terá sido tão dura
como a que se refere aqui. Com efeito, há textos em que a relação de Jesus com
os fariseus é simpática. No entanto, é de recordar que o Evangelho de Mateus
apareceu na parte final do século I, quando os fariseus eram a corrente
dominante no judaísmo e apareciam como o rosto do adversário judaico com que os
cristãos se confrontavam no quotidiano. Talvez mais do que expor a opinião de Jesus
sobre os fariseus, está em causa a imagem que os cristãos da época tinham do
judaísmo e dos seus líderes.
O trecho em apreço divide-se em duas partes. Na primeira, vem
um retrato dos fariseus (vv. 1-7); na
segunda (vv. 8-12), conselhos aos
discípulos para que não se transformem em fariseus.
Os fariseus e os escribas sentam-se na cadeira de Moisés, ou
seja, arrogam-se autoridade exclusiva para interpretar a Lei de Moisés. Porém, a
acusação assenta melhor nos fariseus da época de Mateus, do que nos da de
Jesus. Na época de Mateus – no judaísmo pós-destruição de Jerusalém –, os
fariseus eram a corrente dominante e funcionavam como a autoridade exclusiva na
interpretação e na aplicação da Lei, facto que não sucedia no tempo de Jesus.
Eles são acusados, aqui, de se terem apropriado da Palavra de
Deus e de a terem desvirtuado com regras, normas, obrigações e interpretações legalistas
e casuísticas que, em vez de favorecerem o encontro do homem com Deus, serviam
para afastar os dois compartes da Aliança.
São incoerentes, pois “dizem e não fazem”. O seu
comportamento não é coerente com as suas palavras e ensinamentos. É “a distância
entre o dizer e o fazer”, que o Papa denuncia. Assim, os cristãos são
convidados a escutar os seus ensinamentos – o que muitos cristãos de origem
judaica faziam – mas a não imitar o seu exemplo.
Carregam os homens com fardos insuportáveis. De facto, as suas
exigências tornavam impossível a vida dos crentes, tantas (impossíveis de
conhecer e de cumprir) eram as obrigações e proibições que faziam derivar da
Lei, que se criava nos crentes a
consciência de impureza e de pecado que lhes oprimia as consciências e lhes
matava a alegria. Era a autêntica escravatura da Lei.
Finalmente, gostam de fazer da fé e da piedade espetáculo e
exibição. Fazem as coisas para que todos percebam a sua grandeza e
superioridade, não se esquecendo nunca de publicitar a sua fé e piedade. Por
vaidade, alargam as filactérias (caixinhas de couro contendo trechos da Torah,
que os israelitas usam, a partir dos 13 anos, nas orações matinais) e as borlas
(franjas das quatro extremidades do manto – tallît – que o judeu piedoso punha
aos ombros durante a oração). O que lhes interessa é imagem, reconhecimento dos
homens e títulos de honra. Querem os primeiros lugares nas sinagogas e nos
banquetes, rezam e querem ser saudados nas praças, vangloriam-se da sua prática
religiosa e orgulham-se da sua pureza, nem sempre efetiva. É o abstruso “primado
do exterior sobre o interior”, que o Papa Francisco põe em evidência em muitos cristãos
de hoje. Exibicionistas, opressores e hipócritas!
É importante que o farisaísmo não invada a Igreja de Jesus,
quer da parte do laicado, quer da parte da hierarquia. E, se a invade, que seja
denunciado e repelido. Não vale a pena entrar na guerra de título académicos ou
parentais. Não há lugar a tratamento por pai, mestre ou doutor. Com efeito, um
só é o nosso Pai, que está nos céus; um só é o nosso mestre; um só é o nosso
doutor, Cristo.
A comunidade cristã é a pátria da fraternidade, não da
sociedade classista: “Vós sois todos irmãos”. A Igreja não é constituída por
superiores e súbditos, mestres e seguidores, pais e filhos, doutores e alunos,
mas por irmãos iguais, que têm um Pai comum e que seguem o mesmo Cristo. Na
Igreja não pode haver quem queira mandar nos outros, ou quem se considere a si
próprio mais importante, mais digno, mais honrado, mais preparado do que os
outros. Na Igreja não pode existir, à imagem da estrutura hierárquica judaica,
um esquema complicado de graus, de acordo com a diferente dignidade dos membros
da comunidade. Na Igreja, não fazem qualquer sentido os títulos de honra, os
lugares reservados, a luta pelos primeiros lugares. Na comunidade de Jesus, só
o amor e o serviço devem ter o primeiro lugar: “O maior de entre vós, será o
vosso servo”. Os que têm o múnus da paternidade ou o mister do ensinamento, que
amem, sirvam, guardem e cuidem, sob a égide de Cristo. Não vá acontecer que a
sede de poder e a veleidade de se apresentarem como sábios os levem a porem-se
no lugar de Jesus e a empurrá-Lo pela porta fora!
A comunidade cristã deve anunciar profeticamente o Reino de
Deus. Ora, nesse Reino disponibilizado aos homens por Deus e inaugurado por
Jesus, só o Pai (Deus) e o Filho (Jesus) ocupam um lugar de honra. Os crentes,
iguais em dignidade, são irmãos; entre si, devem amar-se e fazer-se servidores
uns dos outros.
***
Na primeira leitura (Ml 1,14b-2,2b.8-10), um mensageiro de
Javé interpela os sacerdotes de Israel. Convocados por Deus para serem mensageiros
do Senhor do universo, para ensinarem a Lei e guiarem o Povo para Deus, deixaram-se
sufocar por interesses egoístas, negligenciaram os seus deveres, desvirtuaram a
Lei. São, pois, os responsáveis pelo divórcio entre Israel e Deus. E Javé anuncia
que não pode tolerar tal comportamento e que os vai desautorizar e desmascarar.
O termo “malaquias” não é nome próprio. Significa “o meu
mensageiro”. É o título de um profeta anónimo, do qual pouco sabemos e que se
apresenta como mensageiro de Javé. Atuando em Jerusalém, no período
pós-exílico, é aguerrido defensor dos valores judaicos, fervoroso pregador de
reformas, zeloso defensor do culto autêntico, favorável ao Templo, à pureza dos
sacerdotes e dos levitas, defensor dos sacrifícios e contrário aos matrimónios
mistos (entre judeus e não judeus). No seu tempo (entre 480 e 450 a.C.), o
Templo estava reconstruído e o culto já funcionava, embora mal. Contudo, estava
apagado o entusiasmo pela reconstrução.
Desanimado, via que as antigas promessas de Deus não se
tinham cumprido e que o Povo, caído na apatia religiosa e na falta de confiança
em Deus, duvidava do amor de Deus, da sua justiça, do seu interesse por Judá. Este
ceticismo repercutia-se no culto e na ética: desleixava-se o culto e
multiplicavam-se as falhas, a injustiça e a arbitrariedade. E o mensageiro de
Deus reage contra a situação em que o Povo de Judá está a cair. Confronta cada
um com as suas responsabilidades para com Javé e para com o próximo e exige a
conversão do Povo e a reforma da vida cultual, na lógica deuteronomista. Se o
Povo se obstinar em caminhos de infidelidade à Aliança, voltará a conhecer a
morte e a infelicidade; mas, se se voltar para Javé e cumprir os mandamentos,
voltará a gozar da vida e da felicidade que Deus oferece aos que seguem os seus
caminhos.
O trecho veterotestamentário em referência integra a longa
perícopa em que o profeta lamenta a falta de respeito e o desprezo da
comunidade judaica pelo nome de Javé, situação de que os culpados são,
sobretudo, os sacerdotes. Deviam potenciar a relação entre o Povo e Deus, mas,
preocupados com os interesses pessoais e movidos pela sede de lucro, oferecem no
altar alimentos impuros e sacrificam animais doentes, cegos ou coxos, fazendo
com que os atos cultuais sejam a expressão, não do amor, mas da indiferença e
do desrespeito do Povo por Javé. E, além de culpados da perversão do culto, são
acusados de falsificarem, gravemente, a Palavra de Deus.
Malaquias tem consciência de que Javé fez “uma Aliança com
Levi”, pela qual os sacerdotes receberam a missão de ensinar a Lei a Israel e de
apresentar os sacrifícios no altar de Deus. E, constituídos “mensageiros do
Senhor do Universo”, deviam rejeitar a iniquidade, conhecer a Lei e
apresentá-la fielmente ao Povo, caminhar com Javé na paz e na retidão e afastar
o Povo do mal.
Ora, ao invés, desviam-se do caminho da Lei e dos mandamentos
e fazem o Povo vacilar, ensinando a Lei de forma deturpada. Em vez de orientarem
o Povo na rota da Aliança, desviam-no para longe de Deus. Não consideram todos
iguais e fazem aceção de pessoas. Dão tratamento desigual a ricos e a pobres, a
poderosos e a humildes. Como não pode pactuar com tais atitudes e
comportamentos, vai desautorizar e desqualificar estes sacerdotes indignos,
tornando-os desprezíveis e abjetos aos olhos de todo o Povo. Todos verão que
eles já não têm a confiança de Deus e que lhes foi retirada a autoridade de
testemunhas de Deus.
***
A segunda leitura (1Ts
2,7b-9.13) apresenta em contraste com a primeira, o exemplo de Paulo, Silvano e
Timóteo – os evangelizadores da comunidade de Tessalónica. Do esforço
missionário feito com amor, humildade, simplicidade e gratuitidade, nasceu uma
comunidade viva e fervorosa, que acolheu o Evangelho como dom de Deus, que se
comprometeu com ele e que o testemunha com verdade e coerência.
Nos três primeiros capítulos da carta, Paulo agradece a Deus
a sua ação em prol da comunidade. A comunidade nasceu e consolidou-se de forma
tão prodigiosa e em tão pouco tempo, o que só se justifica pela intervenção de
Deus.
Após clássica oração de louvor a Deus Pai e ao Senhor Jesus
Cristo, que tornaram possível em Tessalónica o milagre do Evangelho, Paulo
evoca, em ação de graças, os inícios dessa jovem, mas entusiasta comunidade
cristã. Começa por descrever o amor e o afeto de Paulo, Silvano e Timóteo pelos
Tessalonicenses, recorrendo à imagem da mãe. Os missionários foram “como a mãe
que acalenta os filhos que anda a criar” e manifestaram aos Tessalonicenses, em
todos os momentos e situações, o seu amor, a sua ternura e o seu afeto. Feitos
pequenos, humildes e simples, os evangelizadores nunca trataram ninguém com
aspereza ou sobranceria; manifestaram a todos a sua afeição, amaram todos com
um amor serviçal e desinteressado; puseram-se ao serviço da comunidade,
aguentando os trabalhos e canseiras sem lamento nem queixume; e partilharam com
a comunidade o Evangelho e a própria vida.
Paulo releva a gratuitidade da atuação dos missionários.
Pregaram o Evangelho e trabalharam, noite e dia, para não serem pesados a
ninguém. No referente a Paulo, este trabalho referir-se-á ao ofício de tecedor
de tendas, que terá aprendido na meninice, com o pai. Esse ofício ajudá-lo-á a
ganhar o sustento e torna-o identificado com todos os outros homens. O que
interessa é que Paulo e os companheiros não pregaram o Evangelho por interesse
pessoal, com vista à remuneração material, mas apenas no interesse do Evangelho
e da salvação de todos os homens e mulheres.
O texto termina com a referência ao modo como os Tessalonicenses
acolheram a Palavra: “não como Palavra humana, mas como é realmente, Palavra de
Deus”, que permanece ativa no coração dos crentes e os transforma. A comunidade
cristã é fruto da Palavra proclamada e da Palavra escutada, acolhida e vivida.
Os Tessalonicenses tiveram, desde início, a perceção de que a Palavra que lhes
foi anunciada era Palavra de Deus e não a palavra de Paulo ou de outro pregador.
No processo de anúncio, de acolhimento e de transmissão do Evangelho, todos
devemos ter a consciência de que o importante não é o instrumento humano que
anuncia a Palavra, mas a proposta que Deus nos faz através desse instrumento.
***
É esta humildade igualitária de base assumida por pregadores
e por destinatários da pregação que lança e relança a autenticidade da seriedade,
da verdade e da coerência do nosso compromisso pessoal e comunitário com Deus e
com o seu Reino, na Igreja, mas com a referência essencial a Jesus Cristo. Que
o Senhor nos guarde junto de Si, na sua paz, com vista a que o compromisso dos
crentes seja a mola propulsora da vida em abundância para todos.
2023.11.05
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário