O artigo 113.º, n.º 6, da
Constituição da República Portuguesa (CRP) estabelece: “No ato de dissolução de órgãos
colegiais baseados no sufrágio direto tem de ser marcada a data das novas eleições,
que se realizarão nos sessenta dias seguintes e pela lei eleitoral vigente ao
tempo da
dissolução, sob pena de inexistência jurídica daquele ato.”
Por
sua vez, o artigo 19.º, n.º 1, da Lei Eleitoral para a Assembleia da República
(AR) – Lei n.º 14/79, de 16 de maio, na atual redação – estabelece: “O
Presidente da República marca a data das eleições dos deputados à Assembleia da
República com a antecedência mínima de 60 dias ou, em caso de dissolução, com a
antecedência mínima de 55 dias.”
Tais
preceitos determinam os mínimos, pelo que, à partida, não se pode dizer que as
eleições legislativas tenham de se realizar no prazo de 55 dias contados a
partir da data do decreto de dissolução da AR. Todavia, é desaconselhável a
protelação no tempo.
Ora,
o conhecimento público, a 7 de novembro, através de comunicado do gabinete de
imprensa da Procuradoria-Geral da República (PGR), de que estava a decorrer, no
Supremo Tribunal de Justiça (STJ), um inquérito à atividade do
primeiro-ministro (PM), levou a que este apresentasse ao Presidente da
República (PR) o seu pedido de demissão, embora se disponibilizasse para
continuar em funções até ao momento que o chefe de Estado julgasse conveniente.
Isto quer dizer que não se tratava de passagem imediata ao regime de governo de
gestão.
O
PR, de forma precipitada (do meu ponto de vista), declarou aceitar o pedido de
demissão do PM. Não obstante, em vez de manter em funções o demissionário, até
conseguir nomear um PM e um governo no atual quadro de maioria parlamentar, optou
por ouvir os partidos com assento parlamentar e o Conselho de Estado e decidiu
a convocação de eleições para 10 de março, dando tempo para a AR aprovar o
Orçamento do Estado para 2024 (OE2024), deixando claro que, após a aprovação do
OE2024, dissolveria a AR.
Sem
me deter na análise das razões do PR, o que já fiz em tempo, convém referir que
uma AR no estado de capitis dimnutio,
isto é, com o látego da dissolução sobre si, não tem condições políticas para
aprovar um tal instrumento estruturante da governação. Por isso, a decisão
imediata de aceitação do PM foi precipitada. Um tempo mais alongado de reflexão
teria sido prudente. Não vale argumentar com precedente do passado, já que nem
sempre o passado serve de bitola.
Se
a suspeita que impende sobre o PM é grave, ele não deveria continuar em
plenitude de funções e a solução deveria passar, necessariamente, pela formação
de novo governo, o mais depressa possível. Porém, é referido que os partidos
estiveram a favor da convocação de eleições. Até o partido do governo, que se
mostrou disponível para outro cenário, se disponibilizou para acolher a
esperada decisão do PR. É óbvio que um partido, sobretudo um partido dito do
arco da governação, ainda que não lhe convenha, tem de estar sempre disponível
para eleições e dizê-lo claramente. Já o Conselho de Estado se dividiu a meio
entre a opção pelas eleições e pela dissolução da AR, o que é legítimo, desde
que os apostadores em novas eleições se tenham baseado na leitura política da
realidade e não se tenham constituído juízes da ação governativa e parlamentar.
Em
todo o caso, a decisão cabia ao PR, que não a remeteu para as mãos de ninguém,
embora todas as razões invocadas, exceto a baseada na prerrogativa
constitucional, sejam discutíveis.
Os partidos devem estar
disponíveis para eleições a todo o momento, para o que têm de se organizar
internamente, não devendo condicionar as exigências da Constituição e da Lei
Eleitoral aos seus prazos. Por isso, acho absurdo o PR sentir-se obrigado a protelar
o decreto presidencial de dissolução parlamentar e de marcação de eleições,
porque o partido A ou o partido B precisa de eleger os seus órgãos internos.
Também alguns partidos,
apoiados nos seus estatutos, sofrem de pedras de tropeço que não os deixam
responder às exigências do momento. Para quê umas eleições diretas
personalizadas de um presidente de partido, no caso do Partido Social Democrata
(PSD), ou de um secretário-geral, no caso do Partido Socialista (PS), a que se
segue um congresso eletivo ancorado em moções estratégicas. Dois momentos
partidários distanciados no tempo são perda de tempo e podem criar situações
absurdas. Por exemplo, ser indivíduo eleito líder um e a sua moção estratégica
não concitar a maioria dos congressistas. Nada teria contra as diretas, desde
que ocorressem no tempo do congresso, cabendo aos congressistas verificar a
regularidade das votações e apurar a moção vencedora e a representação
proporcional das demais.
Cada partido tem o seu órgão
estatutário máximo entre congressos. Foi desse órgão que resultou a
apresentação de Francisco Pinto Balsemão a Ramalho Eanes para que o indigitasse
como PM, bem como a de Santana Lopes a Jorge Sampaio. Pelo facto de Francisco
Sá Carneiro ter corporizado a segunda vitória de maioria absoluta da Aliança
Democrática (AD), em 1980, e ter falecido meses depois, ninguém exigiu eleições.
Ao invés, todos os partidos da AD se julgavam herdeiros do legado do falecido
líder. Nesse tipo de estabilidade é exemplo o Reino Unido.
Também não faz sentido
alegar que a eleição de um órgão colegial, resultante de listas partidárias, se
deve à vitória de uma personalidade em concreto, por exemplo o
primeiro-ministro. O único órgão de soberania que é unipessoal é o Presidente da República. E, mesmo
este, nos seus impedimentos, é substituído pelo presidente da AR, que se torna Presidente
da República interino.
A
lei eleitoral para as autarquias estabelece expressamente que o cabeça de lista
do partido ou do grupo mais votado será o presidente da câmara, no caso do
município, e o presidente da junta, no caso da freguesia. Não obstante, em caso
de morte, de incapacidade, de renúncia ou de perda de mandato desse cabeça de
lista, não se marcam eleições: a lista vencedora faz subir os demais, tal como
as outras em relação aos seus eleitos impedidos.
João Galamba foi ouvido na AR, onde questionado por alguns deputados, garantiu que não se demitia. Marques Mendes, no seu comentário dominical na SIC, colocou a hipótese de a atitude de Galamba mostrar que Galamba tem o PM nas mãos.
Marques
Mendes sabe que um ministro não depende da AR, mas que o seu lugar depende do PM,
ao qual incumbe propor a exoneração ao PR. Repito-me, ao dizer que João Galamba
se deveria ter demitido na primavera. Todavia, o PR não deveria ter exigido ou
sugerido a necessidade da sua exoneração. Cabe ao PM propor a nomeação ou a
exoneração e ao PR decretá-las.
Aliás,
o comentador propalou Urbi et Orbi a
alegada intenção de o PM, na sua comunicação de 11 de novembro, pretender
condicionar a Justiça, quando do seu teor se deduz uma tentativa, porventura
insuficiente, da explicação do que se passava com a captação do investimento. Mais
supôs, demagogicamente, que o PM pretendeu condicionar a Justiça, por saber que
o MP iria pedir a prisão preventiva de dois arguidos, até há pouco seus amigos,
mas que descartou depois de os usar.
Acusam
João Galamba de ter retirado para si as competências do ministro da Economia
com a publicação da Portaria n.º 248/2022, de 28 de setembro. Essa portaria
altera a Portaria n.º 96/2004, de 23 de janeiro, no sentido de algumas
competências que estavam na área do Ministério da Economia passarem para o membro do Governo responsável pela área da Energia. Isto
deve-se à alteração da orgânica do governo e não às supostas ambições do então
secretário de Estado da Energia. Efetivamente, o despacho de indiciação do Departamento
Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) refere que
João Galamba é suspeito de ter aprovado, em 2022, uma portaria com contributos
dados por advogados ligados à Start Campus, em benefício desta.
Porém, a portaria em causa não tem nada que ver com o
projeto do centro de dados, mas com o uso de antigas centrais
termoelétricas, o que revela uma inconsistência
do despacho Ministério Público (MP).
Também o MP reconheceu, durante o interrogatório a um dos
arguidos que se enganou na transcrição de uma escuta trocando o nome do
ministro da economia com o do PM, cujos nomes são parecidos.
Efetivamente, a Justiça não pode nem deve ser condicionada pelos
políticos stricto sensu (esta
expressão remete para o facto de toda a atividade da Justiça também ser
atividade política, porque de órgãos constitucionais do poder político), mas
também os operadores da Justiça não podem nem devem, de forma aligeirada,
pronunciar-se sobre os detentores do poder político, de modo a perturbar
inexoravelmente a governação. Confundir portarias, nomes de governantes,
publicitar inquéritos a membros do governo (sem confirmação do fundamentos das
suspeitas), a não ser em flagrante, omitir num comunicado a data do início de
um inquérito ao PM, passar à comunicação social informação reservada ou sob
segredo de justiça, são coisas que não dignificam a Justiça e podem causar
danos colaterais irreparáveis ou, pelo menos, custos de oportunidade.
Com efeito, a dissolução do Parlamento deita por terra a revisão
constitucional em curso, aliás quase na reta final, ficando por resolver as questões
dos metadados e das emergências sanitárias.
Não vale o presidente do STJ, depois de vir a terreiro clamar
que a corrupção atingiu a administração pública e criticar o governo por não
ter reformado a Justiça, vir dizer que não havia motivo para a demissão do PM.
Não o havia do ponto de vista jurídico, mas havia-o no quadro político da
decência, também porque estamos perante mais um caso de Justiça-espetáculo.
Por fim, uma referência à
seguinte nota da página de Presidência da República de 13 de novembro: “Na sequência das propostas do primeiro-ministro,
agora recebidas, o Presidente da República exonerou, a pedido dos próprios e
com efeito imediato, João Saldanha de Azevedo Galamba, das funções de Ministro
das Infraestruturas, bem como Pedro Miguel Ferreira Jorge Cilínio, das funções
de Secretário de Estado da Economia.”
Não são de contestar as exonerações em causa, nem outras que venham a
seguir, mas o “com efeito imediato”. Com efeito, não se diz quem sucede aos
governantes ora exonerados. Para a exoneração ter efeito imediato, deveria ter
sido dito o que será feito das pastas em causa. Quem sucede aos exonerados:
novos titulares, outros membros do governo, PM a acumular as pastas em causa,
etc.? Serão elas extintas?
Se passar o primeiro-ministro a acumular com as suas funções as destas
pastas, é caso para nos interrogarmos por que motivo vai ser exonerado. Talvez
o tempo venha a dar razão a quem sugeria a não realização intempestiva de eleições
antecipadas.
***
Estes apontamentos não abrangem, obviamente, tudo o que se passa nas instituições,
mas dá conta de sintomas de baralhação generalizada. É pena que a regeneração
endógena não funcione.
2023.11.13 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário