Devemos estar preparados para a vida e vigiar pela vida. Não
se trata da vida breve e mesquinha, mas da vida sublime, como Deus a sonhou
para nós, e que não terá fim. É a preparação do caráter do homem que ama a
Deus, para arriscar por Ele; é a vigilância pela defesa do caminho fortificado
sobre o qual peregrinamos nesta vida e pela defesa das fortificações onde
retemperamos o ânimo para a caminhada, por vezes, espinhosa.
Congraçam-se, nesta perspetiva, os trechos da primeira
leitura e do Evangelho da liturgia do 32.º domingo do Tempo Comum no Ano A, que
instam à sabedoria e à previdência da vigilância, pois a segunda vinda do
Senhor Jesus está no horizonte final da História humana, devendo nós, por isso,
caminhar atentos ao Senhor que vem e com o coração preparado para O acolher.
***
A primeira leitura (Sb
6,12-16) entende a sabedoria como dom gratuito de
Deus ao homem, mostrando como Deus se preocupa com a felicidade dos homens,
seus filhos, a cuja disposição coloca a fonte de onde jorra a vida infinda,
restando-lhes estar atentos, vigilantes e disponíveis para o acolhimento, em
cada instante, da vida e da salvação de Deus para todos.
O Livro da Sabedoria
é o mais recente dos livros do Antigo Testamento (AT), surgido na primeira
metade do século I a.C. O autor é judeu de língua grega, nascido e educado na
Diáspora (quiçá em Alexandria), que, exprimindo-se em termos e conceções do mundo
helénico, faz o encómio da sabedoria israelita, expõe a sorte que espera o
justo e o ímpio no Além e descreve, com exemplos do Êxodo, as sortes diversas
que tiveram os pagãos, idólatras, e os hebreus, fiéis a Javé. O objetivo é levar
os compatriotas judeus, imersos no paganismo, na idolatria, na imoralidade, a
redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos e levar os pagãos a verificarem
o absurdo da idolatria e adorarem o verdadeiro e único Deus, pois, só Javé
garante a sabedoria e a felicidade.
O trecho em evidência pertence à segunda parte do livro (Sb 6,1-9,18), em que o autor põe na boca
do rei Salomão (embora não lhe refira) o elogio da sabedoria.
Salomão convida os outros reis a acolher a sabedoria, pois
ela é bela, inalterável e garante a imortalidade e o reinado eterno.
A sabedoria, como arte de bem viver e de ser feliz, abarca um
conjunto de princípios ou normas comportamentais, deduzidas da reflexão e da
experiência, que orientam o homem sobre a forma de se conduzir na vida
quotidiana, proporcionando-lhe uma vida harmoniosa, equilibrada, ordenada,
cheia de êxito. Todavia, a reflexão israelita identifica a sabedoria com a
Torah (Lei de Deus). Ser sábio é, pois, cumprir os mandamentos da Lei, pois na
sabedoria revelada por Javé, está o caminho do êxito, pela superação dos
obstáculos que a vida nos confronta. É neste sentido que se deve entender o
convite à sabedoria.
A sabedoria não é, na ótica do hagiógrafo, algo misterioso e
oculto que o homem tem dificuldade em encontrar. Antes brilha com brilho inalterável
e atraente, que prende o olhar de quem a demanda. Não é preciso correr atrás
dela, com cuidado e fadiga, Basta sentir interesse por ela e amá-la. Quem a ama
nela tropeça facilmente, nas circunstâncias comuns da vida quotidiana: à porta
da casa, nos caminhos e na intimidade dos pensamentos. Para que ilumine a vida
do homem, só é precisa a disponibilidade para a acolher.
A sabedoria é, pois, um dom de Deus para que o homem saiba
conduzir a sua vida ao encontro da vida e da felicidade. Deus não é adversário
do homem, com ciúmes dele, preocupado em lhe impedir a felicidade e a realização,
mas é cheio de amor, preocupado em oferecer ao homem todas as possibilidades de
ser feliz e de se realizar plenamente. Deus é o Pai cheio de amor, preocupado
com a felicidade dos filhos, sempre disposto a oferecer-lhes, gratuitamente, os
seus dons e a orientá-los para a vida e para a salvação. Esta realidade postula
uma atenção contínua, a fim de detetarmos e acolhermos os dons que Deus nos
oferece a cada instante. Ao homem só é pedido que não se feche no egoísmo e na
autossuficiência, mas abra o coração à graça de Deus.
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O Evangelho (Mt
25,1-13) adverte que estar preparado para acolher o Senhor é o mesmo que viver diariamente
na fidelidade aos ensinamentos de Jesus e no compromisso com os valores do
Reino. Com o exemplo das cinco jovens insensatas que não levaram azeite
suficiente para se manterem acesas as lâmpadas, enquanto aguardavam a chegada
do noivo, ficamos a saber que só os valores do Evangelho nos asseguram a
participação no banquete do Reino.
Nos capítulos 24 e 25 do seu Evangelho, Mateus apresenta o
quinto e último discurso de Jesus. Para o compor, reelaborou o discurso
escatológico de Marcos e ampliou-o com três parábolas e com a impressionante
visualização do juízo final. Enquanto o discurso em Marcos refere,
especialmente, os sinais que precederão a destruição do Templo de Jerusalém, em
Mateus aborda, sobretudo, o tema da segunda vinda de Jesus e a atitude que os
discípulos devem ter na preparação dessa vinda. Esta mudança de agulha responde
às necessidades da comunidade mateana.
Em fins do século I, passara a febre da escatologia e os
cristãos já não tinham como iminente a vinda de Jesus. Sem o entusiasmo
inicial, arrefecera a vida de fé e instalara-se a comunidade na rotina, no
comodismo, na facilidade. Era preciso abanar os discípulos e despertá-los, de
novo, para o compromisso evangélico. E Mateus, vendo que o discurso
escatológico encerra poderosa interpelação, compõe, com ele, uma exortação aos
cristãos. Recorda-lhes que a segunda vinda do Senhor está no horizonte da
História, mas, enquanto não se realiza, os crentes são chamados a viver com
coerência e entusiasmo a fé, na fidelidade aos ensinamentos de Jesus e comprometidos
com a construção do Reino, isto é, a estar vigilantes, à espera do Senhor que
vem.
A parábola em referência alude aos rituais dos casamentos
judaicos. Segundo os costumes, a cerimónia do casamento começa com a ida do
noivo a casa da noiva, para a levar para a sua nova casa. O noivo chega atrasado,
porque, antes, discute com os familiares da noiva os presentes que lhes oferecerá.
As negociações entre as duas partes são demoradas e têm importante função
social. Os parentes da noiva mostram-se exigentes, sugerindo, desse modo, que a
família perde algo de muito precioso, ao entregar a noiva a outra família. Também
o noivo e os seus familiares ficam contentes com as exigências, pois mostram
aos vizinhos e conhecidos o valor e a importância da mulher que entra na sua
família. As testemunhas do convénio prontificam-se para avisar a noiva de que
as negociações estão concluídas, pelo que o noivo vai chegar. Entretanto, a noiva,
vestida a preceito, espera em casa do seu pai que o noivo venha ao seu encontro.
As amigas da noiva esperam com as lâmpadas acesas, para acompanhar a noiva,
entre danças e cânticos, à sua nova casa, onde terá lugar a festa do casamento.
A parábola das dez virgens, como saiu da boca de Jesus, era
uma parábola do Reino (“o Reino dos Céus pode comparar-se…”). O Reino de Deus é
comparado a uma das celebrações mais alegres e mais que os Israelitas
conheciam: o banquete de casamento. As dez jovens, representam a totalidade do
Povo de Deus, que espera a chegada do Messias (o noivo). Uma parte do Povo (as
jovens previdentes) está preparada e, quando o Messias aparece, pode entrar a
fazer parte da comunidade do Reino, ao passo que a outra parte (as jovens
descuidadas) não está preparada e não pode entrar na comunidade do Reino. A parábola
original era o apelo aos Israelitas a não perderem a oportunidade de participar
na festa do Reino. Contudo, para obviar às necessidades da comunidade, a parábola
foi convertida numa exortação à preparação e à vigilância com a mira na vinda
do Senhor, que pode ocorrer no momento menos esperado.
A festa é a da segunda vinda de Jesus. O noivo que está para
chegar é Jesus. As jovens representam a Igreja que, experimentando as históricas
dificuldades e perseguições, anseia pela chegada da libertação definitiva. Uma
parte (as previdentes) está preparada, vigilante, atenta e, quando o noivo
chegar, entrará no banquete da vida; a outra parte (as descuidadas) não está
preparada, porque, apostada nos valores mundanos, guiou a vida por eles e
esqueceu os valores do Reino.
“Estar preparado para acolher a vinda do Senhor” significa, na
lógica mateana, escutar a palavra de Jesus, acolhê-la no coração e viver de
forma coerente com os valores evangélicos; significa viver na fidelidade ao desígnio
do Pai e amar os irmãos até ao dom da vida, em todos os instantes da nossa
existência.
A mensagem da parábola aos cristãos da comunidade mateana e aos
cristãos de todas as comunidades cristãs de todos os tempos e lugares é: os
crentes não podem afrouxar a vigilância e enfraquecer o compromisso com os
valores do Reino. Com o tempo, as comunidades tendem a instalar-se no comodismo,
no descuido, na vida de fé que não compromete, na religião de meias tintas, no
testemunho pouco empenhado e pouco coerente. Por isso, urge renovar,
diariamente, o compromisso com Jesus. A certeza de que Ele virá deve
impulsionar o compromisso ativo com os valores do Evangelho, na fidelidade aos
ensinamentos de Jesus e ao compromisso com o Reino.
***
Na segunda leitura (1Ts
4,13-18), Paulo garante aos Tessalonicenses que Jesus virá de novo, para
concluir a História humana e para inaugurar o mundo definitivo. Quem tiver
aderido a Jesus e se tiver identificado com Ele irá ao encontro do Senhor e
ficará com Ele para sempre.
Paulo teve pouco tempo para evangelizar Tessalónica. Após
algumas semanas de pregação, por força de um motim preparado pelos Judeus,
deixou precipitadamente a cidade, ficando atrás de si uma comunidade cristã
fervorosa e entusiasta, mas insuficientemente preparada do ponto de vista catequético.
O apóstolo foi para Bereia, depois para Atenas e Corinto. De Corinto, enviou
Timóteo a Tessalónica, para verificar como se estava a aguentar a comunidade, face
à hostilidade dos Judeus. No regresso a Corinto, Timóteo deu conta da situação
da comunidade: vivia a fé com entusiasmo, embora tivesse dúvidas em questões de
doutrina.
Um dos problemas teológicos que mais preocupava os Tessalonicenses
era a questão da parusia (regresso de Jesus no fim dos tempos). Paulo e as
primeiras gerações cristãs acreditavam que esse dia surgiria em curto espaço de
tempo e que assistiriam ao triunfo final de Jesus. A este propósito, os Tessalonicenses
questionavam-se sobre qual será a sorte dos cristãos que morrerem antes da
segunda vinda de Cristo e sobre como sairão ao encontro de Cristo vitorioso,
para entrarem com Ele no Reino de Deus, se já estão mortos.
O apóstolo confirma o que lhes havia ensinado: Cristo virá
para concluir a História humana; e todo aquele que tiver aderido a Cristo e se
tiver identificado com Ele, morto ou vivo, encontrará a salvação. Se Cristo
recebeu do Pai a vida que não acaba, quem se identifica com Cristo está
destinado a vida semelhante. Com efeito, a morte não tem poder sobre Cristo nem
sobre os seus seguidores. Isto, enchendo de esperança o cristão, torna-o sereno
e cheio de ânimo.
Quanto ao modo como os que já morreram assistirão ao triunfo
final de Cristo, Paulo não é muito explícito, pois sabe que se trata de uma realidade
misteriosa, que transcende a lógica e a linguagem humanas. Todavia, para
descrever a passagem do homem velho para o estado do homem novo que vive, para
sempre, junto de Deus, recorre ao género apocalítico, género literário que
utiliza a imagem e o símbolo – a linguagem adequada para expressar uma
realidade que nos ultrapassa e que não sabemos definir e explicar.
O quadro que Paulo traça é: os crentes que morreram
ressuscitarão primeiro (“à voz do arcanjo”, “ao som da trombeta de Deus” –
elementos da escatologia judaica); depois, em companhia de “nós, os vivos”,
irão ao encontro do Senhor que vem na sua glória e permanecerão com Ele para
sempre. Porém, o que está em causa não é o quadro fotográfico da última vinda
do Senhor, mas tranquilizar os Tessalonicenses, assegurando que não haverá
diferença ou discriminação entre os que morreram antes da vinda de Jesus e os
que permanecerem vivos até esse instante: uns e outros encontrar-se-ão com o
Senhor Jesus, partilharão o seu triunfo e entrarão com Ele na glória.
A certeza da ressurreição garante-nos que Deus tem um
desígnio de salvação e de vida para cada homem e que está a realizar-se
continuamente em nós, até à sua concretização plena, quando nos encontrarmos
definitivamente com Deus. O presente não é, pois, um drama absurdo, sem sentido
ou finalidade; é a caminhada tranquila, confiante – embora feita no sofrimento
e na dor – em direção ao desabrochar pleno para essa vida total em que se
revelará o Homem Novo. Isto não quer dizer que devamos ignorar as coisas boas
deste Mundo, vivendo apenas à espera da recompensa futura, no céu; quer dizer
que a nossa existência deve ser – já neste mundo – a busca da vida e da
felicidade, o que implicará uma não conformação com o que nos rouba a vida e
nos impede de obter a felicidade plena, a perfeição última, a nós e a todos os
homens, nossos irmãos.
***
Depois desta descoberta, a sabedoria da preparação vigilante
leva-nos a viver sem medo. Comprometidos com o Reino de Deus, temos de nos
comprometer na luta pela justiça e pela paz, certos de que a injustiça e a
opressão não podem pôr fim à vida que nos anima; e, na medida em que nos
comprometemos com o Mundo novo inaugurado por Criso e o construímos com gestos
concretos, anunciamos a ressurreição plena do Mundo, dos viventes e das coisas.
2023.11.12
– Louro de Carvalho
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