O
episódio da cura do cego de nascença (Jo
9,1-41) por Jesus, em dia de sábado, é paradigmático em relação à preocupação efetiva
do crente pela sorte de cada um dos nossos semelhantes e à colocação de Jesus
como luz que nos faz ver o caminho.
Assim,
o tema da luz, que dissipa as nossas cegueiras, está bem presente na Liturgia
da Palavra do 4.º domingo da Quaresma, no Ano A, em que se proclama, explica e
medita, excecionalmente, o Evangelho de João, apontando para a definição da
experiência cristã como “viver na luz”.
Desta
feita, no quadro do “Livro dos Sinais”, abordamos o sinal da luz, como um dos itens
das catequeses sobre a ação criadora do Messias.
A
catequese da “luz” é colocada no contexto da “Festa de Sukkot” (festa das
colheitas), de que um dos ritos mais populares era a iluminação dos quatro
grandes candelabros do átrio das mulheres, no Templo de Jerusalém. No centro,
aparece-nos, além de Jesus, um cego que Lhe surgiu no caminho. Os cegos eram um
dos grupos excluídos da sociedade. As deficiências físicas eram tidas como
resultado do pecado, discutindo-se se a deficiência nata de alguém resultava de
pecado dos pais ou de pecado cometido pela criança no ventre materno. E Deus
castigava conforme a gravidade da culpa. Neste sentido, a cegueira era vista
como o resultado de pecado especialmente grave. Com efeito, doença que
impedisse o homem de estudar a Lei era considerada a maldição de Deus por
excelência. Pela sua condição de notória impureza, os cegos não podiam ser
testemunhas no tribunal, nem participar nas cerimónias religiosas.
O
cego deste episódio é o símbolo de todos os homens e mulheres que vivem nas
trevas, privados da luz e, por conseguinte, impedidos de chegar à plenitude da
vida.
Antes
de mais, Jesus apresenta-Se como a luz do mundo. Os discípulos, alinhados com a
Teologia oficial, queriam saber se foi o cego que pecou ou se foram os pais.
Jesus contesta que haja qualquer nexo entre sofrimento e pecado. Contudo, aproveita
o ensejo para mostrar que a missão que o Pai lhe confiou é ser a luz do mundo e
encher de luz a vida dos que vivem nas trevas.
A
seguir, Jesus prepara-se para dar a luz ao cego. Cospe no chão, faz lodo com a
saliva e unge-lhe os olhos com o lodo. É um gesto que replica o gesto criador
de Deus de Gn 2,7 (quando Deus amassou o barro e modelou o homem). Pensava-se
que a saliva transmitia a força ou energia vital, equivalente ao sopro de Deus,
que deu vida a Adão. Assim, Jesus juntou ao barro a sua energia vital,
repetindo o gesto criador de Deus. A missão de Jesus é, pois, a nova criação,
de que resulta um Homem Novo, animado pelo Espírito de Jesus.
Todavia,
a cura não é automática: requer a cooperação do enfermo. “Vai lavar-te na
piscina de Siloé” – disse Jesus. A disponibilidade em obedecer a Jesus é elemento
essencial na cura e vinca a adesão ao desígnio de Jesus. A referência ao banho
na piscina de Siloé, o enviado, é alusão à água de Jesus (o enviado do Pai),
água que torna os homens novos, livres das trevas e da escravidão. Nestes
termos, a comunidade joânica faz aqui a catequese sobre a relevância do Batismo,
enquanto passo de integração na comunidade do Reino de Deus. Com efeito, quem quiser
sair das trevas para viver na luz, como Homem Novo, tem de aceitar a água do Batismo,
ou seja, tem de optar por Jesus e acolhê-Lo a Ele e ao seu desígnio.
Depois,
várias personagens representam vários papéis e assumem atitudes várias face a
esta cura.
Os
primeiros são os vizinhos e conhecidos do cego. A imagem do cego, dependente e
inválido, transformado em homem livre e independente, leva os concidadãos a
interrogarem-se. Percebem que de Jesus vem o dom da vida em plenitude, anseiam
pelo encontro com Ele, mas não ousam dar o passo definitivo. Representam os que
percebem a novidade de Jesus, mas vivem na inércia e não estão dispostos a sair
do seu mundo limitado, para ir ao encontro da luz.
Outro
grupo é o dos fariseus. Sabem que Jesus oferece a luz, mas recusam-na. Interessa-lhes
continuar com o esquema das trevas. Representam os que têm conhecimento da novidade
de Jesus, mas não se dispõem a acolhê-la. Sentem-se confortáveis nos esquemas
de autossuficiência e não renunciam às trevas. Opõem-se à luz que Jesus oferece
e não aceitam que alguém saia da escravidão para a liberdade. E, quando se
apercebem de que o homem curado por Jesus não está disposto a voltar atrás, expulsam-no
da sinagoga: entre as trevas, que os dirigentes querem manter, e a luz, que
Jesus oferece, não pode haver compromisso.
Depois,
aparecem os pais do cego, que se limitam a reconhecer o acontecimento (nasceu
cego e agora vê), mas não se comprometem, por medo, o medo de quem é escravo da
situação que vive. O texto refere que “tinham medo de ser expulsos da
sinagoga”. A sinagoga era o local do encontro da comunidade, mas também designava
a comunidade do Povo de Deus. Por isso, a expulsão da sinagoga significava a
excomunhão, a declaração de herege ou de apóstata. Assim, aqueles pais
representam os que, por medo, preferem a escravidão a não provocar os
dirigentes ou a opinião pública. Portanto, não aceitam a proposta
transformadora de Jesus.
Por
fim, temos o homem curado. Ele, que era prisioneiro das trevas, limitado e
dependente, no encontro com Jesus, recebe a luz, mas de forma progressiva.
Nos
momentos imediatos à cura, não tem certezas. Quando lhe perguntam por Jesus,
responde: “Não sei”; e, quando lhe perguntam quem é Jesus, responde: “É um
profeta”. Porém, confrontado com os dirigentes e intimado a retratar-se,
torna-se o homem da certeza, da convicção; argumenta com agilidade e inteligência,
joga com ironia; e mostra-se o homem adulto, maduro, livre. Finalmente, surge o
estádio final da caminhada: a adesão plena a Jesus. Jesus, reencontrando o
ex-cego, convida-o a aderir ao Filho do Homem (“acreditas no Filho do Homem?”).
E a resposta é a adesão total: “Creio, Senhor”. “Senhor” (“kýrios”) era o
título com que a comunidade cristã designava Jesus, o Senhor glorioso. Assim, o
que fora cego, prostrou-se e adorou Jesus, ou seja, reconheceu-O como o projeto
de Homem Novo.
Neste
percurso está representado o caminho do catecúmeno. O primeiro passo é o
encontro com Jesus; depois, o catecúmeno manifesta a adesão à luz e vai
amadurecendo a descoberta. Torna-se, progressivamente, um homem livre, sem
medo, confiante; e esse caminho desemboca na adesão total a Jesus, no
reconhecimento de que Ele é o Senhor que guia a História e que tem uma proposta
de vida para o homem. Depois, nada mais interessa do que seguir Jesus, cuja
missão é a criação de um Homem Novo, liberto do pecado e a viver na liberdade,
a caminho da vida.
A
missão de Jesus consistirá em destruir a cegueira espiritual, libertar o homem
e fazê-lo viver na luz. É uma nova criação.
***
A
primeira leitura (1Sm
16,1b.6-7.10-13) não atinge diretamente o tema da luz. Não obstante, conta a
escolha e a unção de David como rei: ensejo para reflexão sobre a unção que
recebemos no Batismo e que nos constituiu testemunhas da luz de Deus no mundo.
Na
segunda metade do século XI a.C., os filisteus eram séria ameaça para as tribos
do Povo de Deus. Instalados na orla costeira, pressionavam os outros grupos que
habitavam a terra de Canaã, nomeadamente as tribos do Povo de Deus que ocupavam
as montanhas do interior. A necessidade de liderança única levou os anciãos a
equacionar a possibilidade da união política das tribos sob a autoridade de um
rei, à imagem do que sucedia com os outros povos. Deus, não queria que o seu
Povo tivesse outro rei que não Ele, mas anuiu, com a condição de ser Deus a
escolhê-lo.
A
primeira experiência monárquica, que surgiu com Saúl e agrupava as tribos do centro
e algumas do norte, terminou de forma dramática: Saul e seu filho Jónatas
morreram na batalha de Gelboé, em luta contra os filisteus, por volta do ano
1010 a.C.
Urgia
encontrar novo herói, capaz de gerar consensos nas tribos e guiá-las
vitoriosamente ao combate contra os inimigos. A escolha dos anciãos – tanto das
tribos do norte, como das tribos do sul – recaiu no jovem David, nascido por
volta de 1040 a.C., em Belém de Judá.
O
1.º Livro de Samuel apresenta três tradições sobre a entrada de David em cena.
A primeira mostra-o como admirável guerreiro, cuja valentia chamou a atenção de
Saúl, sobretudo após vitória sobre Golias, o gigante filisteu. A segunda apresenta-o
como poeta, que vai para a corte de Saúl para cantar e tocar harpa. Segundo
esta tradição, o rei só reencontrava a calma e o bem-estar, quando David o
acalmava com a música. Aos poucos, o poeta/cantor foi ganhando adeptos na
corte, tornando-se amigo de Jónatas, filho de Saúl, e casando com Mical, a
filha do rei. E a terceira tradição apresenta a realeza de David como escolha
de Jahwéh. É esta terceira tradição que o trecho em referência apresenta e que
releva do ponto de vista teológico.
O
relato em causa apresenta-nos uma elaborada reflexão sobre a eleição, mostrando
que a lógica de Deus é bem diferente da lógica dos homens.
Antes
de mais, David é o eleito de Javé, que é sempre quem escolhe aqueles a quem
quer confiar uma missão. Nem a Samuel – o enviado – Javé dá qualquer
explicação. A eleição não resulta da iniciativa do homem, mas da iniciativa e
da vontade livre de Deus.
Depois,
impressiona a lógica da escolha. Samuel raciocina com a lógica humana e tenta
ungir rei o filho mais velho de Jessé de Belém, impressionado pelo seu belo
aspeto e pela sua estatura; mas não é essa a escolha de Deus. E Samuel percebe
que a escolha de Deus recai sobre David – o filho mais novo de Jessé – jovem anónimo
e desconhecido que guardava o rebanho do pai.
A
história desta eleição sublinha a lógica de Deus, que escolhe sem ter em conta
os méritos, o aspeto ou as qualidades humanas que impressionam. Ao invés, Deus
escolhe e chama, com frequência, os pequenos, os mais fracos, os que o mundo
marginaliza por insignificantes; e é através deles que age no mundo. Quem leva
a cabo a obra da salvação é Deus; os homens são instrumentos, através dos quais
Deus realiza a sua obra. O rei eleito é um rei-pastor.
***
***
Na
2.ª leitura (Ef 5,8-14), Paulo propõe
aos Efésios que recusem viver à margem de Deus (trevas) e escolham a luz. E
frisa que viver na luz é praticar as obras de Deus: bondade, justiça e verdade.
A
Carta aos Efésios é um dos exemplares de uma carta circular enviada a várias
Igrejas da Ásia Menor, quando o apóstolo está na prisão (em Roma ou em Cesareia).
O portador é Tíquico. Alguns veem aqui uma síntese da teologia paulina, quando Paulo
sente terminada a sua missão apostólica na Ásia e não sabe o que o futuro
próximo lhe reserva.
O
tema central da carta é “o mistério”, ou o desígnio salvador de Deus, definido
desde toda a eternidade, escondido dos homens, durante séculos, mas revelado e
concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos e dado a conhecer ao
mundo na Igreja.
O
trecho em apreço faz parte da exortação aos batizados, da segunda parte da
carta. Aí, Paulo retoma os temas da catequese primitiva e convida os crentes a
deixarem a antiga forma de viver para assumirem a nova, revestindo-se de Cristo,
imitando Deus e passando das trevas à luz. A imagem da luz e das trevas é frequente
na catequese primitiva, como sugere o seu uso neotestamentário, sobretudo em
João e Paulo. O símbolo luz/trevas aparece, também, nos escritos de Qumran para
definir o mundo de Deus (luz) e o mundo que se Lhe opõe (trevas). Para Paulo,
viver nas trevas é viver à margem de Deus, viver prisioneiro das paixões e dos
falsos valores, na autossuficiência. Ao invés, viver na luz é acolher o dom da
salvação que Deus oferece, aceitar a vida que Ele propõe, escolher a liberdade,
tornar-se filho de Deus.
Os
cristãos são os que optam por viver na luz. Paulo exorta-os a viverem na órbita
de Deus, como Homens Novos, e a praticarem as obras correspondentes à opção que
fizeram pela luz. Ou seja, pede-lhes que as vidas sejam marcadas pela bondade,
pela justiça e pela verdade. A propósito, cita um hino cristão batismal, que
convoca os crentes para viverem na luz. Mais ainda: o cristão é chamado a viver
na luz e a desmascarar as trevas, denunciando as obras dos que escolhem viver
nas trevas do egoísmo, da mentira, da escravidão e do pecado.
Ungidos
pelo Espírito da fortaleza e vestidos da luz que nos ilumina a rota, somos
peregrinos do Além nesta terra de esperança.
2023.03.20 – Louro de Carvalho
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