Após a experiência da entrega às farmácias da
vacinação contra a gripe e contra a covid-19, referente a maiores de 60 anos,
reservando ao serviço público a vacinação dos portadores de comorbidades com
idade inferior, a Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde (DE-SNS), como
anunciou o diretor
executivo, quer alargar a vacinação contra o tétano e a difteria em adultos às
farmácias comunitárias, para aumentar a cobertura da população.
Em razão do
sucesso da vacinação contra a covid-19 e contra a gripe, em que foram já
administradas mais de 3,3 milhões de vacinas, Fernando Araújo defendeu a importância
de aproveitar esta “máquina instalada” nas farmácias para alargar a outras
vacinas do Programa Nacional de Vacinação (PNV), nomeadamente à vacina do
tétano e da difteria. “Há capacidade, há disponibilidade e acho que é uma via
importante para aumentar essa adesão neste tipo de vacinas”, afirmou, a 20 de
novembro, na Conferência “As Farmácias na Jornada da Saúde das Pessoas”, na
Assembleia da República, em Lisboa, promovida pela Associação Nacional das
Farmácias (ANF), que apresentou o Livro
Branco das Farmácias Portuguesas.
Citando
dados dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), disse que, em
2022, terão sido vacinados cerca de meio milhão de utentes com estas vacinas. E
adiantou que vão trabalhar com a Direção-Geral da Saúde (DGS), em termos
técnicos e das normas, com o Infarmed, para regulamentar, com a Ordem dos
Farmacêuticos (OF) e com as farmácias, para analisar a forma de o fazer. “Mas
temos todas as condições de também, no âmbito do PNV, no caso dos adultos,
aumentar os locais de vacinação”, defendeu, garantindo que “os cuidados de
saúde primários continuam a ser sempre um local aberto para esse fim”.
Contudo,
disse, na vacinação “não se podem perder oportunidades”. Quando um utente se
desloca à consulta do médico de família ou vai ao enfermeiro de família, temos
sempre que avaliar se o plano de vacinação está ou não a ser cumprido, se não estiver,
oferecer essa resposta”, salientou, defendendo que o alargamento desta
possibilidade às mais de três mil farmácias cria uma “capacidade única de
chegar a quem, por vezes”, não se consegue chegar.
Além desta
medida, a DGS tem estado debruçada sobre outras que pretende impulsionar em
termos de agenda, em 2024, e que se cruzam com algumas do Livro Branco como a “intervenção
terapêutica em situações clínicas ligeiras” pelas farmácias.
A DE-SNS
está a fazer um trabalho de base com a Comissão Nacional de Proteção de Dados, (CNPD)
“imprescindível para esse fim”, esperando que, no início de 2024, consigam
estabelecer os parâmetros e as bases necessários.
Fernando
Araújo destacou como medida “mais emblemática, na área do VIH [vírus da
imunodeficiência], a possibilidade de as farmácias terem acesso à PREP
[profilaxia pré-exposição]. Este trabalho é no sentido de os farmacêuticos, mas
também de os psicólogos e de os nutricionistas terem acesso “a partes do
registo de saúde eletrónico” do utente, a “informação clínica valiosa para a
sua atividade” de, simultaneamente, poderem fazer registo da sua atividade clínica
no processo do utente. O que está a ser trabalhado com a CNPD é a limitação das
áreas críticas em termos de segurança para os utentes.
Revelou
ainda o objetivo de desenhar um projeto-piloto numa área geográfica delimitada
com uma patologia, por exemplo, as infeções do trato urinário baixo não
complicadas em mulheres. Este trabalho terá que ser feito com a DGS e com
protocolos de diagnóstico e de tratamento previamente validados. “Queremos, de
uma forma controlada, reduzir a pressão dos médicos de família e a procura que
é desnecessária na urgência, quando há outro tipo de soluções que estão
previstas ou disponíveis também no sistema de saúde”, defendeu.
***
Por seu turno, a ANF propõe a integração das farmácias
comunitárias nos rastreios nacionais, como é o caso do rastreio dermatológico
ou do cancro colorretal, sempre “em colaboração com os restantes serviços de
saúde”. Sugere a possibilidade de auxiliarem nas situações clínicas ligeiras,
contribuindo para a redução da sobrecarga das urgências hospitalares, e a
criação do farmacêutico de família. São medidas, entre outras, constantes no já
referido Livro Branco.
O Livro Banco, de 154 páginas, lança um repto aos decisores
políticos, reguladores e parceiros para alterações e propostas que melhorem a
sustentabilidade do sistema de Saúde, através de modelos colaborativos com as
farmácias.
Ema Paulino, presidente da ANF, considerou que este livro
branco, que “não partiu de uma folha em branco”, reflete “a relação da farmácia
e dos seus profissionais de saúde com as pessoas e materializa a sua intervenção
na sociedade”. E frisou que o desenvolvimento farmacêutico ao longo de décadas,
onde as farmácias se adaptaram às necessidades da população, na missão de
“otimizar a efetividade das terapêuticas” e de contribuir para a sua melhor
qualidade de vida.
Destacou as propostas presentes segundo as quais as farmácias
podem apoiar o sistema de Saúde, como a prevenção e rastreio de hepatites
virais, do VIH e de outras infeções, a integração nos rastreios nacionais, a
referenciação para outros níveis de cuidados, a intervenção ativa na saúde
mental e a prescrição social, sinalizando e encaminhando pessoas para as
instituições adequadas, se necessário. E realçou o conceito de farmacêutico de
família, que considera ter “um enorme potencial”, na perspetiva de haver esta
figura com quem o médico de família e o enfermeiro de família podem interagir e,
dessa forma, potenciar, enquanto equipa multidisciplinar de saúde, os cuidados
que são prestados à população.
Presente na conferência, o diretor executivo do SNS afirmou
que o Livro Branco está “muito bem estruturado e abre um conjunto de dimensões
que podem e devem ser exploradas”. “Importa agora que este livro branco não
fique numa prateleira qualquer de uma biblioteca ou numa ‘cloud’ algures no
sistema”, comentou, admitindo que o documento contém “propostas inovadoras e
medidas que são motivo de reflexão há alguns anos”, mas não implementadas. E
disse que “é o tempo de fazer acontecer”: “Temos uma janela de oportunidade. Eu
diria que politicamente a situação é mais complexa, mas não é isso que nos deve
demover de tecnicamente atingirmos resultados, defendendo os cuidados de saúde
aos Portugueses”.
Para isso, defendeu, “é necessário algo, como o que foi feito
na construção deste Livro Branco, que é uma parceria e um envolvimento de todos
os agentes do sistema de saúde”, para permitir acesso e equidade aos cuidados
de saúde, “olhando sempre numa perspetiva de futuro”.
Fernando Araújo realçou o papel das mais de três mil
farmácias e postos farmacêuticos em todo o país, com mais de 10 mil
farmacêuticos “altamente qualificados, em quem os portugueses confiam e, por
isso, é tempo de os integrar uma política ativa de saúde pública”.
Segundo a ANF, o Livro
Branco das Farmácias Portuguesas é uma ferramenta orientadora do
desenvolvimento das farmácias na próxima década, com o objetivo de ser uma peça
essencial para projetar o futuro do setor e da sua ação no contexto da Saúde. Materializa
a ambição das farmácias em continuar a transformar os cuidados de saúde e
propõe áreas prioritárias de atuação numa jornada tridimensional para a
farmácia: “transformação da jornada da saúde das pessoas”, “capacitação
profissional e tecnológica catalisadora da mudança” e “conhecimento e regulação
ao serviço da sociedade”.
É
amplo o espectro de atividades do farmacêutico comunitário. Portugal é referido,
nos meios políticos e científicos, como um dos países na Europa em que um maior
leque de serviços é disponibilizado à população. Pela ampla cobertura
geográfica que as farmácias têm no território e pela elevada competência
técnico-científica dos seus recursos humanos, estas estruturas são aliados essenciais
para a garantia dos pilares preconizados no SNS: a acessibilidade ao
medicamento e a equidade na prestação de cuidados de saúde de qualidade a todos
os cidadãos, independentemente da sua localização geográfica.
Em
muitas zonas, as farmácias são a única estrutura de saúde disponível para
cuidados de proximidade, sendo aí o farmacêutico o único profissional capaz de
evitar deslocações a outros serviços de saúde perante transtornos de saúde
menores, através da dispensa e aconselhamento sobre medicamentos não sujeitos a
receita médica e de medicamentos de venda exclusiva em farmácia. Tem papel
relevante na promoção da literacia em saúde e na navegação do cidadão no
sistema de saúde, favorecendo o bom uso dos escassos recursos disponíveis.
O farmacêutico
comunitário tem posição privilegiada para contribuir em áreas como a gestão da
terapêutica, administração de medicamentos, determinação de parâmetros,
identificação de pessoas em risco, deteção precoce de doenças e promoção de
estilos de vida mais saudáveis.
Competente
em farmacoterapia, o farmacêutico, tem papel determinante na promoção do uso
responsável do medicamento, em articulação com os restantes profissionais de
saúde. Nesta área, destacam-se alguns serviços de diferentes graus de complexidade:
- Gestão
e otimização da terapêutica periódica e enquadrada num plano contínuo com vista
a objetivos terapêuticos e à identificação e resolução ou prevenção de
problemas relacionados com medicamentos – um serviço direcionado, sobretudo,
para pessoas com terapêuticas crónicas em geral, ou para grupos específicos de
patologias, nomeadamente a diabetes, asma/doença pulmonar obstrutiva crónica ou
hipertensão/dislipidemia;
- Revisão
da medicação, a qual poderá ser feita, de forma isolada, recorrendo ao histórico
farmacoterapêutico da farmácia, ou articulada com a medicação proveniente de
outras fontes – sendo este último serviço particularmente útil em pessoas que
transitam entre diferentes níveis de cuidados, nomeadamente o hospital e os
cuidados continuados;
- Promoção
da utilização de medicamentos genéricos, que se encontra cofinanciada pelo SNS,
tendo papel importante na promoção da adesão à terapêutica;
- Promoção
do autocuidado e orientação do cidadão na utilização de medicamento que recorra
a dispositivo médico para correta administração;
- Encaminhamento
do doente para diversos programas de adesão à terapêutica, disponíveis em
vários formatos, desde o envio de alertas até à preparação individualizada da
medicação.
A
prevenção da doença e das suas complicações postula a identificação de fatores
de risco e de referenciação atempada para cuidados médicos especializados e
adequados à situação em causa. Praticamente em todas as farmácias, os cidadãos
podem entrar a qualquer hora do dia e, sem marcação, fazer a determinação da
pressão arterial, glicémia, colesterol, índice de massa corporal, débito
expiratório máximo instantâneo ou calcular o risco cardiovascular, entre muitos
outros testes mais recentes que têm vindo progressivamente a ser implementados.
Na Saúde
Pública, é importante o contributo dos farmacêuticos na preservação do
ambiente, através da participação em programas de reciclagem (e.g. recolha de
radiografias) ou de gestão de resíduos (e.g. recolha de medicamentos fora de
uso), bem como da participação em programas que versam comportamentos aditivos
e dependências e do envolvimento em programas de minimização de danos. O
incentivo à adoção de comportamentos saudáveis tem sido área cada vez mais
abraçada pelos farmacêuticos, começando já a ser frequentes as farmácias que
dispõem do serviço de cessação tabágica, por exemplo.
Os
farmacêuticos comunitários estão empenhados em disponibilizar cada vez mais
serviços essenciais à saúde do utente, quer na vertente preventiva quer na
vertente terapêutica.
***
Porém, a Ordem dos Enfermeiros (OE) não concorda com a vacinação do
tétano e da difteria (integrantes do PNV) nas farmácias que estas efetuem intervenções terapêuticas em situações
clínicas ligeiras, acusando a DE-SNS de
“desmantelar o SNS” e canalizar para privados verbas que deviam ser
investimento público. “Não podemos permitir que se esteja a desmantelar
o SNS desta forma. A prioridade do governo deveria ser o reforço dos recursos
dos cuidados de saúde primários, em vez de canalizar verbas para empresas
privadas sem competência para garantir condições adequadas quer à administração
de qualquer vacina, quer para efetuar intervenções terapêuticas. É a segurança
das pessoas que está em causa”, defende a OE em comunicado.
E, em carta aberta, de 23 de novembro, a entregar ao diretor executivo do
SNS, os enfermeiros mostram-se preocupados com as competências que poderão
passar para os farmacêuticos. “Apelamos
que o diretor executivo do SNS leia os estatutos das profissões e que perceba que
não as pode atropelar”, afirma Paula Maia, representante da lista C, que foi
candidata aos órgãos regionais do Norte da Ordem dos Enfermeiros e que assina a
carta aberta.
Entre outras
preocupações, os enfermeiros chamam a atenção para as propostas do Livro Branco das Farmácias
Portuguesas, ao sugerir
que as farmácias apoiem o SNS em diversas áreas, como a prevenção e rastreio de
hepatites virais, a vacinação e a saúde mental, por exemplo.
Não veem com
bons olhos as palavras de elogio de Fernando Araújo ao livro e pedem que leia
os estatutos de cada uma das profissões. “No Estatuto dos Farmacêuticos,
particularmente no seu artigo 75.º, não conseguimos vislumbrar a base para os
eixos estratégicos/dimensões a que se propõe a Associação Nacional das Farmácias
e as Farmácias Portuguesas”, lê-se na carta aberta.
Paula Maia
explica que, além de a “transferência” de competências colidir com o estatuto
dos farmacêuticos, põe em causa o lugar e os postos de trabalho dos
enfermeiros. “Isto começou com as vacinas da covid-19 e da gripe, agora começam
a entrar no plano nacional de vacinação e será alargado. Abriu-se a caixa de
pandora, nomeadamente na questão da vigilância de saúde, da saúde mental e da
referenciação para o hospital”, sustenta, revelando que os enfermeiros temem
pela segurança dos utentes, pois “tudo o que é vigilância de saúde, de
grávidas, de crianças e dos doentes crónicos, são os enfermeiros que fazem”. Se
tal vigilância for feita pelo farmacêutico, menos preparado, há a questão do “risco
para a população”.
***
Não
me preocupa a perda de competências dos enfermeiros, perda que não ocorrerá, a
menos que a concorrência configure a perda (do monopólio corporativo). Todavia,
a DE-SNS, em vez de colher a lição do serviço de proximidade que as farmácias
prestam com interesse comercial (as entidades comerciais desistem, logo que o
lucro seja exíguo), passa-lhes valências essenciais de serviço público, a troco
de pagamento. Ou seja, em vez de investir na formação e na carreira de mais
médicos e de mais enfermeiros e de criar mais e melhores serviços de efetiva
proximidade e atendimento 24/24 horas, contratualiza com privados. E, assim,
pouco a pouco, se esvai o SNS. Para isso, não precisávamos da DE-SNS.
2013.11.23 – Louro de Carvalho
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