Não me move especial simpatia pelo atual primeiro-ministro
(PM), aliás nem por nenhum dos outros, com exceção dos já falecidos Carlos
Alberto da Mota Pinto e Maria de Lourdes Ruivo de Matos Pintasilgo, por motivos
diferentes. Dedicaram à causa pública como se de um serviço de missão de
tratasse, tomaram medidas corajosas e não tiveram tempo de abusar do poder.
No entanto, tenho-me surpreendido a falar bem de
António Costa. Não está em causa a adesão às suas políticas, mas a desproporção
das críticas de que elas são objeto, parecendo que se trata de uma ação
concertada à esquerda e à direita, mas com pendor mais verrinoso da atual
direita, quiçá pelo facto de os governos do atual PM lhe haverem tomado algumas
das suas bandeiras, como as contas certas, a redução da dívida e do défice e o
apoio empresarial.
É injusto, do meu ponto de vista, meter no saco
de António Costa as críticas às três intervenções do Fundo Monetário
Internacional (em 1977-1978, em 1983-1984 e em 2010-20011, não era membro do
governo), bem como todo o alegado despautério do tempo de Sócrates. Porém, é
certo que retirou o Partido Socialista (PS) das mãos de António José Seguro,
sob o pretexto de as suas vitórias saberem a poucochinho, quando as de Costa
também souberam a poucochinho, exceto a que outorgou ao PS a maioria absoluta,
em 2022. Por outro lado, não resolveu o fantasma que a gestão política de
Sócrates ficou a impender sobre a governação socialista, nem logrou expurgar do
PS a tentação de “interesseirismo” nos departamentos governamentais, nos institutos
públicos, nas empresas públicas e nas autarquias. Não soube (ou não quis) deixar
de se rodear de gente com rabos-de-palha, alguma dela medíocre ou sem
escrúpulos, e manteve na governação algumas personalidades durante demasiado
tempo (é certo que o Presidente da República, nesse sentido, revelou uma andragogia
inepta, ao questionar governantes, individualmente na praça pública). Além
disso, vem cumprindo todas as promessas que faz, mas cujo cumprimento é
bitolado por si.
Não obstante, governou o país de forma a fazer cicatrizar,
a princípio, muitas das feridas sociais e económicas criadas pela crise de
2008, que acabou por induzir um programa de ajustamento económico e financeiro;
descongelou a progressão das carreiras na administração pública (embora não
como se queria); reforçou a universalidade da educação pré-escolar; e enfrentou
a pandemia de covid-19, a economia pressionada pela guerra da Ucrânia e pelo
conflito Israelo-Palestiniano, bem como a alta de juros, apoiando a investigação
científica, as famílias e as empresas. Porém, a sua governação com maioria parlamentar
absoluta, sob vigilância e pressão do Presidente da República (PR), que
personalizou em António Costa a obtenção da maioria, ficou marcada por uma série
de excessivos casos e casinhos, pelo protelamento da decisão sobre o local e
tipologia do novo aeroporto internacional (depois de ter, inicialmente, preconizado
a ideia da localização no Montijo), pelo ziguezague em relação à TAP e pelo
atraso na concretização dos projetos da ferrovia, sobretudo na modernização de algumas
linhas férreas e no desenvolvimento do sistema de comboios de grande velocidade
(TGV).
***
Apesar de o PM ter insistido no refrão “à Justiça o que é da Justiça e à política o que é da
política” e ter descurado o tratamento político dos casos de políticos
acossados pela Justiça, agora que se encontra fustigado pela investigação judiciária
que impende sobre colaboradores próximos (alguns dos quais se encontram detidos
e outros constituídos arguidos) e se vê objeto de um inquérito crime por ter
desbloqueado determinados negócios, não esperou que a Justiça se pronunciasse,
mas apresentou, de imediato, o seu pedido de demissão, aduzindo que a suspeita não
dignificava o exercício das funções de chefe do governo, como garantiu não se candidatar
nas próximas eleições. Enfim, a Política não questiona a Justiça, mas esta
derruba a Política!
Por mais que
se diga o contrário, o inquérito judicial tirou o tapete político a António
Costa.
Com o
evoluir da situação, entendeu fazer, a 11 de novembro, uma comunicação ao país,
a partir da residência oficial do primeiro-ministro, a propósito do processo que motivou a demissão, pedindo que se não
confunda a responsabilidade
individual com o exercício da ação governativa.
“A apreensão
de envelopes com dinheiro no gabinete de uma pessoa que escolhi para comigo
trabalhar, mais do que me magoar pela confiança traída, envergonha-me perante
os Portugueses, e aos Portugueses tenho o dever de pedir desculpa”, afirmou. Era
de esperar, mas fez bem.
Vincando a importância
de não se confundir “a responsabilidade individual de quem quer que seja, que
só à Justiça cabe investigar e punir, se for o caso, com o que é e deve ser o
exercício da ação governativa”, disse falar ao país, “para que Portugal não
desperdice oportunidades estratégicas para o seu desenvolvimento e, sobretudo,
para que futuros governos não percam instrumentos de ação política que são
essenciais à atração do investimento, à valorização dos nossos recursos
naturais, e ao pleno aproveitamento das infraestruturas de que o país dispõe”.
Nesse
sentido, o PM sublinhou três ideias fundamentais, que, a seguir, se sintetizam.
“Hoje e sempre o investimento empresarial é desejado, é bem-vindo e será
bem acolhido.” É dever dos
governos a atração de investimento empresarial, nomeadamente o estrangeiro,
disse, realçando: “Orgulho-me de, nestes oito anos, o investimento direto
estrangeiro ter alcançado 56 mil milhões de euros, investimento que contribuiu
para a criação de mais de 640 mil novos postos de trabalho, dos quais 495 mil
qualificados.”
Depois,
frisou: “O esforço da atração de investimento, designadamente a concessão de
incentivos financeiros ou a aplicação de regras especiais a projetos
classificados como de interesse nacional têm de decorrer com total
transparência.” E, para a garantir, no dizer do PM, requer-se um esforço que “é
regulado por lei, depende de avaliações técnicas exigentes por entidades
colegiais, está sujeito a fiscalização e nunca, por nunca, pode resultar
de mera decisão arbitrária ou discricionária de qualquer membro do governo”.
Em seguida,
falou diretamente para todos os que têm investido em Portugal: “Quero aqui
dizer que, hoje e sempre, o investimento empresarial é desejado, é bem-vindo e
será bem acolhido.”
“A simplificação promove a transparência; a burocracia promove a
opacidade”, é a segunda ideia. “A
simplificação de procedimentos promove a transparência”, afirmou o PM, marcando
a importância, para as empresas, da redução de burocracia e da eliminação dos
custos de contexto no investimento. Foi neste sentido que, em 2021, o governo
iniciou um Simplex do licenciamento, “objeto de amplas e participadas
discussões públicas”, o que se traduziu na simplificação do licenciamento
ambiental, em vigor desde o início de 2023, e da aprovação da simplificação do
licenciamento da construção de habitações e do licenciamento industrial, cujo
diploma aguarda a apreciação e a desejável promulgação da parte do PR.
“A qualquer governo compete assegurar a melhor harmonização dos
diferentes interesses públicos em presença” é a terceira ideia. “Quase sempre o interesse público na atração de
investimento exige a harmonização com outros interesses públicos tão ou mais
relevantes, como são a preservação de valores ambientais, o desenvolvimento
regional, o bem-estar das populações ou a garantia da salutar concorrência
entre empresas, o que exige negociação, articulação, concertação”, considerou o
chefe do governo.
Ao governo,
enquanto órgão máximo da administração pública, “compete assegurar a devida
articulação entre os diferentes organismos e procurar assegurar que o resultado
final é a melhor satisfação do interesse público no seu conjunto, ou seja, a
melhor harmonização dos diferentes interesses públicos em presença”. Neste
sentido, o licenciamento da exploração de minas de lítio em Montalegre ou em
Boticas foi sujeito a um estudo de impacte ambiental, e os concessionários
foram obrigados a cumprir as condições impostas por tais estudos, tanto na
escolha de uma localização para a refinaria que assegure a preservação do lobo
ibérico, como no garante das necessidades de abastecimento de água ou na
construção de nova via para ligação à autoestrada.
António
Costa explicitou que “esta exigência de compatibilização das diferentes
dimensões do interesse público é particularmente crítica e particularmente
exigente em Sines”, onde convivem “a ambição oficializada, deste 1971, de fazer
de Sines um grande polo de implantação industrial concentrada, com o nosso
maior porto de águas profundas, e também um parque natural já criado em 1995, e
com a proteção ambiental sucessivamente reforçada por decisões tomadas em 1997,
em 2019 e em 2020, com a classificação como Zona Especial de Conservação”.
E garantiu: “Todos
os projetos em desenvolvimento em Sines, designadamente o Centro de Dados, que
é o maior investimento estrangeiro realizado em Portugal, desde a instalação da
Autoeuropa, têm sido obrigados a respeitar a Zona Especial de Conservação, bem
como os valores ambientais identificados dentro da própria zona industrial.”
António
Costa explicou também que “a intensidade de projetos em curso e pré-anunciados
exige que a Rede Elétrica Nacional realize avultados investimentos no reforço
da rede elétrica”, razão pela qual o governo lançou um procedimento
concorrencial “que permitirá precisamente planear com segurança os
investimentos que são necessários na rede elétrica nacional e que obrigou
também à redistribuição de direitos de utilização da rede, que já estavam
concedidos a privados, mas ainda não utilizados, de forma a aumentar a
disponibilidade de rede para os investimentos que estão anunciados”.
A seguir,
veio o esclarecimento sobre o papel dos órgãos da Justiça: “Cabe às autoridades
judiciárias investigar e punir, se for o caso, qualquer comportamento
individual ou de alguma empresa que seja ilegal ou criminoso”, declarou, porfiando:
“Respeito e confio na Justiça e todos os organismos da administração central.
Qualquer membro do governo, a começar por mim próprio, dará às autoridades
judiciárias toda a colaboração que seja necessária, quando e sempre que o
entenderem necessário e útil.”
Sustentou
que é seu dever “esclarecer as opções políticas do governo para promover o
desenvolvimento do país”, que é o que os portugueses têm direito a saber. E
declarou: “O meu entendimento de que atrair investimento, valorizar os nossos
recursos naturais e dar máxima utilização às infraestruturas de que dispomos,
eliminar burocracia, preservar os valores ambientais, promover o
desenvolvimento regional e o bem-estar das populações são prioridades políticas
deste governo que exigem determinação, obviamente que sempre e sempre no estrito
respeito da lei.”
Por fim,
vincou: “Dizer, como sempre tenho dito e quero agora repetir, à Justiça o que é
da Justiça e à política o que é da política também significa que aos futuros
governos de Portugal, quem quer que seja o primeiro-ministro e quem quer que
sejam os seus membros, tem de ser garantida a liberdade de ação política, para
prosseguir uma estratégia legítima, desde logo a que vier a ser sufragada pelos
portugueses no próximo dia 10 de março.”
***
Não me
parece que tenha havido qualquer novidade no seu discurso, a não ser o pedido
de desculpa inicial. Porém, concentrou nesta peça todo um conjunto de asserções
que foi produzindo e que era suposto a comunidade dos cidadãos ter em conta.
É óbvio que as
reações dos partidos refletem as suas visões políticas. Todavia, não é credível
a crítica de quem achou que o PM não devia ter falado a partir de São Bento,
por se tratar de um caso da Justiça em que está envolvido. Na verdade, não
falou do caso em si, mas discursou como PM, que o é na plenitude, pois a demissão
vai ser aceite, mas ainda não foi, nem o Parlamento ainda foi dissolvido. Mais:
estando em causa a competência do PM, não deveria o PR dissolver o Parlamento, mas
aproveitar a sugestão de nomear novo PM no quadro da atual maioria e deixar prosseguir
a legislatura. António Costa manter-se-ia por dias, não por meses.
2023.11.11 – Louro de Carvalho
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