Instituído,
há oito anos, por Francisco, o Dia Mundial dos Pobres leva-os a falar mais dos
pobres, que são pessoas concretas, com rosto, do que da pobreza como objeto
sociológico, universo de estudo económico ou estratégia de políticas públicas.
O Tema para este VII Dia Mundial dos Pobres (19 de novembro, 33.º domingo do
Tempo Comum), “Nunca afastes de algum pobre o teu olhar” (combate à
indiferença), convida-nos à proximidade, ao acolhimento, a olhar a realidade do
outro, a pormo-nos no seu lugar, a olhá-lo nos olhos sem receio ou preconceito.
Não basta delegar ou praticar a caridade assistencialista, é preciso mudar,
transformando-nos, e contribuindo para britar as estruturas políticas e
socioeconómicas que originam ou favorecem a pobreza.
S. Paulo VI, na Mensagem da Quaresma de 1978, falava de “uma arte de dar e
uma arte de receber” e que os cristãos não têm senão um
termo: a compartilha fraterna. Nem todos têm a arte da compartilha. Alguns
são condicionados por emoções momentâneas, outros pelas desconfianças e outros pela
preferência de dar a quem precisa de receber. Estes dadores veem assim a sua
realização pessoal. Estribam-se na caridade eventual e assistencialista, não
lutando pela justiça social, e, muitas vezes, sem a consciência de que quem
recebe é uma pessoa com igual dignidade, independentemente, da situação
socioeconómica ou de exclusão social em que se encontra.
Um exemplo da preferência de dar pessoalmente é, face a uma vaga de incêndios
rurais, alguém deslocar-se 500 quilómetros, para entregar no quartel dos
bombeiros de uma localidade das afetadas, paletes de água e sacos e fruta. A
soma dos encargos com combustível, portagens, tempo gasto, compra dos produtos
e verba entregue à Corporação de Bombeiros possibilitaria a compra de muitos
mais produtos e alguns mais necessários. Água e fruta existiam na localidade,
porque o comércio não fechou. Quem assim procede dá menos e não contribui para
o funcionamento da microeconomia da zona, com problemas sociais em curso.
Regra geral, as dádivas são utilizadas para os fins destinados. Porém, há
pessoas que preferem dar produtos, em vez de dinheiro, pois julgam que a
segurança da dádiva é maior, o que não é garantido, pois quem pretender desviar
a oferta sempre arranjará forma de o conseguir. O remédio está no escrutínio
vigilante e, em caso de suspeita, fazer intervir as autoridades.
Se os bens comprados diretamente aos produtores ficarem mais baratos, a
partilha cresce. Ao invés, enviar para países em vias de desenvolvimento
produtos de construção civil, de saúde, alimentares, vestuários…que lá existam
até será prejudicial, por não contribuir para a autonomia das instituições
locais e crescimento económico desses países.
Também há gente a dar o que não gostaria de receber. No atinente a peças de
vestuário, só faz sentido dar as que estejam em boas condições e que sejam recolhidas
nos contentores próprios, onde se pode colocar roupa digna, pois há quem faça a
triagem e a entrega às instituições, para que estas a distribuam pelas pessoas que
dela precisem. Também os dadores de bens perecíveis, salvo se houver
destinatário imediato, não devem, em cima dos prazos de validade, doá-los, sob
pena de a entrega a necessitados ser feita em quantidades desproporcionadas, o
que não é nada pedagógico para a gestão familiar.
Estes considerandos não põem em causa a arte da generalidade da nossa população
em saber fazer bem, o que emerge no quotidiano da vida de cada um/a ou em
situações em que a generosidade acontece de forma planeada e com organização de
modo a torná-la mais eficaz e eficiente.
Há que atentar no que o Papa recomenda na Mensagem para este Dia Mundial
dos Pobres: “Que a nossa solicitude pelos pobres
seja sempre marcada pelo realismo evangélico. A partilha deve corresponder às
necessidades concretas do outro, e não ao meu supérfluo de que me quero
libertar. […] Aquilo de que têm urgente necessidade é da nossa humanidade, do
nosso coração aberto ao amor. […] Somos chamados a descobrir Cristo neles: não
só a emprestar-lhes a nossa voz nas suas causas, mas também a ser seus amigos,
a escutá-los, a compreendê-los e a acolher a misteriosa sabedoria que Deus nos
quer comunicar através deles. […] A fé ensina-nos que todo o pobre é filho de
Deus e que, nele ou nela, está presente Cristo: ‘Sempre que fizestes isto a um
destes meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes. (Mt 25, 40).”
Este excerto ensina que, quanto maior dignidade houver no ato de dar, mais
responsabilidade existirá na utilização do que se recebe. Aqui está a arte de
saber receber.
Nas suas últimas Mensagens para o Dia Mundial dos Pobres, Francisco termina
evocando o exemplo de um cristão/ã elevado/a aos altares. A propósito dos 150
anos do seu nascimento, escolheu Teresa do Menino Jesus, realçando que “a caridade perfeita consiste em
suportar os defeitos dos outros, em não se escandalizar com as suas fraquezas,
em edificar-se com os mais pequenos atos de virtude que se lhes vir praticar” e,
sobretudo, em não ficar encerrada no fundo do coração. Ninguém, como disse
Jesus, “acende uma candeia para a colocar debaixo do alqueire, mas coloca-a
sobre o candelabro para alumiar todos os que estão em casa”. Ora, essa luz
representa a caridade, que ilumina e alegra todos os que estão na casa, sem
excetuar ninguém. Parece que Teresa contraria o pedido evangélico de
que, ao dar-se esmola, não
saiba a mão esquerda o que
faz a direita (cf MT 6,3), mas, sem o testemunho credível
da fé que professamos, fora de qualquer proselitismo, dificilmente outros
seguirão o nosso exemplo e terão adequada solicitude pelos pobres. Além disso, dar
à luz do Sol será uma forma de a Igreja conhecer melhor se a caridade que
pratica é a arte de dar e de se ver se quem recebe tem a arte de receber,
sentindo que a sua dignidade é respeitada e que a libertação das amarras da
pobreza é o objetivo primordial.
***
Como
escreveu Francisco no n.º 4 da sua Mensagem, o atual momento histórico “não favorece a atenção aos mais pobres”. O apelo ao bem-estar fala
mais alto, enquanto se põe o silenciador relativamente às vozes de quem vive na
pobreza. Ignora-se o que não se enquadre nos modelos de vida pensados,
sobretudo, para as gerações jovens, as mais frágeis, face à mudança cultural em curso. Põe-se entre parênteses o que é desagradável e causa sofrimento,
enquanto se exaltam as qualidades físicas como se fossem a
meta a atingir. A realidade virtual sobrepõe-se à vida real
e cada vez mais facilmente se confundem os dois campos. Os pobres
tornam-se imagens que até comovem por momentos, mas, quando os encontramos em
carne e osso, sobrevêm o fastídio e a marginalização. A pressa, companheira
diária da vida, impede de parar, socorrer e cuidar do outro. A parábola do bom
samaritano (cf Lc 10, 25-37) não é história do passado; desafia o presente de
cada um de nós. Delegar em outros é fácil; oferecer dinheiro para outros
praticarem a caridade é gesto generoso, mas “envolver-se pessoalmente é a
vocação de todo o cristão”.
Na sua
mensagem para o I Dia Mundial dos Pobres, cujo tema foi “Não amemos com
palavras, mas com obras”, escreveu o Papa: “Não pensemos nos pobres apenas
como destinatários duma boa obra de voluntariado, que se pratica uma vez por
semana, ou, menos ainda, de gestos improvisados de boa vontade para pôr a
consciência em paz. Estas experiências, válidas e úteis a fim de sensibilizar
para as necessidades de tantos e para as injustiças que são, muitas vezes, a
sua causa, deveriam abrir a um verdadeiro encontro com os pobres e
dar lugar a uma partilha que se torne estilo de vida. […] Nos nossos dias, enquanto
sobressai cada vez mais a riqueza descarada que se acumula nas mãos de poucos
privilegiados, frequentemente acompanhada pela ilegalidade e a exploração
ofensiva da dignidade humana, causa escândalo a extensão da pobreza a grandes
setores da sociedade no Mundo inteiro.”
***
Em
2022, verificava-se que 10,3% das pessoas, trabalhando e tendo já em conta as
transferências sociais recebidas, tinham rendimentos inferiores ao limiar do
risco de pobreza, o que faz cair a ideia de que os pobres não querem trabalhar.
Portanto, sendo o salário parte fundamental da luta contra a pobreza, não é a
única condicionante. Além de injusto, é desumano que quem contribui para a
produção de riqueza seja impedido de usufruir dela. Quase 25% dos jovens
estão em risco de pobreza ou de exclusão social – problema demasiado sério,
porque veda aos jovens a possibilidade de futuro e põe em causa a
sustentabilidade e a sobrevivência da sociedade.
Há, no
discurso sobre a pobreza e, de modo particular, sobre a procura de soluções
para a sua erradicação, algo que é ilusório e contribui para que sobre o
problema a sociedade não tenha uma consciência crítica que leve a verdadeira
transformação. Quando referimos a pobreza como uma entidade, em vez de a
olharmos como consequência duma realidade diversa, desigual e injusta e que
atinge pessoas concretas, omitimos as causas ou desvalorizamo-las. Centrar o
foco na pobreza como um todo torna-a, aos olhos da sociedade, algo subjetivo e
distante, acabando por responsabilizar os próprios pobres pela sua situação.
Em outubro
de 2020, para assinalar o Dia Internacional para a Erradicação da
Pobreza, o governo criou uma comissão para elaborar, até dezembro desse
ano, a Estratégia Nacional de Combate à Pobreza (ENCP), ouvindo várias
entidades da sociedade civil, do setor da Economia Social e Solidária e do
Desenvolvimento Local. Passados três anos, e após debate público, o governo
apresentou, em outubro passado, a ENCP, que inclui mais de 270 medidas e
que terá dois planos de ação com dois horizontes temporais diferentes para as
concretizar (2022-2025 e 2026-2030). Foi ainda criada a comissão técnica de
acompanhamento da ENCP 2021-2030, que integra as áreas governativas e serviços envolvidos
na execução das medidas que executam a ENCP: Presidência, Educação, Segurança
Social, Saúde, Infraestruturas, Habitação e Coesão Territorial.
Espera-se
que a ENCP atinja os objetivos e que da sua implementação e resultados se vá
dando conta. Todavia, é erro pensar-se que a pobreza se resolve com medidas
avulsas. Elas são importantes e contribuem para melhorar a situação das
pessoas, mas falta ir ao fundo da questão. Uma sociedade que gera pobreza no
seu seio sofre de males profundos, nomeadamente o tipo de organização e a forma
como a riqueza é redistribuída. Num momento em que as sociedades se confrontam
com mudanças profundas, nomeadamente antropológicas, ver-nos-emos obrigados a
ir mais longe e a encetar profunda reflexão sobre o que valorizamos e que
sociedade desejamos enquanto coletivo. E dificilmente se resolve, se não envolvermos
na procura de soluções os que mais sofrem: os pobres.
Enquanto
exercício de cidadania, e já agora enquanto crentes, cabe-nos ser exigentes com
quem tem decide. É tarefa coletiva árdua que não se resolve só com
solidariedade, mesmo se necessária em tempos de maior urgência, mas com
consciência social. É preciso capacitarmo-nos, individual e coletivamente, para
construirmos, no quotidiano, uma sociedade mais justa, democrática, sustentável
e inclusiva. Como escreveu Francisco na sua Mensagem, “a tudo isso é preciso responder com uma nova visão da vida e da
sociedade”.
***
“Não há uma articulação dos diferentes setores” de governação para
enfrentar o problema da pobreza, que exige “vontade política determinada”, diz
ao programa “7Margens” da Antena 1, a propósito do VII Dia Mundial dos Pobres,
Eugénio Fonseca, ex-presidente da Cáritas Portuguesa e, agora, presidente da
Confederação Portuguesa do Voluntariado (CPV). “E é isso que tem faltado, tem faltado essa vontade política”, vinca.
“Todos julgamos que o trabalho é essencial. […] Mas não basta o trabalho, tem
de ser um trabalho digno, com salários dignos, porque, em Portugal, nós
carregamos também a vergonha de termos uma percentagem considerável de
trabalhadores que vivem na pobreza”, afirma, apontando realidades como um
terço das pessoas que trabalham viverem no limiar da pobreza, o crescente
número de famílias monoparentais, a baixa escolaridade de muitos ou os 25% dos
jovens que vivem no limiar da pobreza.
O perfil dos pobres mudou, diz o presente da CPV. “Há pobres hoje – gosto
mais de dizer pessoas em situação de pobreza – que têm o 12.º ano, são
licenciados.” E questiona, falando das comunidades católicas: “Porque é que
eles não integram os nossos grupos paroquiais de ação social?” Em vez de se
falar deles, que sejam eles a falar e a dizer “dos seus próprios projetos de
vida” e não outros, que até nem conhecerão as causas levaram à situação dos
mais vulneráveis.
Esta situação pode levar a messianismos e populismos, já que “as pessoas
mais vulneráveis estão expostas a todo o tipo de medos”. O que leva Eugénio
Fonseca a apelar a toda a classe política a que “olhe bem para o bem comum, e
não para o acesso às cadeiras do poder”.
Acerca das dificuldades dos jovens e dos jovens adultos, o presidente da
CPV diz que há grande preocupação com os “jovens que investiram na formação e
que agora estão confrontados com a falta de trabalho e a opção que têm é emigrar”.
E lamenta que o país “esteja a ver os seus quadros a fugirem”, quando tais jovens
são necessários para aplicar programas de desenvolvimento o Plano de
Recuperação e Resiliência (PRR) ou a Agenda 2030. “Oxalá venha a estabilidade
política que desejamos para que isso possa ser concretizável a curto prazo”, é
o seu voto.
Eugénio Fonseca comenta vários trechos da mensagem do Papa para o VII Dia
Mundial dos Pobres, que toma para tema a frase do livro bíblico de Tobite:
“Nunca afastes de algum pobre o teu olhar.” E evoca ainda reflexões do
presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), na reunião de Fátima, de
13 a 16 de novembro. O bispo de Leiria-Fátima, D. José Ornelas, referiu-se às
dificuldades que muitas famílias estão a atravessar, com os custos das rendas
de casa ou dos alimentos, sem cuidados médicos ou com o aumento do fosso entre
ricos e pobres.
***
Enfim, como dizia Sophia de Mello Breyner, “Vemos, ouvimos e lemos. Não
podemos ignorar.”
2023.11.19 – Louro de Carvalho
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