Há
dias, apareceu, na RTP1, elogiosa referência a Rafael Bluteau e à sua obra.
Como, enquanto estudante, ouvi falar dele muito à superfície, interessou-me o frade
teatino, pelo que fui à procura de dados que o tornaram um precursor da moderna
lexicografia do Português, que tem o seu início em 1789, com o Diccionario de António Morais Silva,
como refere João Paulo Silvestre no livro “Bluteau e as Origens da Lexicografia
Moderna” (Lisboa, 2008).
Rafael Bluteau, nascido em Londres, a 4 de dezembro de 1638, e
falecido em Lisboa, a 14 de fevereiro de 1734, foi um religioso teatino (Ordem de São
Caetano), lembrado, sobretudo, como grande lexicógrafo da língua
portuguesa. Filho de pais franceses, chegou a Portugal, a 26 de junho de 1668, com
29 anos de idade, a mando do Geral da Ordem. Trocou Londres por Paris, com
a mãe, fugindo das agitações, quando da morte do rei Carlos I de
Inglaterra. Estudou Humanidades no Colégio Real Henri IV (La Flèche, Sarthe) e,
depois, no Colégio de Clermont (hoje, lycée Louis-le-Grand, Paris). Frequentou as
Universidades de Verona, de Roma e de Paris. Doutorou-se, em Roma, em Ciências
Teológicas e professou na Ordem Teatina, a 29 de agosto de 1661. Criou na França
renome como pregador. Aprendeu depressa o Português e distinguiu-se como orador
sagrado, com grande aceitação na corte.
Foi um dos
padres estrangeirados, pois aderiu ao movimento académico patrocinado
pelo conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes. Teve a
proteção da Rainha Maria Francisca de Saboia, esposa do rei D. Afonso
VI e, depois, de D. Pedro II, de quem se tornou partidário. Em 1680, foi
encarregado de acompanhar à corte de Turim o Doutor Duarte Ribeiro de
Macedo, para tratar do casamento da Infanta Isabel com o duque de Saboia, Vítor
Amadeu. Tendo o Doutor Macedo falecido na viagem, o padre Bluteau substituiu-o na
missão até chegar de Lisboa, em 1682, o duque de Cadaval, novo ministro,
para concluir as negociações, que não se completaram, pela grave enfermidade
que assaltou o duque de Saboia.
A morte da
Rainha, a 27 de dezembro de 1683, causou muitos dissabores ao padre, que
se retirou para a França. Regressou a Portugal, em 1704, mas sem o acolhimento
que esperava, pois tornara-se suspeito ao governo em razão da guerra entre as
duas coroas. Mal entrou em Lisboa, recebeu ordem de se recolher ao convento de
Alcobaça, onde reviu o seu Vocabulário Português e Latino e
várias outras obras. Em 1713, concluída a paz, obteve licença para
residir em Lisboa. D. João V ordenou que fossem impressas todas as suas
obras e nomeou-o académico do número, quando foi, em 1720, fundada a Real
Academia de História, pois já pertencia, então, à
Academia dos Generosos e à Academia dos Aplicados.
Destacou-se
nas Conferências Discretas e Eruditas na casa do conde da Ericeira e
na Academia dos Generosos, como divulgador da atividade científica das academias
europeias. Discorreu, por exemplo, sobre Astronomia moderna e sobre os seus
diversos sistemas, preocupando-se com as questões relativas à duração da terra,
então foco de polémica. Criticava a lógica da Escolástica, acusando-a de
especulativa, formalista e inútil, em nome da orientação vincadamente
nominalista. Nas atividades literárias, foi uma espécie de intermediário entre
Portugal e a cultura francesa, sobretudo na difusão do magistério de Boileau, e
esteve atento às questões económicas, voltadas para a reforma da vida do homem em
sociedade. Privilegiou os estudos de línguas mortas e vivas, especialmente as
que falava com desembaraço: o Inglês, o Francês, o Italiano, o Português, o
Espanhol e o Grego. Foi prepósito do convento de São Caetano e faleceu aos 95
anos.
Entre
as obras que escreveu, sobressai o já referido Vocabulário Português e Latino, sob um título descritivo com o
recurso a adjetivos, colocados por ordem alfabética, mostrando a variedade de
temáticas abordadas. Por outro lado, refere o destinatário especial da obra em
oito volumes in folio e dois de
suplemento, bem como as circunstâncias da sua publicação e a identificação do
seu autor, como se pode ler na portada do Volume I, edição digita da Biblioteca
Nacional:
“VOCABULARIO
PORTUGUEZ, E LATINO, AULICO, Anatomico, Architectonico, Bellico, Botanico,
Brasilico, Chimico, Dogmatico, Dialectico, Dendrologico, Ecclesiastico,
Etymologico, Florifero, Forense, Fructifero, Geographico, Geomecrico,
Gnomonico, Hydrographico, Homonymico, Hierologico, Ichtyologico, Indico, Isagogico,
Laconico, Liturgico, Lithologico, Medico, Musico, Meteorologico, Nautico,
Numerico, Neoterico, Ortographico, Ornitologico, Poetico, Phisiologico,
Pharmaceutico, Quidditativo, Qualitativo, Quantitativo, Rhetorico, Rustico,
Romano, Symbolico, Synonimico, Syllabico, Theologico, Terapeutico,
Technologico, Vinologico, Xenophonico, Zoologico, autorizado com
exemplos dos melhores escritores portuguezes, e latinos: E offerecido a El-Rey
de Portugal D. João V pelo padre D. Raphael Bluteau, clérigo regular, doutor na
Sagrada Theologia, pregador da Rainha de Inglaterra Henriqueta Maria de França
e calificador no Sagrado Tribunal da Inquisição de Lisboa. Coimbra. No Collegio
das Artes da Companhia de Jesu. Anno 1712. Com todas as licenças necessarias.”
O
ano de 1712 é o da publicação do Volume I, pois a publicação da obra decorreu de
1712 a 1728.
***
O corpus
dicionarístico tem cerca de 7200 páginas, a que se juntam cerca de 500 páginas
de dicionários especializados e glossários, e um corpus paratextual de perto de
200 páginas. O Vocabulário reúne cerca de 42 mil artigos, mas o número mais
importante é a massa textual com mais de três milhões de palavras na parte
dicionarística, de que cerca de três quartos são palavras portuguesas. A lista
dos conteúdos de cada volume revela uma estrutura complexa, em que o dicionário
português-latim é acompanhado de glossários temáticos, composições poéticas e
textos preambulares com dispersa informação metalexicográfica. Os textos mais
relevantes são:
Volume I (A)
Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712: Prólogo do autor a
todo o género de leitores; Catálogo alfabético, topográfico e cronológico dos autores
portugueses, citados pela maior parte na obra; Catálogo de outros livros portugueses,
cujo autor se dissimula ou se ignora, também citados na obra; Catálogo dos
autores portugueses, segundo as matérias, que tratarão; abreviaturas das citações
dos livros portugueses e a declaração delas; Sumária notícia dos antigos
autores latinos, citados nesta obra, para exemplares da boa latinidade; e Abreviaturas
das citações dos autores latinos e a declaração delas.
Tomo II
(B-C) Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712.
Tomo III
(D-E) Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713.
Tomo IV (F-I)
Coimbra, no Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713.
Tomo V (K-N)
Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, 1716.
Tomo VI
(O-P) Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, 1720.
Tomo VII
(Q-S) Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, 1720.
Tomo VIII
(T-Z) Lisboa, Oficina de Pascoal da Silva, 1721: Dicionário Castelhano; Prosopopeia
do Idioma Português à sua irmã, a Língua Castelhana; Tábua de Palavras Portuguesas,
remotas da Língua Castelhana; Dicionário Castelhano e Português, para facilitar
aos castelhanos o uso do Vocabulário Português
e Latino.
Suplemento I
(A-L) Lisboa, oficina de José António da Silva, 1727: Prólogo segundo ou
segunda advertência do autor aos leitores, já nomeados nas primeiras folhas do
primeiro volume do Vocabulário; Advertências a todo o leitor para o uso deste Suplemento;
Catálogo de mais de cinco mil vocábulos, acrescentados aos oito volumes do Vocabulário
Português e Latino, ou com mais amplas notícias declarados no Suplemento que se
segue a este catálogo.
Suplemento
II, Lisboa, na Patriarcal oficina da Música, 1728: outros dez vocabulários:
Vocabulário de nomes próprios, masculinos e femininos, antigos, e não usados, vulgares,
raros, e muito raros; Vocabulário de Sinónimos e Frases Portuguesas;
Vocabulário de termos próprios e metafóricos em matérias análogas; Vocabulário
de nomes, que ficaram de plantas, tomados do Latim e do Grego, para evitar circunlocuções;
Vocabulário de Cavalaria; Vocabulário de termos comummente ignorados, mas
antigamente usados em Portugal, e outros trazidos do Brasil ou da India
Oriental e Ocidental; Vocabulário de palavras e modos de falar do Minho, Beira,
etc.; Vocabulário de Títulos; Vocabulário de Artes nobres e mecânicas;
Vocabulário de Vocabulários.
E ainda: Apologia
do Autor do Vocabulário e do Suplemento, ilustrada com a censura do Conde da
Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes; Censura da Apologia do Padre D.
Rafael Bluteau pelo Conde da Ericeira; Apologia do Autor do Vocabulário Português
e Latino; e Censura sobre as matérias concernentes ao Reino de Portugal e suas
Conquistas, referidas do Grande Dicionário Histórico de Luis Moreri.
***
O
trabalho de Rafael Bluteau é o ponto de referência fundamental para compreender
o processo de renovação da descrição da língua, da tipologia dos dicionários e
das funções que atribuíveis a tais instrumentos metalinguísticos. Na segunda
metade do século XVII, a valorização do património linguístico e literário postulava
a edição de dicionários. Dispondo só de obras cujo objetivo era descrever o Latim,
esperava-se um dicionário que ampliasse a nomenclatura do Português, mostrando
que a língua possui léxico para todos os registos. Porém, era complexo definir
as caraterísticas desse dicionário, já que a inexistente oferta editorial
deixava inúmeras necessidades por colmatar, pois o público escolar e quem
buscava um instrumento de cultivo da língua reclamavam obras distintas na
configuração tipológica. Um único dicionário não era, pois, solução bastante, não
se prevendo a renovação e diversificação do tipo de obras dicionarísticas.
Uma
opção seria reformular e ampliar as obras existentes, que eram instrumentos
escolares, configuradas a partir de modelos da dicionarística latina bilingue,
adequadas à nossa tradição pedagógica, mas que não poderiam crescer muito em
tamanho, sem comprometer a sua funcionalidade. Outra hipótese era aproveitar o
corpus literário, selecionando a nomenclatura e os exemplos de acordo com
critérios que garantiriam coerência à descrição da língua. Todavia, essa tarefa
pressupunha um trabalho colaborativo, credibilizado por um suporte
institucional, o que a agitada vida política e militar neste período não
favorecia.
No
final do século, acentuava-se a consciência do desfasamento entre a
dicionarística portuguesa e a lexicografia bilingue de outros países, com obras
que incluíam ampla descrição do vernáculo, expressões e frases autorizadas. Alguns
dicionários estrangeiros foram enriquecidos com maior quantidade de informação
extralinguística. Conjugavam-se os fatores para que o novo dicionário esteja
aberto à incorporação de modelos tipológicos estrangeiros, com informação
enciclopédica, o que dispensava uma ampla equipa redatorial. À época, não havia
notícia do interesse por um dicionário monolingue, porque a cultura e a língua
clássicas tinham relevante papel na educação da nobreza e no ensino em geral e
porque era mister apresentar à Europa culta o Português como justo herdeiro do
latim.
Tal
dicionário foi elaborado pelo Padre Rafael Bluteau, compilando imensa obra, com
base no material que acumulou para aprender a língua, adaptando-o aos modelos
lexicográficos da sua preferência. Bluteau é, para a história da língua e para
cultura portuguesa, um ativo intermediário da cultura francesa e do património
dicionarístico europeu. Os seus textos mostram que comparava e entendia as
línguas na linha da intercomunicação de significados, e não de acordo com
descrições gramaticais. Os dicionários foram, para o frade teatino, essenciais
à aprendizagem das línguas e instrumento de acesso à erudição e ao conhecimento
atualizados. O modo como descreve o Português deve mais à interessada leitura
de dicionários do que à teorização lexicográfica com alguma consistência e originalidade.
Na sua concepção, cada palavra dá acesso a sentidos sob a forma de notícias do
que a palavra representa.
***
Se
já houvesse comboio, automóvel, avião, telefone, rádio, televisão, computador, Internet, redes sociais, tablet, iPed e inteligência artificial, de tudo isso teria falado o inefável
Bluteau.
2023.11.18 – Louro de Carvalho
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