Em artigo de opinião no jornal Público, a 20 de novembro, a procuradora-geral adjunta Maria José
Fernandes, uma figura de topo do Ministério Público (MP), sustenta que a Operação Influencer
mostra como a autonomia dos procuradores deixou os magistrados do MP sem
controlo na estrutura hierárquica, levando a abusos. Aponta “buscas sem
utilidade”, “abuso de poder” e “meios de recolha de prova humilhantes”, da
parte de quem levou a cabo esta investigação criminal, que levou à queda
do governo.
“Acontece haver quem entenda a investigação criminal como uma extensão de
poder sobre outros poderes, de natureza política. Daí que sejamos
surpreendidos, de vez em quando, com buscas cuja utilidade e necessidade é
nenhuma”, escreveu.
“Ministério Público: como chegámos aqui?”. A pergunta serve de título e de
ponto de partida para crítica à atuação dos procuradores na Operação Influencer.
Não é preciso indicar nomes para se perceber a quem se refere a também
inspetora, responsável por avaliar procuradores, que denuncia o clima de
favoritismo, até aqui, do juiz Carlos Alexandre. “A sorte é que, até há pouco
tempo, o DCIAP [Departamento Central de Investigação e Ação Penal] dispunha de
um tribunal de instrução privativo, com um juiz de instrução igualmente
privativo por ser o único durante largos anos. O perfil decisório desse juiz de
instrução criminal era conhecido, não há constância de contrariedade ao Ministério
Público. Maus hábitos”, declarou.
Tais magistrados têm apoio na comunicação social. “Granjearam até quase
camaradagem (em congressos) de certo jornalismo que segue as peripécias da
corrupção atribuída a políticos e que tem a militância de deixar Portugal bem
colocado nos rankings internacionais
da perceção desse flagelo”, vincou. É esta a mistura que leva procuradores que
não “hesitem em meios de recolha de prova intrusivos, humilhantes, necessários
ou não” a serem o “top da competência”. “Outros magistrados de elevado escalão
que seguem esta linha argumentativa e a verbalizando no discurso público também
têm o elogio garantido. [...] Quem se opõe à estridência processual é rotulado
de protetor dos corruptos. [...] Poucos têm pulso para impor o que deve ser a
sensatez, a escorreita interpretação jurídica dos factos, o respeito pelos
direitos fundamentais dos cidadãos suspeitos, a investigação célere”,
explicitou.
Baseada em casos julgados, conclui que é necessária autocrítica por parte
do MP. E, do pouco que sobrou do despacho de indiciação, o crime de recebimento
indevido de vantagem, nos almoços pagos a João Galamba, a Duarte Cordeiro e a Nuno
Lacasta, pergunta: “A oferta de um almoço num restaurante caro será uma
vantagem? Em que se traduz essa vantagem? No prazer da degustação? E se o agente
não apreciou a refeição?”
***
Por seu turno, o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses
(ASJP) considerou, a 22 de novembro, “excessivo e prematuro” fazer, nesta fase,
um juízo de valor sobre o MP. “Percebendo que haja interesses políticos e
partidários em jogo e com as eleições à vista e que haja a tentação de utilizar
este caso também para esse efeito, acho excessivo e prematuro, nesta fase,
pendurar já MP no pelourinho ou endeusar o MP e colocá-lo no altar, porque nós
não sabemos ainda como é que vai acabar esta investigação”, declarou à Lusa Manuel Soares.
Ante as críticas ao processo que “provocou indiretamente uma crise
política”, com a demissão do primeiro-ministro (PM), o dirigente da ASJP não
embarca na “tese de ninharia penal” e diz que estão em causa “pessoas com
responsabilidades governativas ou próximas de pessoas com responsabilidades
governativas que podem ter cometido crimes de tráfico de influência e recebimento
indevido de vantagem”, sendo “graves” os factos conhecidos pela imprensa.
Sobre o encontro de mais de 75 mil euros no gabinete de Vítor Escária, lembra
que há pessoas, nomeadamente os membros do governo ou dos seus gabinetes, que,
por força dos cargos públicos que exercem, estão obrigadas a declarar no
Tribunal Constitucional (TC) os seus rendimentos, património e interesses.
Portanto, se alguém nessas condições estiver na posse de dinheiro seu e que não
foi declarado, independentemente da proveniência, lícita ou ilícita, tal
conduta é, desde 2022, punível com pena de prisão de um a cinco anos por crime
de ocultação de património. Aliás, a lei foi alterada, então, para penalizar
quem oculta património às entidades de fiscalização.
Sobre a polémica em torno do último parágrafo do comunicado da
Procuradoria-Geral da República (PGR), que revelou o inquérito autónomo no MP
junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) envolvendo o PM, defendeu que “o
parágrafo não caiu do céu”. Reage-se a um texto, não pela sequência de palavras
e letras, mas pelo significado. E o significado daquele parágrafo e dos outros é
que certas pessoas podiam ter praticado atos que, chegados ao conhecimento do
MP, foram considerados suspeitos, e o MP foi obrigado, porque a lei obriga, a
abrir investigação para “confirmar ou não essas suspeitas e esses atos”. Ora, como
sustenta, algumas diligências “foram já até objeto de alguma validação por
juízes de instrução”, nomeadamente as que autorizaram a realização de buscas e
escutas telefónicas, por haver indícios suficientes.
E questionou que ilações se tirariam, se a PGR tivesse omitido o último
parágrafo referente à investigação ao PM. Mais tarde, saber-se-ia, pois, quando
os advogados consultar o processo, viam que tinham sido extraídas certidões e percebiam
que tinha havido iniciativa processual no STJ sobre o PM. E dir-se-ia que a PGR
ocultou informação relevante ao Presidente da República (PR), ao PM, aos
cidadãos, para beneficiar o governo e o Partido Socialista (PS). Foi o que
aduziu.
Distinguiu lobbying e cunha,
conceitos inconfundíveis, desde logo pela lei, que não tem o lobbying regulado, mas tipifica
criminalmente comportamentos enquadrados no que se designa como cunha. “Acharmos
que o comportamento de meter uma cunha para o nosso processo andar mais
depressa ou para obtermos uma decisão ilícita, a troco de alguma vantagem
económica que entregamos à pessoa que tem a responsabilidade de decidir, achar
que isto é lobby, francamente não é lobby, isto é outra coisa, pelo menos
enquanto a lei não for mudada”, acentuou.
Até se conhecerem todos os factos do processo, para Manuel Soares, “ninguém
responsável consegue dizer que o MP está a perseguir criminalmente pessoas por
factos que não são crime”. Acha “absolutamente normal” que este caso, que “não
é coisa pouca” e envolve o PM e outras figuras políticas, tenha provocado “tumultos
e perturbação no espaço público” e críticas ao MP. “Se amanhã os tribunais
confirmarem decisões neste caso do MP, passarão a ser os tribunais os
criticados”, contrapôs, questionando se se quer uma sociedade em que a Justiça
não seja “capaz de incomodar, nos casos em que se justifica incomodar” essas
pessoas “mais poderosas”.
O consultor e amigo do PM ficou indiciado por tráfico de influência e
sujeito à caução de 150 mil euros e à entrega de passaporte. Vítor Escária viu
validados indícios de tráfico de influência, ficando proibido de se ausentar
para o estrangeiro. O autarca de Sines e dois administradores da Start Campus,
ficaram sujeitos a Termo de Identidade e Residência (TIR), devendo a empresa
pagar a caução de 600 mil euros. Para o autarca não foram validados indícios de
crime, enquanto os dois administradores estão indiciados por tráfico de
influência e oferta indevida de vantagem. E o juiz não validou os indícios
apontados pelo MP da prática de corrupção e prevaricação.
***
Não está em causa a gravidade dos crimes, se os
factos forem provados, mas outros dados, como a publicitação do comunicado da
PGR sem que alguns suspeitos, por exemplo o PM, fossem notificados; a
cooperação da polícia de segurança pública (PSP), em vez da polícia judiciária
(PJ); o conhecimento dos alegados factos pela comunicação social ainda na fase
da investigação; o momento da publicitação das diligências; a justiça
espetáculo, que leva à condenação de figuras públicas na praça pública, sem
julgamento, mandando às malvas a presunção de inocência; a perturbação, por
forma desnecessária, do funcionamento de órgãos de soberania, na presunção de
que os políticos são corruptos e os agentes da Justiça são os bons; e os erros
já reconhecidos pelo MP (troca de nomes, citação de portaria indevida e troca
de espaços de reuniões). Isto não é pouco.
***
Dantas Rodrigues, em artigo
de opinião publicado no ECO online, a
22 de novembro, considera que o cargo
de procurador-geral da República (PGR) é o único, no quadro das magistraturas
(do MP e dos tribunais judiciais) sujeito a nomeação pelo poder político, mas
gozando de um estatuto de independência (de autonomia, digo eu) desse mesmo
poder político, com um mandato de seis anos. Em termos formais, os procuradores-gerais são autónomos
(não independentes), mas, na prática, tal autonomia (não independência) é
limitada. A tutela (Ministro da Justiça), pode: transmitir ao PGR instruções
específicas nas ações cíveis e nos procedimentos tendentes à composição
extrajudicial de conflitos em que o Estado seja interessado, bem como autorizar
o MP a confessar, transigir ou desistir nas ações cíveis em que o Estado seja
parte (não há, nas ações penais, a possibilidade de transmitir instruções, de
ordem genérica ou específica); requisitar ao PGR relatórios e informações
relativas a qualquer agente do MP; solicitar ao Conselho Superior do Ministério
Público (CSMP) informações ou esclarecimentos que julgar convenientes; e instar
o PGR a proceder a inspeções, sindicâncias e inquéritos, designadamente aos
órgãos de polícia.
O MP é um corpo hierarquizado. No atinente à sua
hierarquia, tem o PGR, chefe máximo, com poderes de direção, de categoria e de
intervenção processual sobre os demais magistrados, a saber, o
vice-procurador-geral da República, os procuradores-gerais-adjuntos e os procuradores
da República. São todos magistrados do MP, magistrados na qualidade de
procuradores europeus delegados, e deles provém o representante de Portugal na
EUROJUST e respetivos adjunto e assistente. Compete ao PGR dirigir, coordenar e fiscalizar
a atividade do MP e emitir as diretivas, ordens e instruções a que deve
obedecer à atuação dos respetivos magistrados.
O CSMP é o órgão através do qual a PGR faz uso da
competência para nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar
méritos profissionais, exercer ações disciplinares e, em geral, praticar todos
os atos de idêntica natureza respeitantes aos magistrados do MP, exceto ao PGR.
Na sede de cada distrito judicial existe a
Procuradoria-Geral Distrital, em que exercem funções procuradores-gerais-adjuntos,
com a função de ali dirigir, coordenar e fiscalizar a atividade do Ministério
Público, para além da emissão de ordens e de instruções várias.
Os procuradores dos Estados Unidos da América (EUA)
integram o poder executivo, podendo ser demitidos pelo presidente, e os do
Reino Unido têm poderes limitados, dependendo, formalmente, do poder
legislativo. São países anglo-saxónicos, com a sua cultura própria.
Na Europa, em termos de funções ou, melhor, de poder,
o MP ou está integrado com autonomia funcional no respetivo poder judicial
(Espanha, Alemanha) ou insere-se no próprio Ministério da Justiça (Holanda,
França, Bélgica, Áustria). A média dos mandatos dos procuradores-gerais, nesses
países, é de quatro anos (não seis), cessando quando terminam os governos que
os propõem. As suas funções são essencialmente penais, não se imiscuindo
noutras áreas jurídicas.
No nosso país, o MP intervém em quase tudo, ou seja,
em matérias constitucionais, penais, cíveis, comerciais, laborais,
administrativas e de família. A estrutura é gigantesca, pesada e dispendiosa. Ora, depositar tanto poder num único órgão não
beneficia os cidadãos, nem os procuradores, desacreditando a sua autonomia
avaliativa e o seu sentido de autonomia (não independência).
A imparável descredibilização das instituições, em
geral, e da Justiça, em particular, tem ocupado dias consecutivos de
interrogações, sendo a principal: “Poderemos confiar no MP, que cometeu três
erros fatais?” De facto, “renunciou à recolha de prova indiciária com rigor
científico e jurídico, prejudicando a investigação em que estava a trabalhar, o
que lhe retirou logo a imparcialidade exigida”; “parou, ilegitimamente, a
atividade do governo; e “fez política”, pois este mal provém de outros
inquéritos e de anos passados.
O rombo provocado no casco da nave da execução da
política criminal afeta o sistema judicial. A brusca manobra do leme pelos procuradores
constitui causa bastante para a reformulação do Código do Processo Penal, do Estatuto
do Ministério Público e do Código de
Conduta dos Magistrados do Ministério Público. E deve-se fazê-lo “antes que
o sistema de justiça vá a pique”.
***
É preciso que
o MP atue no âmbito da Constituição (ver artigos 219.º e 220.º), segundo a qual
que o MP “goza de [...] autonomia, nos
termos da lei” (a autonomia pressupõe a prestação de contas), não de
completa independência, os seus agentes “são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados” (não
há hierarquia sem responsabilidade).
O MP não é um feudo, nem uma corporação. Por isso, como diz o constitucionalista Vital Moreira (ver “Causa nossa”, 20 de novembro), impõe-se: tornar o PGR a suprema e efetiva autoridade governativa e administrativa no MP; obrigar a instituição, através do PGR, a prestar contas regulares da atividade do MP à Assembleia da República (AR) e ao PR; instituir efetiva hierarquia e responsabilidade hierárquica interna, inclusive para efeitos disciplinares, retirando tal competência ao “parlamento” do CSMP; e punir disciplinarmente e fazer punir penalmente conluios entre magistrados do MP e a imprensa, a principal fonte da sistemática e impune violação do segredo de justiça, estando em causa investigados expostos politicamente. Nem sempre a propalada transparência é a alma do negócio público.
***
O
MP, que não é órgão de soberania, precisa de ser credibilizado – não exposto e
vergastado no pelourinho – para, como precioso defensor da causa pública e como
prestimoso órgão auxiliar dos tribunais (independentes órgãos de soberania),
contribuir para uma Justiça universal, eficaz, célere e imparcial.
2023.11.22 – Louro de Carvalho
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