O
tema veio-me à cabeça depois de ler o artigo “O PowerPoint de
Cavaco Silva”, de
Daniel Oliveira, no Expresso online
de 23 de março.
Refere
o colunista que o Professor Cavaco Silva (CS) fora
à Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, como orador na
conferência evocativa dos 30 anos do Plano Especial de Realojamento (PER), que
levou à eliminação das barracas, cenário triste das áreas metropolitanas de
Lisboa e do Porto na década de 1980 (e antes).
Cavaco
Silva denominou o programa “Mais Habitação”, apresentado pelo Governo como um PowerPoint, designação importada de alguns
comentadores políticos e que tem sido assaz replicada. A designação significa a
suposta vacuidade do programa, esquecendo que o PowerPoint só foi o suporte
digital da comunicação do primeiro-ministro em conferência de imprensa, mas o
que passou à consulta pública foi um texto consequente, embora criticável e com
deficiências.
Pior do que
isso, apenas se regista o designativo “melão” com que o Presidente da República
(PR) atribuiu ao predito programa do governo, especificando que a qualidade dos
melões apenas se afere aquando da sua abertura, o que levou os críticos a
considerarem que este melão, já aberto, é pior do que parecia quando estava por
abrir.
Ora, do meu
ponto de vista, estamos perante um caso de falta de respeito por um órgão de
soberania, o governo; e, no caso do PR, de falta de respeito de um órgão de
soberania por outro órgão de soberania. E todos – mas, por maioria de razão, os
titulares e ex-titulares de órgãos de soberania – estamos obrigados ao respeito
pelas instituições democráticas.
Todavia, há
mais instituições, além dos órgãos de soberania, que merecem respeito
institucional. Estão neste caso, por exemplo, as autarquias e os partidos
políticos.
Dois
socialistas que estiveram na predita conferência abandonaram a plateia,
incomodados com o discurso do orador oficial. Ora, a anfitriã, a Câmara
Municipal de Lisboa (CML), merece o respeito da parte dos presentes. E quem se
compromete com a política explícita ativa deve ter poder de encaixe: ouvir e
aguardar – e ou provocar – a oportunidade de replicar.
Não obstante, Daniel Oliveira foca um outro dado
importante. “É
incompreensível, a não ser à luz do sectarismo político, que a Câmara de Lisboa
organize uma cerimónia evocativa do programa que erradicou 10 mil barracas na
cidade e não convide os responsáveis da autarquia da altura. Sim, o PER foi uma
iniciativa que partiu do Governo, mas, não só foi executado pelas autarquias,
como estas financiaram 50% do seu valor.”
Esta observação leva-me a pensar que as instituições
nem sempre se dão ao respeito, tomando atitudes de Estado ou atitudes curiais.
Efetivamente, a ausência de João Soares – que foi, com Jorge Sampaio, quem
coordenou o trabalho de planeamento, de demolição, de construção e de
realojamento de milhares de famílias – torna-se clara quando a CML convoca a
imprensa, destacando que CS iria criticar fortemente as atuais políticas. É a
instrumentalização da autarquia, mesclando o papel institucional e o
alinhamento partidário do seu líder.
Tal falta de autoridade para exigir respeito da parte
de outrem sucede a cada passo.
Quando um PR fala sobre tudo e todos, antecipando
decisões, formulando juízos precipitados, que se vê na necessidade de corrigir,
insinuando, publicamente, a necessidade de demissão de governantes ou interferindo
no processo legislativo, sem aguardar a oportunidade que a Constituição lhe
reserva, arrisca a eventual falta de credibilidade para a sua palavra. Quando
um ex-PR é apontado como tendo patrocinado, a partir de Belém, a criação de um
partido, merece respeito, justamente porque já ninguém se lembra disso. Quando
um ex-PR se dispõe a negociar uma dissolução parlamentar a troco de uma solução
governativa, para não perturbar as avaliações da troika, não sei se tem autoridade
para falar de credibilidade política. E, quando um ex-PR dissolve o Parlamento,
tendo o governo maioria parlamentar de suporte, não se pode dizer que seja um
político imparcial.
Um Parlamento em que os deputados usem os esquemas
disponíveis (legais ou ilegais – quem faz a lei são os deputados) para
acrescentarem mais uns cêntimos à remuneração de base, marquem presenças
fictícias ou registem viagens-fantasma, não tem moral para pregar a ética
republicana.
Quando os governos se afundam em casos e casinhos de
reais ou factícias incompatibilidades e impedimentos, não veem que o exemplo
tem de vir de cima. E, quando os mesmos ridicularizam as opiniões de alguns
deputados ou insultam os representantes de outros partidos, obviamente não
estão a pontuar a democracia de forma positiva.
Quando os tribunais, mormente alguns tribunais
superiores, abrigam titulares que ali vão fazer curto estágio para auferirem
uma aposentação mais substanciosa, ou quando os cooptados chegam,
cronologicamente, ao fim de mandato, sem que haja diligências para a sua
sucessão (não podem abandonar o cargo, sem que sejam substituídos), é de
questionar para que serve, às vezes, a independência dos poderes. E, quando o
Tribunal Constitucional entende que a cidade de Coimbra não tem dignidade para
acolher a sua sede, exibe um supino e despiciente centralismo.
Já não falo de autarquias, de departamentos do Estado
central ou de circunscrições regionais, onde é muito pouco eficaz a vacina
contra a corrupção, contra o compadrio (amiguismo e endogamia), contra o
peculato, contra o abuso de poder ou contra o tráfego de influências. Que moral
há aí para nos obrigarem ao pagamento atempado de contribuições, impostos,
taxas e tarifas?
Está na berra o alegado ato de “intolerável”
indisciplina na Marinha, espelhado no caso de militares que recusaram cumprir a
missão de escolta a um navio russo. É verdade que a disciplina é a cola da
instituição militar. Esta instituição é digna de todo o respeito, o que tem
sido sonegado pelo Estado, pela sociedade e, mesmo, por alguns militares, que
se governam, sub-repticiamente, nela. Porém, vir a mais alta patente da quase
invisível Armada expor em público a reprimenda aos supostos insurretos não
concita respeito. E não concitam respeito umas forças armadas a agir com equipamentos
e materiais obsoletos, com falta de efetivos e em instalações degradadas.
O predito colunista do Expresso não se coíbe do levantamento de
intenções na oração do ex-chefe de Estado. “Quebrando a já longa tradição de um artigo trimestral,
para repetir o mesmo de sempre, Cavaco Silva regressou ao seu papel preferido:
fragilizar a liderança do PSD. Foi assim com Santana Lopes e a má moeda, foi
assim com Rui Rio, indicando-lhe os argumentos e o tom viril com que devia
fazer oposição, volta a ser assim com Luís Montenegro, que já vê Passos Coelho
no retrovisor, deixando claro quem tem o poder para concentrar a atenção
política e mediática na oposição. O projeto e a motivação de Cavaco Silva
continuam a ser, como sempre foram, Cavaco Silva.” É evidente o desrespeito
para com os partidos e para com os seus líderes partidários. É aos partidos que
incumbe governar ou fazer oposição.
Lembrar o seu papel na criação do PER, enquanto marco
do estado social no país, na construção de 34 mil casas que eliminaram os
bairros de lata, não bastou a CS. Efetivamente, o PER foi criado pelo
Decreto-Lei n.º 163/93, de 7 de maio, assinado e referendado por Cavaco Silva,
como reação à presidência aberta de Mário Soares na Área Metropolitana de
Lisboa.
Porém, o decreto era vago na contratualização e na
responsabilização dos municípios, bem como no financiamento público às
autarquias, de modo que, em 1995, quando CS deixou o governo, em 1995, não
havia uma casa construída. Foi António Guterres quem remodelou o diploma, em
1996, apenas aproveitando o levantamento das necessidades de intervenção e do número
de casas a construir, herdado do governo anterior, com a cooperação das autarquias
envolvidas.
Ora, CS critica o governo por anunciar um PowerPoint
para uma política de habitação, mas fez o mesmo. Deixou um PER, sem assegurar o
financiamento assegurado e sem clarificar as regras claras na relação com os
municípios, e que foi planeado e executado pelas respetivas autarquias.
O que ressalta da sua intervenção é a expressão
“marxistas ignorantes” aplicada ao governo de António Costa, que deu ao PR azo
para classificar o programa de inexequível e inoperacional. “Marxista
ignorante” será também o governo de Passo Coelho, pois o “arrendamento forçado”
está previsto desde 2014, na “lei dos solos” (Lei 31/2014, de 30 de maio), assinada pelo primeiro-ministro Passos Coelho e
promulgada pelo Presidente da República Cavaco Silva. Apesar de a proposta do
atual governo ir mais longe, não se pode dizer que viole o direito à
propriedade, antes sublinha a função social da propriedade, que o Estado de
direito democrático e social devia consagrar na sua Constituição Política.
Assim, a oposição neoliberal dá a deixa ao governo para
“transformar a posse administrativa dos imóveis em impostos semelhantes aos que
vigoram em França para casas devolutas – medida mais punitiva, mais
simples de implantar e sem pingo de inconstitucionalidade.
E o que o presidente da CML tem apresentado, além dos
megaencargos com os equipamentos para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ), é a
inauguração de uma residência académica privada com quartos de 15m2 entre os
700 e os 1100 euros. É, como diz Daniel Oliveira, “o aumento de oferta que os
liberais, estejam na IL ou no PSD, acham que vai resolver os problemas dos
jovens, a quem se dirigem em exclusividade”.
***
Entretanto, o atual chefe de Estado não se ficou atrás
e passou a multiplicar-se em declarações sobre o “Mais Habitação”, em especial
sobre o arrendamento coercivo de casas devolutas. Ora, o processo legislativo tem
vários tempos: o debate público; a negociação parlamentar; com a aprovação (ou
não); e a promulgação ou, em alternativa, o veto político presidencial ou o pedido
de verificação de constitucionalidade pelo PR. Ora, este pensa que deve participar
em todos os tempos do processo, interferindo nele abusivamente. Pode
incomodá-lo a ineficácia da oposição, mas não lhe cabe substituir-se aos
partidos, nem ao governo, nem ao Parlamento.
Como diz o povo, “cada macaco no seu galho”, “a cada
dia tem a sua malícia” e “o respeito é muito bonito”.
2023.03.23 – Louro de Carvalho
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