Face à comoção (nem sempre genuína e isenta) da sociedade civil pela
atitude dúbia da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) quanto ao relatório
apresentado, a 13 de fevereiro, pela Comissão Independente (CI) por si criada, o
Parlamento, na convicção de que a situação é grave e atravessa toda a
sociedade, está a postos para a tomada de medidas legislativas e de medidas de
proteção às vítimas, bem como de tratamento adequado dos prevaricadores
culposos ou doentes.
A CI – que validou 512 testemunhos, apontou, por extrapolação, para pelo
menos 4.815 vítimas, e enviou 25 casos ao Ministério Público (MP), que abriu 15
inquéritos, dos quais nove foram arquivados – entregou à CEP a lista de
alegados abusadores, alguns no ativo, tendo esta remetido para cada diocese a
decisão de afastamento de padres suspeitos de abusos e rejeitado atribuir
indemnizações às vítimas.
Assim, a 8 de março, na Assembleia da República (AR),
o Partido Socialista (PS), o Partido Social Democrata (PSD), a Iniciativa
Liberal (IL), o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP) e
os deputados únicos do Partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) e do Livre
subscreveram um requerimento para a constituição de um grupo de trabalho para
avaliação de alterações à legislação sobre abusos sexuais praticados contra
menores. Este requerimento, que só não é subscrito pela bancada do Chega,
segundo os sete partidos proponentes, deverá funcionar no âmbito da Comissão de
Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Efetivamente, conhecido o relatório final “Dar Voz ao
Silêncio” da CI para o Estudo de Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja
Católica, os subscritores do predito requerimento entendem que “a gravidade dos testemunhos” e “a
extensão dos abusos e o sofrimento das vítimas tornam premente uma reflexão
profunda sobre o que deve ser feito para, na medida do possível,
reparar os danos sofridos pelas vítimas e prevenir a ocorrência desta
criminalidade grave no futuro”.
O requerimento considera que o relatório, “pela sua
extensão, pela pluralidade das abordagens adotadas e pela transversalidade das
recomendações deixadas (que convocam alterações legislativas e a necessidade de
reforço de políticas públicas em distintos planos ou subsistemas sociais)
merece análise mais detida, em particular nos aspetos tidos por essenciais no
quadro de uma possível intervenção legislativa a desencadear e/ou tramitar em
sede parlamentar”. Nesse sentido, uma reflexão
“centrada na ponderação das necessidades das vítimas e nos seus direitos,
beneficiaria da sistematização dos trabalhos através da constituição de uma
estrutura no âmbito da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos,
Liberdades e Garantias”.
Além da audição de organizações, mencionadas no
relatório final da CI, os subscritores sustentam que importa “recolher
elementos junto das áreas governativas relevantes, de forma a enriquecer os
trabalhos preparatórios de futuras intervenções legislativas ou de fiscalização
parlamentar”.
Assim, o grupo de trabalho, entre outras missões,
deverá realizar audições “que se afigurem pertinentes”, no quadro dos dados
tornados públicos através do relatório da CI, e analisar as “recomendações de
alterações legislativas previstas no referido relatório, designadamente com
recurso ao levantamento de direito comparado e de Direito da União Europeia
relevantes”.
Os partidos subscritores do requerimento defendem
também que se “assumam os trabalhos indiciários de especialidade de eventuais
iniciativas legislativas que venham a ser aprovadas na generalidade sobre a
matéria no decurso dos seus trabalhos”.
Nestes termos, a Comissão de Assuntos Constitucionais da
AR aprovou por unanimidade, a 8 de março, várias audições propostas pelo PS, pelo
PSD e pelo Chega, entre elas, a audição da Comissão Independente para o estudo
de abusos sexuais de menores na Igreja, do presidente da Conferência Episcopal
Portuguesa (CEP), José Ornelas, do cardeal-patriarca de Lisboa, Manuel
Clemente, e da ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro, entre outras entidades.
Já a 23 de fevereiro, em declarações aos jornalistas
na AR, o presidente do Chega, André Ventura, anunciou que o partido pretendia
propor a criação de um grupo de trabalho “especificamente destinado aos abusos
sexuais de menores e ao acompanhamento desta matéria”, com o objetivo de se ter
na AR um grupo permanente de “aperfeiçoamento legislativo, institucional, de
trabalho”, para constituir “um edifício jurídico sólido em matéria de combate
ao abuso sexual de menores”.
A 9 de março, a AR debateu uma fixação da ordem do
dia, agendada pelo Chega, que ficou de fora dos subscritores do referido
requerimento, sobre o combate ao abuso sexual de menores em Portugal. E, subsequentemente,
na sessão plenária extraordinária, a AR debateu, na generalidade, e aprovou,
por unanimidade, o alargamento da idade da vítima para feitos de prescrição de
crimes de abusos sexuais, sob projetos de lei do Chega, da IL, do BE e do PAN.
A sessão ficou marcada por críticas à “instrumentalização” do partido de
André Ventura e por palavras de “agradecimento” à Comissão Independente para o
Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica e de “coragem” às
vítimas ouvidas pela mesma. E o PS, por seu turno, apresentou um conjunto de
propostas para combater os abusos sexuais de menores, que incluem um programa
de acompanhamento e fiscalização (compliance)
para organizações que recebem crianças e alterações ao regime de denúncia de
abusos.
A CI já tinha proposto o alargamento da idade da vítima em sete anos, ou
seja, a prescrição deste tipo de crimes ficaria suspensa até que a vítima
complete os 30 anos – hoje, a nossa lei prevê que este prazo termine aos 23
anos. O Chega, o PAN e o BE apresentaram projetos de lei neste sentido. Já a IL
foi mais longe e propôs o alargamento até aos 40 anos. Os partidos com assento
parlamentar aprovaram por unanimidade todas as propostas, à exceção da do
Chega. Agora, deverão ‘uniformizar’ o projeto de lei durante a aprovação na
especialidade.
“O BE traz esta proposta não atrás de um ímpeto populista, mas tendo já
reconhecendo a necessidade revisão, mas esperando pelo parecer da comissão como
garantia de idoneidade”, defendeu Pedro Filipe Soares. A IL, na voz de Patrícia
Gil Vaz, justificou a posição do seu partido. “Sabemos que a média de quem
denúncia o abuso é de 52 anos, 77% as vítimas nunca apresentaram queixa e só 4%
formalizaram em tribunal. Além disso, muitos destes crimes acontecem no seio
familiar e os jovens saem cada vez mais tarde de casa dos pais”.
Os projetos do PS, que deverão ser detalhados no grupo de trabalho para
avaliação de alterações à legislação sobre abusos sexuais praticados contra
menores, subscrito por todos os partidos à exceção do Chega, passam pela
“obrigatoriedade de programas de compliance
das organizações que acolhem crianças”, explicou a socialista Cláudia
Santos, que deverá incluir a “fiscalização” através de “pessoas externas” e a
aplicação de “códigos deontológicos e guias de boas práticas”, bem como a
alteração do regime de denúncia de abusos, para que “qualquer pessoa com
contacto com crianças passe a ter o dever de denúncia de vítimas, sejam elas
crianças ou adultos, especialmente em situações de vulnerabilidade”.
Além da proposta que seguia a recomendação da CI, o Chega apresentou quatro
projetos de lei, todos rejeitados na AR. Entre as propostas estava o
agravamento das penas por crimes de abuso sexual ou um Plano Nacional de
Combate à Pedofilia.
“Este tema não se resolve com lei penal, mas com canais de denúncia
adequados e intervenção junto de grupos vulneráveis. Não é com um rolo
compressor de direitos, liberdades e garantias”, disse Eurico Brilhante Dias,
líder parlamentar do PS. Sobre o agravamento de penas, a socialista Cláudia
Santos acrescentou: “O Conselho Superior da Magistratura e do Ministério
Público já se pronunciaram e não podiam ser mais arrasadores. Há problemas de
inconstitucionalidade.”
Também a bancada da IL acusou o Chega de hipocrisia e de aproveitamento
político das vítimas. A este respeito, João Cotrim de Figueiredo vincou: “O
exemplo de hipocrisia está nestes diplomas de inspiração securitária, como
também na proposta de castração química que voltaram a mencionar. Não resolve
nada, não impede reincidências. Mesmo assim, insistem. Não, porque estão
preocupados com as vítimas, mas porque querem ser vistos a apoiar qualquer
coisa com a palavra castração. Eis a essência de populismo.”
André Ventura classificou como “vergonhosa” a ausência do governo no debate
e garantiu que a sua posição, quanto à castração química, não fere a dignidade
humana. “Acreditamos na dignidade da pessoa humana, mas queremos a proteção das
pessoas de bem”. E assegurou que o seu partido está “orgulhosamente só” na
“luta contra pedófilos em Portugal”. A isto Eurico Brilhante Dias retorquiu.
“Para nós, o ‘orgulhosamente sós’, nunca mais. 25 de abril sempre.”
Outra das críticas passou pela posição contraditória do partido de André
Ventura em relação ao grupo de trabalho sobre abusos sexuais – subscrito por
todos os partidos, à exceção deste. “O Chega apresentou um requerimento que
pede um grupo de trabalho. Porque é que crítica se vem fazer o mesmo? É
incompreensível”, atirou Fernando Negrão, deputado do PSD.
O grupo de trabalho prevê, como se disse, audições “que se afigurem pertinentes”
no quadro dos dados presentes no relatório da CI. Antes, a comissão de Assuntos
Constitucionais já tinha aprovado, por unanimidade, as audições propostas
pelo PS, pelo PSD e pelo Chega, a José Ornelas, presidente da CEP, a Manuel
Clemente, cardeal-patriarca de Lisboa, à CI e à ministra da Justiça, Catarina
Sarmento e Castro.
E
a CEP, devagar, vai chegando às posições que vêm a ser defendidas: criação de
um grupo permanente de contacto para prevenção e denúncia, formação de agentes
da Ação Pastoral, vigilância, acompanhamento médico e psicológico das vítimas,
retirada provisória de funções de sacerdotes suspeitos, por parte de cada bispo
diocesano, até eventual condenação e, mesmo, uma responsabilidade solidária em
termos indemnizatórios. Por sua vez, a Fundação JMJ (Jornada Mundial da
Juventude) assinou, com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), um
protocolo com vista à formação de voluntários da JMJ para a prevenção e deteção
de casos de abuso sexual no quadro da JMJ. A Igreja, pela índole milenária, tornou-se
pesada, mas vai indo.
***
Embora
em ambiente meio quente, a AR não legisla sobre o acontecimento, porquanto será
tudo estudado e aprimorado no referido grupo de trabalho. E, se o aumento de
penas comportaria problemas de constitucionalidade, aumento da idade para a
prescrição é razoável. Importa evitar e combater o crime e salvar as pessoas.
2023.03.13 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário