O “Levantamento das Caldas”, “Intentona das Caldas” ou “Revolta
das Caldas”, como ficou na memória coletiva a malograda tentativa de golpe de
Estado, a 16 de março de 1974, é tido como o prenúncio da Revolução dos Cravos
que derrubou o regime ditatorial do Estado Novo e referido como o catalisador
que aglutinou o oficialato em torno do Movimento das Forças Armadas (MFA). Trata-se,
efetivamente, de um movimento de alguns oficiais ligados ao MFA próximos do
General António de Spínola, que havia sido exonerado de Vice-Chefe do Estado
Maior das Forças Armadas (vice-CEMGFA) pouco antes por Marcelo Caetano,
juntamente com o General Francisco da Costa Gomes, Chefe do Estado Maior das
Forças Armadas (CEMGFA).
Apesar de, no início, estar prevista a participação de outras
unidades militares, só o Regimento de Infantaria n.º 5 (RI5), de Caldas da
Rainha, avançou para Lisboa, sob o comando do capitão Armando Marques Ramos.
Isolado, o avanço foi travado por unidades leais ao regime já às portas de
Lisboa, sem derramamento de sangue. Todavia, cerca de 200 homens,
entre oficiais, sargentos e praças foram presos. Os oficiais ficaram
encarcerados na prisão da Trafaria, até que foram libertados no dia 25 de Abril
de 1974, quando eclodiu a Revolução dos Cravos.
***
Sobre a oportunidade e o significado desta malograda
tentativa de golpe de Estado, pesam dúvidas, reticências e cautelas.
A eclosão do
golpe militar vitorioso no 25 de Abril, que escancarou as portas à infração à
tradicional obediência autómata e ao movimento popular revolucionário, não é estranha
à ação militar desencadeada, a 16 de março (já lá vão 49 anos) à revelia da
Comissão Coordenadora do Movimento e de que poderiam ter resultado funestas
consequências para o Movimento dos Capitães (MOCAP), depois Movimento dos
Oficiais das Forças Armadas (MOFA) e, por fim, Movimento das Forças Armadas
(MFA). Isto, porque a orientação maioritária saída das sucessivas reuniões que
enformavam a decisão de derrubar o regime salazarista-caetanista tinha, como
ponto de honra, a criação das condições para a serena transmissão de poderes da
potência colonial para os movimentos de libertação no reconhecimento da sua
vitória militar e política.
A 22 de
fevereiro de 1974, é publicado o livro Portugal
e o Futuro, do General António de Spínola, sob os auspícios do General
Costa Gomes, o que alguns consideraram o fator decisivo para o desencadeamento
do 25 de Abril. Com efeito, o livro teve como primeira consequência a separação
das águas nas Forças Armadas (FA), levando Marcello Caetano, pressionado por
Américo Tomaz, a convocar os comandos militares para lhe prestarem vassalagem,
o que sucedeu (foi o beija-mão da “Brigada do Reumático”) com a ausência
ostensiva de CEMGFA e do Vice-CEMGFA, bem como do Almirante Antonio Tierno Bagulho,
Chefe do Estado-Maior da Armada.
Também não
compareceu o general Kaulza de Arriaga, mas por razões opostas: preparava um
golpe ultrafascista que ficou no ovo, mas à espera de oportunidade que nunca
chegou.
Outra
consequência do livro foi a consolidação das suspeitas de Marcello de que as ações
reivindicativas dos capitães estavam a gerar capacidade política interventiva,
o que tinha todas as condições para se transformar em ação de força militar. E
uma terceira consequência foi concitar a adesão de muitos capitães, até então
pouco confiantes nas suas próprias capacidades e na força imparável do
movimento, pois ficaram convictos de que podiam contar com um comandante, como
estavam habituados. Assim, António de Spínola aparecia como o congregador de
uma ação contra o regime, que advogava, ao invés deste, uma solução política e
não militar. Marcello terá proposto a Spínola e a Costa Gomes que assumissem o
governo, o que ambos recusaram, e apresentou a sua demissão, que não foi aceite
pelo Presidente da República, Américo Tomaz. A atribuição dos mais altos cargos
nas FA aos dois generais tinha sido a forma de tentar mantê-los com rédea curta
e comprometidos organicamente com o regime. Por causa da sua não comparência na
manifestação, foram exonerados dos seus cargos.
Spínola, pela
sua personalidade, pelo facto de ser um comandante operacional reconhecido e
pela forma como comandava, mantendo a disciplina através do exemplo nas
situações mais difíceis e concitando fidelidades incondicionais que sabia gerir
como poucos, suscitou as esperanças de setores do Movimento hesitantes ou
contrários à fratura do Portugal imperial.
Os homens que
formaram a equipa sólida e irredutível de Spínola, desde o seu comando de
batalhão em Angola até ao comando-chefe e ao governo da Guiné, integravam o
Movimento na perspetiva política defendida em Portugal e o Futuro e pretendiam que Spínola fosse o chefe supremo
acompanhado pela sua equipa de fiéis incondicionais, transferindo a mística
militarista da guerra colonial para o futuro governo da nação democrática e integrando
a grande comunidade indissolúvel dos povos autodeterminados, já que não tinham
conseguido submetê-los na guerra.
Nestes
termos, o golpe das Caldas foi uma irresponsável aventura em termos militares, que
se saldou por um falhanço monumental, já que estava descolada do resto do
Movimento.
Em todo o
caso, convém tê-la em linha de conta.
A demissão de
Costa Gomes e de Spínola no dia seguinte à sua não comparência, a 14 de março,
ao beija-mão a Marcello Caetano da parte da “Brigada do Reumático” (todos os
generais das FA coloniais) provocou forte comoção nos membros do Movimento que
decidiram concentrar-se no Terreiro do Paço fardados e ostentando as condecorações,
por alvitre de Spínola, e apresentar-se formalmente aos comandantes das respetivas
unidades militares, fazendo saber da sua discordância e revolta pela exoneração
dos seus dois mais prestigiados generais.
Entretanto,
depois do plenário do Movimento, a 5 de março, num ateliê em Cascais, cujas
salas foram pequenas para acolher as duas centenas de participantes, estavam
criadas as condições para o grande salto em frente. Aí fora aprovada a matriz
permanente da organização e os contactos dos vários núcleos do movimento de
Norte a Sul do país, e o manifesto nuclear de todo o processo. “O Movimento, as
Forças Armadas e a Nação”, que seria a base do programa do Movimento a ser
assinado pelos que se queriam comprometer até às últimas consequências. E foram
muitos.
Após
discussão e confrontação, ficou clara a orientação de se ir até à liquidação do
regime, bem como a total confiança na Comissão Coordenadora para decidir e
dirigir os passos seguintes. E ficou decidido preparar a resolução do problema
que estivera na base dos primeiros atos do movimento, o diferendo “corporativo”
entre oficiais do Quadro Permanente e Quadro Especial de Oficiais (os oriundos
de milicianos) a que simpaticamente se designava por “espúrios”.
Nesse
plenário, “pretorianos” de Spínola avançaram que já havia chefes, Spínola e
Costa Gomes, e que Spínola fazia depender a sua disponibilidade da resolução do
problema dos “espúrios”.
O Manifesto
foi assinado por 111 dos cerca de 200 iniciais. E, a partir daí, a aposta era derrubar
o regime para reconhecer o direito à independência das colónias, ganho pela
luta armada que fora conduzida, durante 13 anos pelos, movimentos de
libertação.
A divisão
entre manter Portugal com as colónias (tese federalista) e reconhecer o seu
direto à independência é a questão que prevalece no MFA de 25 de abril até 28
de setembro de 1974. E é esta a questão que suscita as intervenções dos
pretorianos na reunião de Cascais e a precipitação do movimento das Caldas. O
principal defensor da chefia do movimento por Spínola, em Cascais, foi quem
desencadeou a saída isolada da coluna militar do RI5 das Caldas da Rainha.
Em 5 de março,
Caetano fez um duro discurso, pondo Spínola e as suas teses sob fogo cerrado, o
que o encostou ao Movimento. A 8 de março, quatro capitães, entre os quais
Vasco Lourenço, foram informados de transferência compulsiva, dois para os
Açores e os outros para a Madeira e Bragança, o que provocou reunião urgente da
Comissão Coordenadora do Movimento.
Nessa reunião
foi constituída uma comissão política, que integrava o Coronel Vasco Gonçalves,
que foi encarregada da elaboração do que viria a ser o Programa do MFA. E a Comissão
Coordenadora deliberou que os transferidos não iriam sê-lo, pelo que decidiu-se
“raptá-los” e fazer uma demonstração de força sob a forma de concentração
maciça no terreiro do Paço. Porém, as autoridades militares, antecipando-se,
decretaram o estado de prevenção rigorosa, o que veio a dificultar os
movimentos dos capitães. Assim, a Comissão Coordenadora resolveu, de outro
modo, a situação dos dois capitães com ordem de transferência para os Açores e
que tinham sido intercetados antes do “rapto” pelos camaradas. Foram entregues
no Quartel da Região Militar de Lisboa, tendo sido presos os raptados e o
encarregado de os “devolver”.
A situação
suscitou grande indignação no Movimento e impeliu os capitães a preparar, a
partir de 12 de março, uma ação de força para dia 14, com o objetivo de
libertar os camaradas presos e de impor condições tais que só poderiam ser
satisfeitas com o derrube do governo. Tal ação, decidida precipitadamente,
corria o risco de falhanço, com graves consequências para o futuro imediato do
Movimento. Por isso, o bom senso imperou e foi decidido adiar qualquer ação de
força.
Neste ínterim,
deu-se um passo em frente: a Marinha, que se colocara como mera observadora nas
reuniões e nas tomadas de decisão, tomou uma posição de solidariedade explícita
com os camaradas presos. (É de vincar que a posição de “observador” da Marinha
decorria do facto de ter, desde há muito, um núcleo estruturado politicamente,
de acordo com a sua tradição histórica, de resistência ao governo. Daí, as
cautelas no empenhamento num movimento de que não conheciam os verdadeiros
contornos e objetivos.)
A exoneração
dos dois generais veio reforçar a revolta geral que grassava entre os
integrantes do Movimento e radicalizar posições, nomeadamente quanto à
necessidade da ação militar. O setor spinolista, em aliança com os “espúrios”,
era o mais impetuoso, na perspetiva de, tomando a iniciativa da ação,
condicionar o Movimento e ter o papel decisivo. Porém, à última da hora, as
unidades militares que se comprometeram com a operação das Caldas, vendo o
logro em que estavam a cair, não avançaram. E as Escolas Práticas de
Infantaria, Cavalaria e Artilharia, assim como os paraquedistas de Tancos,
avisaram que não tinham condições materiais para alinhar. Ao invés, foram
colocadas pela Chefia do Exército na situação de intervirem contra quem saísse.
Não obstante,
o falhanço da ação militar deu para os corifeus da revolução aprenderem com o
fracasso e preparem o golpe com maior detalhe e minúcia e, sobretudo,
estimulou-os a que não perdessem tempo, não fosse o governo mobilizar as tropas
fiéis e cavar mais a divisão pela via das transferências compulsivas.
Enfim, a
tentativa de golpe de 16 de março resultou da divisão entre os grupos do
Movimento e da ambição de um deles, os spinolistas. Porém, também serviu de
prenúncio e de catalisador da revolução que estava em organização e em
planeamento. E, tendo de absorver os spinolistas e alcandorar a chefe de proa o
General Spínola, manteve, pelo menos, até 28 de setembro, ambiguidades, quer em
relação ao regime interno, quer à descolonização – com destaque para as
ambiguidades relativas às liberdades e ao princípio de autodeterminação dos
povos.
2023.03.16 – Louro de Carvalho
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