Quando surgiu a crise na transportadora aérea portuguesa (TAP, SA), conhecida a notícia de que Alexandra Reis, acabada de ingressar no governo como secretária de Estado, saíra da companhia aérea, onde desempenhara um cargo de administradora, percebendo uma indemnização de 500 mil euros, o Presidente da República fez saber que, mais do que uma questão jurídica ou ética, estava em causa uma questão política. Mais tarde, quando se teve conhecimento de alguns pormenores da auditoria a cargo da Inspeção Geral de Finanças (IGF), o chefe do Estado preconizava a necessidade de tirar as consequências jurídicas do caso. E é aqui que o ponto bate.
Do
ponto de vista ético, a ex-administradora, não podendo, moralmente, perceber indemnização
por ter deixado um cargo de relevo numa empresa pública, deveria devolver a importância
referente à indemnização ou deixar o governo. Não sei se, por hesitação em avaliar
as condições políticas que tinha ou deixara de ter, o ministro das Finanças
demitiu-a de secretária de Estado do Tesouro, cargo que ocupara durante pouco
mais de uma vintena de dias. O problema ético, que não foi resolvido, até
porque, pelos vistos, a sobredita indeminização oferecia dúvidas sobre a sua
legalidade, abriu a porta a que fossem tiradas consequências políticas por
parte de alguns, o que agora o primeiro-ministro veio reforçar: o ministro das
Finanças forçou o abandono do cargo da efémera governante; o então secretário
de Estado das Infraestruturas, que sabia da indemnização e a autorizou,
apresentou o seu pedido de demissão, obviamente aceite; e o mesmo sucedeu com o
então ministro das Infraestruturas e da Habitação, que se demitiu devido à turbulência
gerada em torno do caso, mas que, posteriormente, admitiu que soubera da indemnização.
As
oposições clamavam – e clamam – que o ministro das Finanças, Fernando Medina,
sai fragilizado do caso, mas o governante refere, com razão, que não era ministro
ao tempo, não tendo de saber o que se passava na TAP. Porém, não terá procedido
ao escrutínio prévio ao convite à ex-administradora para integrar a sua equipa
governativa. Pode – é certo – aduzir, como Pedro Nuno Santos, então ministro
das Infraestruturas e da Habitação, que a Comissão de Recrutamento e Seleção
para a Administração Pública
(CReSAP) avalizou a sua idoneidade com vista à escolha para presidir à NAV
Portugal – Navegação Aérea, entidade pública empresarial que garante a prestação dos serviços de tráfego aéreo – Serviço
de Controlo de Tráfego Aéreo, Serviço de Informação de Voo e Serviço de Alerta.
E, por seu turno, Fernando Leão, ministro das Finanças ao tempo, já veio
garantir que não sabia da indemnização, enquanto Pedro Nuno Santos argumenta
que não comunicou às Finanças a indemnização de Alexandra Reis, por ser usual a
TAP prestar informação às duas tutelas.
Entretanto,
Fernando Medina e Pedro Nuno Santos deram conhecimento público de que tinham
solicitado à IGF uma auditoria a essa medida da TAP, por suspeita de
ilegalidade.
Por
fim, a IGF concluiu que o processo de indemnização de 500 mil euros, com
recurso a uma figura jurídica que não existe,
isto é, um despedimento com acordo,
resultou em decisão nula.
Ora, visto que é nulo o acordo da TAP com Alexandra Reis, a IGF comunicou ao
ministro das Finanças, para decisão da TAP, a necessidade de a
ex-administradora devolver 450 mil euros dos 500 mil euros brutos pagos.
O Acordo de cessação de relações contratuais celebrado entre a TAP, S.A. e
Alexandra Reis, envolvendo a compensação global de 500.000 euros, é nulo,
exceto nas partes relativas à cessação do contrato individual de trabalho (CIT)
e à respetiva compensação (56.500 euros). E o Acordo previa o pagamento da
retribuição do mês de fevereiro de 2022 (17.500 euros), que é devido.
A renúncia da administradora não confere direito a indemnização. O
Estatuto do Gestor Público (EGP) não prevê a figura de “renúncia por acordo” e
a renúncia ao cargo contemplada naquele estatuto não confere direito a
indemnização, pelo que a compensação auferida pela cessação de funções enquanto
administradora carece de fundamento legal.
Ainda que se tratasse de demissão por mera conveniência, o processo estaria
desconforme à lei, por o ato de demissão não ter sido praticado pelo órgão
social competente, pois o mesmo competiria ao acionista (por exemplo, em
Assembleia Geral), e não haveria direito a indemnização, na medida em que a administradora
cessante não reunia o requisito temporal exigido de 12 meses de exercício de
funções no respetivo mandato.
Em qualquer dos casos, ex-administradora terá de devolver à TAP os
valores que recebeu na sequência da cessação de funções enquanto administradora,
os quais ascendem a 443.500 euros, a que acrescem, pelo menos, 6.610,26 euros, correspondentes
a benefícios em espécie. Porém, terá direito ao abono dos dias de férias não
gozados naquela qualidade.
Os pagamentos efetuados e os benefícios em espécie concedidos são
suscetíveis de configurar responsabilidade financeira reintegratória e
sancionatória.
A IGF concluiu que os ministros estão excluídos de responsabilidades financeiras,
mas o chairman e a
presidente executiva ariscam multas.
Em suma, não foi observado o estipulado no Estatuto do Gestor Público (EGP),
cabendo a culpa aos decisores da empresa e também às assessorias externas.
Por conseguinte,
a IGF formulou as seguintes propostas:
- a
homologação do relatório pelo Ministro das Finanças, nos termos do artigo 15.º
do Decreto-Lei n.º 276/ 2007, de 31 de julho, que aprova o regime jurídico da atividade
de inspeção da administração direta e indireta do Estado;
- a ponderação,
no âmbito do exercício da função acionista, da ponderação da regularização dos
atos necessários à cessação de funções da ex-administradora, caso se entenda
tratar-se de uma demissão por mera conveniência – ver artigos 37.º a 39.º do regime jurídico do setor público empresarial (RJSPE),
os artigos 26.º e 27.º do EGP, o artigo 412.º do Código das Sociedades Comerciais
(CSC), bem como a alínea b) do artigo 11.º dos Estatutos da TAP, S.A.) –, e da avaliação
da atuação dos administradores envolvidos, quanto à inobservância dos
normativos aplicáveis (ver artigos 23.º e seguintes do EGP, artigo 21.º do
RJSPE e artigo 64.º do CSC);
- o envio relatório,
após homologação, ao Ministro das Infraestruturas, para conhecimento;
- o envio
subsequente do relatório à TAP, S.A. para que promova as diligências
necessárias
à devolução dos montantes recebidos indevidamente, bem como à ex-administradora,
para conhecimento; e
- o envio do
relatório ao Presidente do Tribunal de Contas, em cumprimento do disposto na
alínea b) do n.º 2 do artigo 12.º da Lei n.º 98/97, de 26 de agosto (Lei de
Organização e Processo do Tribunal de Contas), na atual redação, para conhecimento da matéria de
facto e de direito, designadamente das situações referidas no n.º 5 do
relatório, em virtude de poderem ser integradoras de infrações financeiras.
As situações em apreço, cujo valor total ascende a 450 110,26 euros, são: o pagamento efetuado à então administradora por cessação de funções, previsto no acordo de cessação de relações contratuais, que ascendeu a 443 500 euros, por inobservância no disposto nos artigos 37.º a 39.º do RJSPE e artigos 26.º e 27.º do EGP; e a atribuição à mesma ex-administradora de "benefícios" constantes do Anexo II do Acordo de cessação de relações contratuais, dos quais foram utilizados, até ao momento, pelo menos, os declarados pela TAP, S.A., que totalizam 6 610,26 euros, por inobservância nos disposto nos artigos 26.º e 27.º do EGP.
O ministro das Finanças, na posse do relatório da IGF, homologou-o e, em
conjunto com o Ministro das Infraestruturas, João Galamba, exonerou, alegando
justa causa, o chairman da TAP, Manuel Beja,
e a presidente executiva, Christine Ourmiére-Widener, como proposto.
***
Longe de estar resolvida a questão jurídica, ainda pode haver muito caminho
a percorrer. Desde logo, falta saber o que pensa a Comissão do Mercado dos
Valores Mobiliários, a quem a TAP terá ocultado a verdade da celebração do
acordo com Alexandra Reis.
E, se esta, embora discordando das conclusões da IGF, disse acatá-las e
devolver à TAP a importância em referência, não deixa de atirar com as culpas
para as assessorias externas, designadamente para a SRS legalidade e para a que
a assessorou à interessada na indemnização, bem como à ex-presidente executiva
da TAP.
Manuel Beja, ex-chairman da TAP, refere que a presidente
executiva, Christine Ourmiére-Widener, lhe comunicou a avaliação “coerente” de
que não assinar o acordo indemnização sairia mais caro, mas aceita a decisão do
governo.
Por seu turno, a presidente executiva dispara culpas em todas as direções:
para o governo, que sabia do acordo da TAP com a ex-administradora e o autorizou;
para o governo, visto que pensava que havia comunicação entre as tutelas; para
as assessorias externas; para a IGF, que não a ouviu em sede de contraditório,
tendo sido a única interveniente no processo que não foi ouvida, o que
configura discriminação inaceitável; e, obviamente, para Alexandra Reis, a quem
acusa de lançar escolhos no pano de restruturação e de falta de competência
para o exercício de funções administração. E desresponsabiliza-se de erros
jurídicos.
Portanto, prevê-se que, não se ficando pela decisão governativa, Christine
Ourmiére-Widener recorra aos tribunais a contestar a decisão da IGF e a exoneração
de que foi objeto.
Também as assessorias externas, nomeadamente a que esteve do lado da TAP,
não aceitará, de bom grado, qualquer ónus culposo na decisão da TAP em relação à
indemnização.
Assim, a resolução das questões jurídicas pode absorver muito tempo. E,
dado que, a Justiça funciona ao retardador, ainda cairão este governo e este parlamento
antes da decisão jurisdicional.
E a política do Estado quanto às empresas públicas continuará como dantes:
umas, como a TAP com administradores sujeitos ao EGP, sem direito a indemnizações;
outras, como a Caixa Geral de Depósitos (CGD), com administradores sujeitos ao CSC
(exceto quanto à obrigação declarativa de rendimentos, de património e de interesses).
Resta saber se os demais administradores da TAP também foram para casa só
com a compensação por cessação do CIT. E tenho muita pena de que a ilustre
francesa não venha a receber os cerca de três milhões de euros de prémio por
ter cumprido todos os objetivos da restruturação da TAP – despedindo pessoas, eliminando
serviços, comprando aviões e carros topo de gama. E o culpado de tudo será o governo,
as assessorias e a ex-administradora indemnizada e não indemnizada!
2023.03.07 – Louro de Carvalho
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