Foi conhecida, a 8 de novembro, a carta de
renúncia de Craig Mokhiber, diretor do Escritório de Nova York do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUD) ou, em Inglês, Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights (OHCHR), dirigida ao Alto-Comissário, o austríaco Volker
Türk.
O OHCHR, o órgão
da Organização das Nações Unidas (ONU), criado pela Assembleia Geral, a 20 de
dezembro de 1993, promove e protege os Direitos
Humanos inscritos na legislação internacional e estipulados na Declaração
Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948.
Craig Mokhiber diz escrever em momento de grande
angústia para o Mundo. Com efeito, está a desenrolar-se, à vista de todos, um genocídio e a ONU parece impotente para o impedir.
O renunciante
refere que pesquisa os direitos humanos na Palestina desde a década de 1980,
viveu em Gaza como consultor de direitos humanos da ONU na década de 1990 e
realizou várias missões de direitos humanos no país antes e depois desses períodos.
Lembra que trabalhou durante os genocídios contra os tutsis, os muçulmanos bósnios,
os yazidis e os rohingyas, tendo verificado que, depois de a poeira de assentar
“sobre os horrores perpetrados contra populações civis indefesas”, se tornou claro
que se falhou no dever de cumprir os imperativos de prevenir atrocidades em
massa, de proteger os vulneráveis e de responsabilizar os perpetradores. E isso
tem acontecido com as sucessivas ondas de assassinatos e de perseguição de Palestinianos
ao longo da existência da ONU, que está a falhar mais uma vez.
O advogado
de direitos humanos com larga experiência nesta área está ciente de que se
abusou politicamente do conceito de genocídio. Porém, a matança do povo palestiniano,
enraizada na ideologia etnonacionalista colonial, em décadas de sistemáticas perseguição
e limpeza, baseada inteiramente na sua “arabidade” e associada a declarações de
intenção do governo israelita e de líderes militares, não deixa margem para
dúvidas. Em Gaza, são atacadas, sem motivo, casas, escolas, igrejas, mesquitas
e instalações médicas e são massacrados milhares de civis. Na Cisjordânia,
incluindo Jerusalém, as casas são confiscadas e realocadas com base na raça.
Além disso, pogroms violentos perpetrados por colonos são acompanhados por
unidades militares israelitas. O apartheid
asfixia todo o país. Este é um caso exemplar de genocídio.
O projeto
colonial europeu de colonização na Palestina entrou na fase final, rumo à
destruição acelerada dos últimos vestígios da vida indígena palestiniana na
Palestina, do que são cúmplices os governos dos Estados Unidos da América (EUA),
do Reino Unido (UK) e de grande parte da Europa, que recusam cumprir as
obrigações de “garantir a conformidade” com as Convenções de Genebra e armam ativamente
a ofensiva, fornecendo apoio económico, inteligência e cobertura política e
diplomática às atrocidades de Israel.
E a comunicação
social corporativa ocidental, por vezes, a mando dos governos, viola o artigo
20.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, desumanizando os
Palestinianos para justificar o genocídio e disseminar propaganda de guerra e
apelos ao ódio nacional, declarações raciais ou religiosas que incitam à
discriminação, à hostilidade e à violência. Além disso, “abafam as vozes dos
ativistas de direitos humanos, enquanto amplificam a propaganda pró-Israel”. Os
policiais de Internet do lobby de Israel e os Gongos assediam e
difamam os defensores dos direitos humanos; e as universidades e os
empregadores ocidentais colaboram para punir os que se manifestam contra as
atrocidades. E esses atores também serão responsabilizados, como foi o caso
da Radio des Milles Collines, de abril a julho de 1994, em Ruanda.
Nestas
circunstâncias, a ONU é chamada a agir de modo eficaz e com princípios.
Todavia, o poder de proteção do Conselho de Segurança foi mais uma vez
bloqueado pela intransigência dos EUA, o secretário-geral é atacado pelos seus
protestos e os mecanismos de direitos humanos são alvo de caluniosos ataques apoiados
por uma rede online que defende a
impunidade.
Décadas de
distração com as promessas ilusórias e dececionantes de Oslo desviaram a
organização do dever essencial de proteger o direito internacional, os direitos
humanos e a própria Carta da ONU. A “solução de dois Estados” tornou-se uma
piada aberta nos corredores da ONU, pela sua total impossibilidade prática e
pela total incapacidade de levar em conta os inalienáveis direitos humanos do
povo palestiniano. A referência (escrita pelos EUA) a “acordos entre as
próprias partes”, em vez de leis internacionais, foi sempre um truque para
fortalecer o poder de Israel contra os direitos dos Palestinianos ocupados e
despossuídos.
Craig Mokhiber entrou para o OHCHR, na década de 1980, porque viu aqui uma instituição
baseada em princípios e padrões do lado dos direitos humanos. Enquanto grande
parte da comunicação social americana apoia ou justificava o apartheid sul-africano, a opressão
israelita e os esquadrões da morte da América Central, a ONU defendia os povos
oprimidos desses países, em nome dos direitos humanos. Porém, membros importantes
da ONU curvaram-se ao poder dos EUA e ao medo do lobby israelita, renunciando ao direito internacional. O povo
palestiniano “sofreu as maiores perdas por causa de nossos fracassos” e a DUDH
foi adotada no ano da Nakba (catástrofe) do povo palestiniano (cerca
de 750 mil árabes tiveram de fugir das suas casas).
Ao
comemorarmos o 75.º aniversário da DUDH, devia-se abandonar o mito de que ela nasceu
das atrocidades que a precederam e admitir que ela nasceu juntamente com um dos
mais hediondos genocídios do século XX, a destruição da Palestina. De certo
modo, foram prometidos direitos humanos a todos, menos ao povo palestiniano. E
a ONU cometeu o pecado original de “facilitar a desapropriação do povo palestiniano,
ao ratificar o projeto colonial europeu que se apoderou das terras palestinianas
e as entregou aos colonos”.
Temos muito
a aprender com a posição de princípios adotada, nos últimos dias, em cidades de
todo o Mundo, com milhões de pessoas a manifestarem-se contra o genocídio. Os Palestinianos
e seus aliados, ativistas de direitos humanos, organizações cristãs e
muçulmanas e vozes judaicas progressistas, dizendo “não em nosso nome”, estão a
liderar o caminho. Ao fazerem isso, deixam de lado o argumento da propaganda
hasbara israelita e o velho clichê do antissemitismo de que Israel representa o
povo judeu, o que não é o caso. Antes, Israel é o único responsável pelos seus
crimes. Por isso, vale a pena repetir que a crítica às violações dos direitos
humanos de Israel não é antissemita, tal como a crítica às violações sauditas
não é islamofóbica, a crítica às violações de Mianmar não é antibudista, nem a
crítica às violações indianas é anti-hindu.
Apesar de
tudo, os relatores especiais independentes, as comissões de inquérito, os
especialistas de órgãos de tratados e a maioria de funcionários continuam a
defender os direitos humanos do povo palestiniano, mesmo quando outros membros
da ONU se curvam aos poderosos. Como guardião dos padrões de direitos
humanos, o OHCHR tem o dever especial de os defender. A sua tarefa é fazer com
que seja ouvida a sua voz, desde o secretário-geral até ao último recruta da
ONU e em todo o sistema da ONU, insistindo para que os direitos humanos do povo
palestiniano não sejam debatidos, negociados ou comprometidos, em nenhum lugar.
E o
renunciante sustenta que é preciso ter “a lucidez de enxergar além das cortinas
de fumaça propagandísticas que distorcem a visão de justiça”, bem como “a
coragem de abandonar o medo e a deferência aos Estados poderosos e a vontade de
erguer a bandeira dos direitos humanos e da paz”. O projeto de longo prazo e o
caminho íngreme assentam em dez pontos fundamentais:
- Ação
legítima: A ONU deve abandonar a ilusória solução de dois Estados, devendo as
suas posições basear-se, inequivocamente, nos direitos humanos e no direito
internacional.
- Visão
clara: É preciso parar de fingir que se trata só de um conflito territorial ou
religioso entre dois beligerantes e admitir que a realidade é a de um Estado
com poder desproporcional a colonizar, a perseguir e a desapropriar a população
indígena com base na sua etnia.
- Um único
Estado baseado nos direitos humanos: Há que apoiar o estabelecimento de um
único Estado democrático e secular em toda a Palestina histórica, com direitos
iguais para cristãos, muçulmanos e judeus; e desmantelar o projeto colonialista
racista e o fim do apartheid.
- Luta
contra o apartheid: Há que
redirecionar todos os esforços e recursos da ONU para a luta contra o
apartheid, como se fez com a África do Sul.
- Retorno e
compensação: Deve-se insistir no direito de retorno e na compensação total a
todos os Palestinianos e às suas famílias que vivem nos territórios ocupados e
na diáspora.
- Verdade e
justiça: É preciso exigir um processo de justiça transicional, fazendo pleno
uso das décadas de investigações, pesquisas e relatórios acumulados da ONU,
para responsabilizar os criminosos, a indemnizar as vítimas e a reparar as
injustiças.
- Proteção:
Há que insistir no envio de uma força de proteção da ONU com recursos
suficientes e com forte mandato para proteger os civis, do rio ao mar.
-
Desarmamento: É preciso defender a retirada e a destruição dos arsenais maciços
de armas nucleares, químicas e biológicas de Israel, para o conflito não levar
à destruição da região.
- Mediação:
É de reconhecer que os EUA e outras potências ocidentais não são mediadores
confiáveis, mas partes do conflito e cúmplices de Israel na violação dos
direitos palestinianos.
-
Solidariedade: É abrir as portas do OHCHR e as da Secretaria-Geral às legiões
de defensores dos direitos humanos palestinianos, israelitas, judeus,
muçulmanos e cristãos que se solidarizam com o povo da Palestina e com os seus
direitos, e interromper o fluxo desenfreado de lobistas israelitas para os
escritórios dos líderes da ONU, a defender a continuação da guerra.
É preciso
trabalhar por um cessar-fogo imediato e pelo fim do cerco a Gaza, travar a
limpeza étnica de Gaza, de Jerusalém, da Cisjordânia e de outros lugares,
documentar o ataque genocida a Gaza, ajudar a fornecer aos Palestinianos ajuda
humanitária e reconstrução em massa, cuidar dos colegas traumatizados e das
suas famílias e “lutar com todas as forças para garantir que a abordagem dos
escritórios políticos da ONU seja baseada em princípios”.
O fracasso
da ONU na Palestina não é motivo para desistência. Ao invés, deve incentivar ao
abandono do paradigma fracassado e adotar um curso de ação baseado em
princípios. O OHCHR, precisa da união corajosa ao movimento antiapartheid, que está a crescer em
toda a parte, acrescentando o logótipo da organização à bandeira da igualdade e
dos direitos humanos para o povo palestiniano. É preciso colocarem-se todos do
lado da justiça.
E, porque a
renúncia de Mokhiber
é por motivo de reforma e não de abandono, disponibiliza-se para o que puder
fazer pela causa, no futuro.
***
A
carta não constitui só um protesto ou denúncia, mas é uma avaliação contundente
do papel da ONU, da sua fragilidade genética ligada à questão palestiniana. E,
além disso, é um roteiro para a solidariedade internacional com a Palestina. A
renúncia foi noticiada e, nos média ocidentais, logo esquecida; a carta foi citada
ao de leve, mas pouco divulgada, talvez pela “inconveniência” do conteúdo. Porém,
o tempo atribuir-lhe-á o estatuto de documento histórico.
Mokhiber
carateriza como genocídio o que tantos designam de direito à autodefesa de
Israel. Ao invés, são os governantes e os militares de Israel que assumem o
projeto genocida. Perante isto, a comunidade internacional, a ONU, os EUA e a
Europa claudicam, face ao que Mokhiber chama “lobby de Israel” e à chantagem
que, de propósito, confunde antissionismo e com antissemitismo. Por outro lado,
a carta vinca a coincidência temporal da publicação da DUDH com a Nabka. Assim,
prometia direitos humanos a todos, exceto ao povo palestiniano. E a ONU
facilitou a expropriação do povo palestiniano, ratificando o projeto colonial que
se apoderou da Palestina e a entregou aos novos colonos. É a hipocrisia no seu refinamento!
2023.11.10 –
Louro de Carvalho
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