Decorreu, a 3 de março, em Fátima, a sessão
extraordinária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) com o objetivo de
analisar o relatório da Comissão Independente (CI) sobre o problema dos abusos
sexuais de menores e de pessoas vulneráveis, no âmbito da Igreja Católica,
documento apresentado publicamente no passado dia 13 de fevereiro e sobre o
qual os bispos se propõem tomar as medidas adequadas.
A este respeito, mais de duas centenas de católicos,
não querendo deixar os bispos sozinhos com o problema e no intuito de contribuírem
para a vivência de novo horizonte eclesial, enviaram à CEP, a 1 de março, a
carta intitulada “Carta aos bispos da
Igreja em Portugal, sobre as mudanças que todos necessitamos de fazer” (que
subscrevi), com um elenco de medidas a tomar e com a sugestão de prazos
indicativos. “Este é o tempo! Este é o tempo de uma tristeza imensa e –
como não dizê-lo? – de uma enorme revolta contra os abusos praticados e contra
o seu encobrimento. Este é o tempo que nenhum de nós desejava, mas a que não
podemos fugir”, referem.
Entre as medidas sugeridas, destacam-se: a criação
imediata de modos de
viabilizar apoio e ajuda psicológica, psiquiátrica e espiritual às vítimas de
abusos sexuais que o pretendam; a instituição de um momento solene e coletivo
para pedir-lhes perdão; e a criação de uma nova CI que prossiga o trabalho da
anterior, recebendo denúncias e acompanhando casos.
A missiva parte do pressuposto de que a crise “tremenda” que a Igreja vive
é de todos os que a ela pertencem, que podem acompanhar os bispos, ajudando-os
a refletir o caminho a seguir.
Muitos dos subscritores são os mesmos que, em novembro de 2021, se
dirigiram à CEP incentivando-a a criar uma comissão nacional independente para
estudar o problema dos abusos de crianças no seio da Igreja. São cristãos de
movimentos como o Graal, Nós Somos Igreja, Ação Católica dos Meios Sociais
Independente, Metanoia-Movimento Católico de Profissionais, Comunidade da
Capela do Rato (Foco ecológico) ou Grupo Sinodal Nós entre Nós, mas também
catequistas, responsáveis de serviços paroquiais, membros de comunidades
locais.
Os subscritores são professores, médicos, quadros superiores da
administração pública, profissionais da ação social, investigadores, etc. Se se
contar o total de membros das organizações signatárias e dos subscritores
individuais, são algumas centenas as pessoas envolvidas.
A carta aos bispos sugere medidas imediatas, a adotar nos próximos 30 dias,
como as referidas acima, e outras a adotar nos próximos dois meses. Entre
estas, propõe-se que a rede de comissões diocesanas relativas aos abusos se
recentre na prevenção primária e na formação; os bispos encobridores, a existirem,
se retirem de funções; e se tomem medidas relativamente a “todos os abusadores
que estejam atualmente ao serviço da Igreja”, a saber: suspensão com caráter
preventivo quando haja indícios minimamente credíveis sobre abusos e, se
considerados culpados à luz da moral cristã, independentemente de processo
judicial, sejam dispensados de funções e, no caso de clérigos, passagem ao
estado laical. Porém, a meu ver, o estado laical não pode ser considerado um
castigo (o leigo não é um proscrito). E cada caso deve ser analisado: se é
reiterável ou não. Nem todos serão irrecuperáveis. E é preciso distinguir entre
doença e abuso de poder.
Num horizonte de seis meses, os bispos são ainda convidados a: promover e
incentivar o acesso ao relatório da CI e o seu estudo bem como o das suas
conclusões, entre os agentes de pastoral, “prevenindo a tentação negacionista
ou de relativização do fenómeno criminal”; elaborar “um manual de boas práticas
que ajude os agentes pastorais a prevenir situações de risco e a identificar
indícios de casos de abusos, bem como a acolher e encaminhar vítimas”; encetar
“uma reflexão de fundo sobre o impacto negativo que a perceção distorcida sobre
a sexualidade humana tem vindo a causar em toda a Igreja, com a ajuda de
especialistas externos”; e proporcionar um acompanhamento aos abusadores que
inclua tratamento psiquiátrico e psicológico.
“Como Igreja – conclui a missiva – temos agora dois caminhos possíveis:
denegar e iludir, insistir no rumo que nos trouxe a esta aflição permanente de
caminhar para a autodestruição e ferir pessoas; ou avançar, com oração e com
coragem para mudar e reformar, com espírito humilde e destemido. Não temos
dúvidas sobre onde, mais facilmente, encontraremos Jesus Cristo”.
Enfim, acolhimento,
acompanhamento e ressarcimento das vítimas de abusos sexuais; um ato público de
perdão, depois de escutar histórias de sobreviventes; assunção de
responsabilidades públicas; e apoiar também os agressores, numa atitude de
vigilância e acompanhamento. Estas deveriam ser, a avaliar pelas propostas de
católicos colocados em diferentes estruturas, algumas das decisões principais.
É a hora!
***
Na
referida assembleia da CEP, estiveram presentes os membros da CI, que deram
esclarecimentos sobre o relatório e sobre as recomendações apresentados à hierarquia
católica. E o pedopsiquiatra Pedro Strecht, coordenador da CI, fez também a
entrega da lista nominal, por dioceses, dos alegados abusadores referenciados
pelas vítimas – lista que foi elaborada a partir dos dados obtidos pelo
trabalho da CI cruzados com os elementos recolhidos pelo Grupo de Investigação
Histórica (GIH), que trabalhou nos arquivos das dioceses e congregações
religiosas.
Um
professor de Teologia Moral na Universidade Católica Portuguesa (UCP), um
católico que faz voluntariado como visitador em quatro prisões e uma jurista
que trabalha com vítimas de violência doméstica apontam os sobreviventes de
abusos como o centro da primeira decisão que tomariam, se fossem chamados a sentar-se
em Fátima com os bispos, que devem dispor-se a “acolher as verdadeiras vítimas,
segundo modos julgados convenientes, de forma a proporcionar uma terapia para
continuar a viver depois do mal sofrido”, diz o padre Jorge Teixeira da Cunha.
Paulo
Neves recorda: “Há pessoas nisto. É preciso reparar as vítimas até onde for
possível, através de acompanhamento psicológico e psiquiátrico ou de
ressarcimento a quem o pedir. É preciso respeitar cada vítima e ouvi-la. Não
sei se os bispos estão a fazê-lo, mas esse é o caminho.”
A
jurista Ana Beatriz Cardoso diz que uma das suas primeiras decisões seria a
criação de canais de denúncia. “A Comissão Independente esteve bem quando
sugeriu uma nova comissão. O número de vítimas leva a pensar que o trabalho não
terminou e é importante haver um sítio, um telefone, um mail, alguém ou uma
entidade que acolha novas vítimas e testemunhos.”
É
necessário que quem queira denunciar ou testemunhar ter sido vítima de abusos o
possa fazer “em segurança”, diz a jurista. “Este é um tipo de crimes difícil de
provar, mas os psicólogos conseguem avaliar.” Sobre o tipo de estruturas para
apoiar vítimas, a jurista considera importante a articulação das comissões
diocesanas com a nova estrutura independente.
Paulo
Neves julga que “continuar a dar voz ao silêncio será positivo; e que isso não
seja só no dia 3 de março, mas um ato contínuo”. Por isso, um novo organismo “o
mais independente possível para que as pessoas possam dizer tudo o que entenderem
de forma aberta” poderá ser o caminho.
Além
de considerar que uma das decisões deveria ser a assunção de responsabilidades
– “que os bispos assumam e façam assumir as responsabilidades públicas que
houver que assumir” –, Jorge Teixeira da Cunha sugere “um programa de justiça
efetiva e sanadora para os abusadores, de modo a fazer uma justiça penal
proporcionada e uma penitência moral eficaz”.
Paulo
Neves diz que outra das decisões seria para responder à pergunta sobre “como
lidar com os abusadores”: muitos foram igualmente vítimas e a Igreja deveria
fazer ato de contrição também por isso, pela forma como educou, como formou e
como tratou. “Como lidamos com este mal?”, pergunta. “É de temer o que pode acontecer
a quem foi abusador”. Por isso os agressores devem ser acompanhados, para evitar
casos como a morte não esclarecida do padre José António Gonçalves, de Évora,
encontrado morto no Gerês, após ter sido acusado de assédio.
“Estamos
todos a querer condenar. Nas cadeias, também já vi homicidas a condenar
abusadores. Nada desculpa o que aconteceu e o que os abusadores fizeram, mas a
justiça tem de servir para alguma coisa, não só para castigar”, diz o visitador.
Alguns agressores suicidaram-se, por isso é necessária vigilância constante,
para ajudar a ultrapassar a fragilidade que todos transportamos.
A
jurista em referência sugere ainda outro âmbito de decisão: “É preciso ver como
está cada pessoa e garantir apoio psicológico ao nível do trauma. Para muitas
vítimas, será necessário apoio psicológico, psiquiátrico ou alguma reparação de
danos. A Igreja já deu um passo significativo, mas ele não basta para reparar
os danos.” E, como mulher católica”, também considera importante que a Igreja
revisse a “visão da sexualidade e da castidade” e, a prazo, abrisse o
“sacerdócio às mulheres e acabasse com a obrigatoriedade do celibato.
Teixeira
da Cunha acrescenta duas propostas: “Que se apliquem as normas em vigor para
excluir da ordenação sacerdotal pessoas que mostrem sinais de inconformidade
grave com as exigências do ministério sacerdotal e que se elabore uma pastoral
lúcida sobre o significado teológico da denúncia dos abusos na Igreja e na
sociedade, tendo em conta o dever de pregar e praticar a reconciliação, de
assinalar o avanço ético da humanidade que desperta para a defesa da dignidade
de crianças, menores e vulneráveis”, avanço que “é um fruto do Evangelho de
Jesus”. E Paulo Neves retoma a ideia do pedido de perdão às vítimas: “O perdão
não é só dizer que se pede perdão, é também olhar para o futuro. Pode ser
importante um reconhecimento simbólico e público”, acrescenta, recordando que o
Papa já deu o exemplo várias vezes.
Os
três colocam alto a fasquia das expectativas: “O que espero dos nossos bispos
na hora de se explicarem, é que eles manifestem valentia para admitir a
culpabilidade da Igreja, em vista dos comportamentos criminosos de alguns dos
seus membros”, diz o professor de Teologia Moral.
Paulo
Neves diz que “enquanto cristão”, considera que “o relatório veio em bom tempo,
apesar de ter havido resistência”. Espera que, agora, “se enfrente o problema,
tendo em atenção todas as pessoas envolvidas: vítimas e todos os que
contribuíram a vários níveis, incluindo os abusadores”, tentando perceber a
fundo “a essência do que aconteceu e das pessoas que foram abusadoras”.
Acompanha
um padre que está preso por abusos. Praticamente nenhum dos colegas o visita.
Ora, é importante que se olhe para todos os envolvidos, embora nos devamos centrar
nas vítimas, pois “mesmo um abusador pode ser mais do que isso.” E justifica:
“Muitas vezes, muitos deles também foram vítimas – da Igreja, da formação dos
seminários, do modo como se encarava a formação e o ministério.” Mesmo o Papa
deveria falar mais claramente sobre a questão dos agressores. “O Evangelho e
Jesus Cristo têm outra justiça, que deve ter um efeito reparador para todos.”
Beatriz
Cardoso quer medidas concretas. A criação de “formas de escrutínio interno” na
Igreja, de modo a dar segurança às vítimas, deveria ser “prática assumida”. E
acrescenta que, em âmbito geral, deveria ser transposto para a prática judicial
e de todas as instâncias o que está previsto na Convenção de Istambul (e não
está no Código Penal): “É preciso acreditar nas vítimas, não se lhes pode
perguntar o que fizeram para que o agressor tivesse praticado atos contra
elas.”
***
Por
fim, importa que não se atirem pedras à Igreja, mas que a sociedade também se
repense nas suas falhas nesta matéria. E, sendo isto uma vergonha para os
crentes, nem por isso deixamos de crer na essência e na missão genuína da
Igreja (“Quem nunca errou que atire a primeira pedra”, Jo 8,9), nem nos envergonhamos de ser cristãos, antes rejeitamos o
rótulo de abusadores.
Aliás,
a Igreja só existe porque há pecadores fora dela e dentro dela. Virá o tempo da
inocência!
2023.03.03 – Louro de
Carvalho
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