O
alerta vem sendo dado pelos especialistas. O abuso dos antibióticos pode
redundar na sua ineficácia contra as bactérias, que sabem resistir.
A
descoberta da penicilina, o primeiro
antibiótico, constitui uma das maiores revoluções da História da Medicina. Diz-se que muitas descobertas
científicas ocorrem por acaso. Porém, o acaso, como dizia Louis Pasteur, só
favorece os espíritos preparados e não dispensa a observação. A descoberta da
penicilina constitui, neste aspeto, exemplo típico. O bacteriologista do
St. Mary’s Hospital, de Londres, Alexandre Fleming, vinha a pesquisar
substâncias capazes de matar ou de impedir o crescimento de bactérias nas
feridas infetadas. Tal preocupação justificava-se pela experiência da I Guerra
Mundial (1914-1918), em que muitos combatentes morreram por infeção em
ferimentos profundos. Em 1922, Fleming descobriu uma substância antibacteriana
na lágrima e na saliva, que designou de lisozima. Em 1929, desenvolvia pesquisas
sobre estafilococos e descobriu a penicilina. O fungo foi identificado como
pertencente ao género Penicilium,
donde provém o nome “penicilina” dado à substância que produz. Fleming passou a
usá-la no laboratório para selecionar determinadas bactérias, eliminando das
culturas as espécies sensíveis à sua ação.
Alexander
Fleming, quando saiu de férias, por acaso (!), esqueceu algumas placas com
culturas de micro-organismos no seu laboratório no Mary’s Hospital, de Londres. Quando voltou, viu que uma das
culturas de Staphyloccocus tinha
sido contaminada por um bolor em volta de cujas colónias não havia mais
bactérias. Então, Fleming e o colega, Dr. Pryce, descobriram um fungo do género Penicilium e demonstraram que o fungo
produzia uma substância responsável pelo efeito bactericida: a penicilina. Esta
foi obtida em forma purificada, em 1940, por Howard Florey, Ernest Chain e
Norman Heatley, da Universidade de Oxford, que comprovaram as suas qualidades
antibióticas em ratos infetados, bem como a sua não-toxicidade. Em 1941, os
seus efeitos foram demonstrados em humanos. O primeiro homem tratado com
penicilina foi um agente da polícia que sofria de septicemia com
abcessos disseminados – condição geralmente fatal à época – e que melhorou
bastante, após a administração do fármaco, mas morreu, quando as reservas
iniciais de penicilina se esgotaram. Depois, começou a ser industrializada. Em
1945, Fleming, Florey e Chain receberam o Prémio Nobel da Medicina
Fisiologia por este trabalho de Fisiologia.
A penicilina
salvou milhares de vidas de militares dos Aliados na II Guerra
Mundial e ficou disponível para a generalidade dos doentes, passando o Mundo a ver-se munido da arma capaz de matar bactérias, agentes
criadores de infeções que eram, na altura, a maior causa de morte no planeta.
Assim, teve início o caminho de aumento da esperança média de vida, que, nos
anos 30 do século XX, pouco passava dos 30 anos de idade, para os humanos da
Europa Ocidental. Na década de 1960, já havia aumentado para os 63 anos. E, agora,
ultrapassa os 80 anos.
Porém, se, ao longo dos anos se produziram
antibióticos, primeiro, de natureza natural e, depois, de natureza sintética, vivemos,
agora, o problema da possibilidade da sua eficácia. Arriscamos passar de
um planeta “sem antibióticos”, como era antes de 1930, para um planeta “com
antibióticos mas de efetividade muito reduzida por causa da resistência das
bactérias”, como refere José Artur Paiva, médico internista e diretor do Programa
de Prevenção e Controlo de Infeções e de Resistência aos Antimicrobianos
(PPCIRA).
Passada a pandemia de covid-19 e toda a avalanche destrutiva
de programas de apoio à prescrição de antibióticos, chegou o alerta da Europa de que é preciso voltar a centrar
as atenções num velho e poderoso inimigo: as bactérias e a sua
capacidade de escapar aos medicamentos que os humanos inventaram para as
controlar. “Enfrentamos
uma epidemia de resistência a antibióticos que, a longo prazo, irá causar muito
mais mortes do que a covid-19”, disse Bruno Ciancio, diretor de Vigilância
do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC, na sigla inglesa), organismo preocupado
com a falsa perceção de que o período pandémico mais severo fez passar
relativamente a este combate.
Uma drástica redução do
consumo de antibióticos na Europa, que em Portugal atingiu os 25%, em
2021, ficou esbatida pela sobreposição do
SARS-CoV-2. E, quando a pandemia vírica acalmou, regressaram os números da que,
em 2022, denominada “pandemia esquecida” por Ramanan Laxminarayan, considerado
um dos pais da resistência bacteriana.
Após redução inédita no consumo de antibióticos na pandemia
(2020 e 2021) – atribuível às quarentenas e às dificuldades em aceder aos
cuidados de saúde nesse período –, “em
2022 houve uma recuperação total do consumo de antibióticos, para valores
próximos do que se verificou em 2019”, afirmou Dominique Monnet, diretor
da secção de Resistência Antimicrobiana e Doenças Associadas, do ECDC, aos
jornalistas numa conferência nas instalações do organismo, em Solna, Estocolmo,
Suécia, que antecedeu a publicação do relatório anual sobre a matéria.
Na União Europeia (UE), de 2019 a 2022, o consumo reduziu
2,5%. Porém, esteve longe de ser linear no tempo e no espaço: primeiro, drástica redução; no último ano, subida
radical. Na UE, as realidades são diversas, com 12 países a registar
aumento geral do consumo, com a Bulgária a liderar a tabela (24%), e 15 a
apresentar redução, com a Finlândia no topo (- 15%). Portugal acompanhou a tendência, reduzindo
este consumo em 2,6%, de 2019 a 2023, mas também esta variação não
foi linear: sofreu abrupta diminuição na pandemia e, após uma grande subida, em
2022, quase fez regressar o consumo aos valores pré-pandémicos.
Segundo a microbiologista Ana Margarida Almeida, do
Instituto de Medicina Molecular, a redução do consumo de antibióticos, em 2021,
na UE, foi da ordem dos 25%, devido a dois fatores: diminuição do número de
infeções bacterianas, mercê da restrição à circulação e a aglomerações e do uso
generalizado de máscaras; e redução do acesso a consultas médicas.
Já no meio hospitalar, que
representa cerca de 10% do total de antibióticos consumidos, a pandemia trouxe expressivo
aumento do consumo: em
2021, ultrapassou, pela primeira vez, a média europeia. É aqui que “estamos
mais dismórficos, ou seja, mais fora da evolução europeia”, confirma o
internista José Artur Paiva, diretor do PPCIRA. Não só aumentou durante o
período pandémico, como esse aumento se tem mantido sustentado em 2023.
Entre as bactérias super-resistentes identificadas
pelo ECDC como preocupantes pela capacidade de sofrerem mutações para “fugirem”
aos antibióticos, a Klebsiella pneumoniae,
capaz de causar pneumonia, é a que mais preocupa a Europa. Neste parâmetro, nos anos de pandemia, os
países aumentaram 49,7% a incidência de infeções por esta bactéria. Em
Portugal, aumentou 2,6%.
“O objetivo da Europa é reduzir [esta incidência] em
5%, até 2030, mas o que vimos é um aumento de quase 50% e um aumento ainda
maior em muitos dos Estados-membros. Esta bactéria, em estudos laboratoriais,
tem demonstrado uma grande resistência a vários antibióticos. Isto significa
que com doentes não será diferente”, alerta Dominique Monnet.
Pela preocupação com a resistência das bactérias aos
antibióticos, a Organização Mundial da Saúde (OMS), determinou que, de 2023 até
2030, o objetivo de consumo destes medicamentos terá de ser em 65% compostos
pelos do grupo access, isto é, o grupo dos que não causam tanta
resistência em bactérias. Portugal, estando nos 61%, tem algum caminho para
andar.
***
A resistência antimicrobiana (RAM) pode causar 10
milhões de mortes por ano, até 2050.
À medida que o Mundo recupera da
covid-19 e a gripe aviária dizima as aves selvagens e de criação, a ligação
entre a produção alimentar e o risco de pandemia nunca foi tão clara.
Desde as doenças zoonóticas (as
transmitidas entre animais e humanos, por contacto direto ou indireto) até à
RAM, os sistemas alimentares industriais estão a criar terreno fértil para
vírus e bactérias. Embora a invasão dos habitats selvagens provoque fenómenos
de alastramento, com vírus que se propagam diretamente dos animais para os
humanos, muitos dos vírus que atualmente suscitam preocupação, como a gripe das
aves, são exacerbados pela criação em fábricas e pelas condições de proximidade
e de espaço reduzido em que os animais são mantidos.
Muitas vezes referida pela OMS como “a pandemia silenciosa”, a RAM ocorre
quando bactérias, vírus, fungos e parasitas evoluem para resistir ao
antibiótico utilizado para os tratar. Tal resistência torna as doenças muito
difíceis de tratar e aumenta o risco de propagação.
A RAM pode ocorrer quando os
antibióticos são utilizados em excesso, porque as bactérias que desenvolvem
resistência são capazes de se multiplicar. A administração de antibióticos em
doses baixas também pode levar à RAM, pois as bactérias que estão a ser
tratadas não são destruídas e podem desenvolver resistência. “Se algumas das
bactérias desenvolveram resistência”, explica Cóilín Nunan, conselheiro
científico da Alliance to Save Our Antibiotics, “essas bactérias não são
afetadas pelo antibiótico e podem continuar a proliferar, espalhando-se de
humano para humano, ou de animal para animal, ou de animal para humano”.
***
No discurso de entrega do Prémio
Nobel, em 1945, Fleming alertou para os riscos da administração de doses baixas
do medicamento. No entanto, quatro anos mais tarde, cientistas norte-americanos
descobriram que a administração de doses baixas de antibióticos aos animais
promovia o crescimento e a utilização de antibióticos. Assim, os antibióticos
foram utilizados em grande escala para prevenir doenças em animais saudáveis,
não raro, devido a más condições de higiene e a sobrelotação. A este respeito,
Cóilín explica: “Os sistemas alimentares recorrem, muitas vezes, ao uso
excessivo e rotineiro de antibióticos, sobretudo quando os animais são criados
de forma muito intensiva, porque as doenças podem propagar-se muito mais
facilmente. Quando os animais são mantidos em ambientes fechados em grande
número, as doenças propagam-se de forma muito semelhante à forma como se
propagam nos seres humanos.”
Embora a UE tenha proibido a
utilização de antibióticos para promover o crescimento, em 2006, estima-se que
66% de todos os antibióticos utilizados continuam a ser administrados a animais
de criação, não a seres humanos. A maior parte da resistência aos antibióticos
está ligada à utilização humana, mas há provas de que a sua utilização nas
explorações agrícolas contribui para a resistência aos antibióticos nos animais
de criação e para as infeções nos seres humanos.
Quando os animais são alimentados com
antibióticos, algumas bactérias podem desenvolver resistência e eles têm
bactérias resistentes nas entranhas. Depois, no abate, algumas contaminam
a carcaça e, quando a carne é manuseada, ou se for comida mal cozinhada, as
bactérias que estejam vivas podem espalhar-se para os seres humanos e causar
infeções resistentes.
As bactérias também podem entrar no
sistema alimentar de formas menos diretas. Os animais de criação excretam
antibióticos pela urina, que acaba, depois, em chorume – gordura que exsuda da
carne de um animal – e estrume. Este, espalhado em terrenos agrícolas, para
fertilizar as culturas, pode passar às culturas bactérias resistentes, sendo
comidas cruas algumas delas.
Porém, graças à pressão de alguns grupos,
a mudança está a começar. Em janeiro de 2022, a UE proibiu todas as formas de
utilização rotineira de antibióticos nas explorações agrícolas, incluindo os
tratamentos preventivos de grupo, bem como a utilização de antibióticos para
compensar a má criação (reprodução e cuidados) ou a falta de higiene. É posição
radical, pois grande parte da sua utilização é para compensar a falta de
criação e de higiene. Quando cada um de 30 mil ou 50 mil frangos num
pavilhão tem de espaço menos de uma folha de papel A4, a higiene será péssima.
O Reino Unido prepara legislação
semelhante à da UE. Embora o governo planeie adotar muitas das leis da UE, alguns
aspetos-chave poderão ficar para trás. A boa notícia é que a utilização de
antibióticos nas explorações agrícolas do Reino Unido diminuiu 55% desde 2014,
embora a utilização de antibióticos na aquicultura esteja a aumentar.
Este fenómeno de alto risco será travado pela módica
utilização médica de antibióticos: apenas sob prescrição clínica e segundo
rigorosas instruções. Salve-se a Humanidade, salve-se o planeta!
2023.11.21 – Louro de Carvalho
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