A Amnistia Internacional (AI) considera que as medidas tomadas pelo Governo,
até ao fim de 2022, foram insuficientes para garantir casas acessíveis a quem
precisa e alerta para despejos forçados que afetam, “desproporcionalmente”, a
população cigana e a de origem africana
No relatório de 2022, a AI aponta a Portugal as limitações ao direito à
habitação, bem como a continuidade da brutalidade policial, da violência e da discriminação
de género, da exploração de migrantes e da degradação ambiental
O relatório anual da AI sobre o estado dos direitos
humanos no mundo em 2022, lançado a 28 de março, traça os pontos negros identificados
em Portugal, indo o seu primeiro alerta para a continuação da violência policial, referida em edições anteriores,
e para a desresponsabilização dos agentes por má conduta. E a crise da habitação em Portugal, identificada há alguns anos, é o terceiro ponto
que suscita críticas à AI. “As medidas tomadas pelo Governo [em 2022] foram
insuficientes para melhorar as condições de habitação e [para] garantir casas
acessíveis, apesar dos dados divulgados no final de 2021 mostrarem que mais de
38 mil pessoas precisavam de um teto.” A par disso, sobressai a manutenção de
relatos de despejos forçados que deixam as pessoas em piores condições
habitacionais (em alguns casos de pessoas sem-abrigo), afetando,
“desproporcionalmente”, a população de etnia cigana e a de origem africana.
Casos de exploração
de milhares de trabalhadores migrantes em trabalhos na agricultura,
a maioria proveniente do sudeste asiático, bem como as condições inadequadas de
habitação em que vivem, suscitam contundentes reparos daquela organização
internacional, que apresenta como exemplo o caso de Odemira, revelado em
janeiro de 2022. Em junho, o Grupo de Peritos sobre o Tráfico de Seres Humanos
(GRETA), do Conselho da Europa, que visitara o país em 2021, revelou que a
exploração laboral, com a habitação em condições sub-humanas, se mantinha como
a forma mais comum de abuso das vítimas, atingindo sobretudo o setor agrícola e
o da hotelaria.
Entretanto,
o Governo apresentou a consulta pública o pacote “Mais Habitação”, duramente
criticado pelas câmaras municipais, que reivindicam para si mesmas tal
competência, a par dos investidores privados, por setores grados da população,
sob o espectro do ataque à iniciativa privada e ao direito à propriedade
privada, e pela generalidade dos partidos à direita.
Por
sua vez, os partidos à esquerda consideram insuficientes as medidas do pacote;
e os inquilinos aceitam-no, mas com a reserva de não prever a revogação da
chamada Lei Cristas, ou seja, a Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, que aprova medidas para dinamizar o mercado de arrendamento urbano,
nomeadamente, alterando o regime substantivo da locação, designadamente
conferindo maior liberdade às partes na estipulação das regras relativas à
duração dos contratos de arrendamento, alterando o regime transitório dos
contratos celebrados antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de
fevereiro (que aprovou o NRAU – novo regime de arrendamento urbano), reforçando
a negociação entre as partes e facilitando a transição dos referidos contratos
para o novo regime, num curto espaço de tempo, e criando um procedimento especial
de despejo do local arrendado que permita a célere recolocação daquele no
mercado de arrendamento.
A
somar a estas críticas, junta-se a tomada de posição pública de Cavaco Silva a
reforçar a ideia da lei Power/Point,
importada de outros setores criticantes, mas atribuindo a sua elaboração a
“ignorantes marxistas”. E, quase logo a seguir, o Presidente da República, que
tinha chamado “melão” ao pacote, matou-o politicamente, ao denominá-lo de
lei-cartaz, destinado a ficar no papel, pois é um pacote inoperacional.
Resta,
pois, saber o que fazer do pacote “Mais Habitação” e dos dois mil e setecentos
contributos que a consulta pública lhe ofereceu.
Entretanto,
os investidores privados fizeram da casa a mercadoria de luxo, inacessível ao
comum dos cidadãos, quer pelos altos preços de compra, quer pelo alto preço de
renda mensal. E as autarquias parecem ter acordado, agora, para a sua
responsabilidade no fomento da habitação a preços mais acessíveis.
Neste contexto de especulação e de exploração, os
centros das grandes cidades ficam inabitáveis pela população da classe média. E
os observadores opinam que não é justo facultar a famílias de carteira meio
recheada que, à custa dos impostos deles, vivam nos centros de cidade, como se essas
famílias também não pagassem impostos e o seu trabalho não constituísse uma
significativa mais-valia para a sociedade.
Assim, a par dos altos preços de compra e venda de
casa, as rendas inflacionadas e os despejos fazem
aumentar os pedidos de casas às autarquias da área metropolitana de Lisboa
(AML) e da área metropolitana do Porto (AMP), mas só há vagas para 2,5% dos
candidatos, quando há mais de 26 mil famílias à espera de habitação social.
Pedir casa à
câmara é o último recurso. Feitas as contas, somadas as despesas, subtraídas ao
rendimento disponível, o resultado não dá para pagar habitação no mercado de
arrendamento comercial. Mais de 26 mil famílias a residir na AML e na AMP não
veem forma de encaixe nesta contabilidade a renda inflacionada de um imóvel e de
manutenção do orçamento familiar acima do negativo. E quando têm casa, basta
uma pequena subida na renda ou na prestação (no crédito à compra de casa), uma
cessação de contrato de trabalho, um despedimento, uma doença, um filho não
programado, a conta do supermercado anediada pela guerra, para tudo se
desequilibrar, pois não há aonde ir buscar um suplemento. Resta a candidatura, no
concelho de residência, habitação municipal, de renda ajustada ao rendimento. Mas
podem ser anos e anos de espera.
A crise da habitação juntou-se à crise económica e criou condições para
abalar a estrutura das famílias mais carenciadas, as primeiras a chegar à lista
de espera e as que ocupam os lugares cimeiros. Em 28 autarquias da AML e da
AMP, há 26.312 agregados familiares à espera de vagas sociais, quase 19 mil, na
região da capital, e cerca de 7400, na área da Cidade Invicta. A maioria dos
pedidos (15.884, o equivalente a 60%) deu entrada ou foi renovada em 2022,
segundo o Expresso.
Era preciso aumentar, ali, em mais de um terço, o número de imóveis
municipais. Porém, a capacidade de resposta está muito a leste da realidade.
Para entrega imediata, havia, no final de 2022, só 658 casas: 471, na AML, e
187, na AMP. Na área da AML, 13 dos 18 concelhos não tinham, então, qualquer
vaga disponível, o mesmo sucedendo com quatro concelhos, na AMP.
Estão identificadas mais 2509 habitações municipais desocupadas, mas precisam
de obras. Em 2022, só 913 famílias (3,4% das candidaturas) receberam uma chave
da câmara. A este ritmo, seriam precisos 29 anos para acabar com a espera e só
se se travassem novas inscrições.
Na generalidade dos concelhos, a atribuição dos imóveis sociais faz-se com
base na classificação por pontos, que soma critérios de risco, carência ou
exclusão (número de filhos, desemprego, rendimento, deficiências, problemas de
saúde, casa degradada, ordem de despejo, etc.), só havendo resposta para os
casos mais graves dos mais graves.
A maioria destes sem-casa não é sem-abrigo. São famílias monoparentais ou
alargadas que suportam a espera em quartos, em casa de parentes, em imóveis
insalubres ou ocupados, num T0 para cinco, num anexo abarracado, numa garagem.
O problema é maior na área metropolitana da capital, que concentra 71% dos
agregados em espera por uma habitação. Porém, a pressão não se fica pelos
concelhos mais povoados. Com a fuga de população para as localidades limítrofes
da AML, atrás de rendas comportáveis, a especulação imobiliária seguiu-a, aproveitando
a procura. E municípios com pouca habitação social, porque nunca tiveram
pedidos que motivassem a sua construção ou aquisição, veem-se a braços com
listas de espera, algumas até superiores ao património edificado e totalmente
lotado.
Entre as razões apresentadas para o pedido de casa às câmaras, contam-se: o
aumento das rendas e os despejos; as “dificuldades económicas para fazer face
ao pagamento mensal da renda e às despesas fixas”; a “especulação dos preços da
habitação”; e a “escassez de casas para arrendar”. Rendas é a palavra mais
repetida, despejos e penhoras não ficam atrás.
A solução para a falta de habitação social passa pelos milhões de euros do
Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), que financiará a construção de novas
habitações municipais – bairros e prédios dispersos –, a aquisição para
reabilitação e a reabilitação de imóveis públicos. A meta é a criação de 26 mil
fogos para famílias em situação carenciada e sem acesso a habitação condigna e
o reforço da habitação acessível a jovens e a famílias da classe média.
O Programa de Arrendamento Apoiado, dirigido aos agregados em maior
privação, tem uma lista de espera de 7093 candidaturas (a maior da AML e da
AMP), subtraídos os pedidos inválidos, mas as casas vagas no imediato passam
pouco das 400. E os pedidos não param de aumentar. A estes números somam-se as
famílias que se inscrevem no Programa de Renda Acessível, com a média de 3485
em cada concurso, e as 800 candidaturas ao Subsídio Municipal de Arrendamento
Acessível, que estiveram abertas até 28 de fevereiro. E, por exemplo, em Lisboa,
a Carta Municipal de Habitação, entre outras medidas, prevê a requalificação de
bairros sociais esquecidos, onde foram identificadas 13.150 situações de
habitação indigna; a construção de mais 9624 fogos de habitação municipal,
sendo que atualmente 930 estão em obra, 1721 em projeto e 5967 em estudo; o
regresso das cooperativas; e a compra de imóveis devolutos.
A conclusão da revitalização do parque habitacional, para a maioria dos
empreendimentos municipais, é o fim de 2025, quando têm de estar executados os
fundos do PRR. Para a maioria das famílias em lista de espera, a casa está a
quase três anos de distância.
Enfim, como diz o primeiro-ministro, “parodiando” o “Em casa onde não há
pão, todos ralham e ninguém tem razão”, “em país onde não há habitação todos
falam e têm alguma razão”. Por isso, governo e autarquias têm um largo e longo caminho
a percorrer, na certeza de que, para lá das divergências ideológicas e outras, “Salus
Reipublicae lex suprema esto” (A salvação da comunidade seja a suprema lei).
2023.03.28 – Louro de Carvalho
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