Com data de
25 março e para entrar em vigor a 30 de abril, o Papa Francisco, através de
Carta Apostólica em forma de Motu proprio,
promulgou uma versão atualizada da Carta Apostólica “Vos estis lux mundi”, de 7 de maio de 2019, sobre a proteção de menores
e de pessoas vulneráveis, redigida e promulgada na sequência do encontro do
Pontífice com os presidentes das conferências episcopais (ou organizações
similares) de todo o Mundo.
Esta versão atualizada
inclui a responsabilização de “líderes leigos das associações de fiéis”,
substitui a expressão “pessoa vulnerável” pela expressão “adultos vulneráveis”
e abrange a violência e o assédio sexual contra mulheres, resultante de abuso
de autoridade.
Como informou a Sala de Imprensa da Santa Sé, “após
quase quatro anos de experimentação e extensa consulta aos bispos e aos
Dicastérios da Cúria Romana”, Francisco promulgou, em definitivo, os
procedimentos atinentes aos abusos sexuais, alargando o conceito de
vulnerabilidade aos casos de violência e assédio resultantes do abuso de poder.
Assim, em vez de pessoas vulneráveis, usam-se as expressões “menores” e
“adultos vulneráveis”:
Por outro lado, esta versão atualizada do Motu
proprio “Vos estis lux mundi”
responsabiliza também “fiéis leigos que são ou foram moderadores de associações
internacionais de fiéis reconhecidos ou criados pela Sé Apostólica”, vincando
que “[são responsáveis] por atos cometidos” enquanto estavam em funções,
acrescendo à responsabilidade que o texto atribuía a bispos, superiores
religiosos e clérigos responsáveis por determinada Igreja ou Prelatura.
A versão anterior referia-se a atos sexuais com menor
ou com pessoa vulnerável e o texto atualizado fala de “crime contra o Sexto
Mandamento do Decálogo cometido com menor, ou com pessoa que habitualmente tem
uso imperfeito da razão, ou com adulto vulnerável”.
Outra alteração diz respeito à proteção da pessoa que
apresenta uma denúncia de alegado abuso, reforçando a salvaguarda “da legítima
proteção do bom nome e da privacidade de todas as pessoas envolvidas”, bem como
a presunção de inocência para os que estão sob investigação durante o período
em que as determinações de responsabilidade estão em curso.
“Enquanto o texto anterior afirmava que não se pode
impor qualquer constrangimento de silêncio à pessoa que relata um alegado
abuso, esta proteção foi alargada à “pessoa que afirma ter sido ofendida e aos
que foram testemunhas”, indica o Dicastério para a Comunicação.
A versão atualizada confirma a orientação de as
dioceses e eparquias (eparquia corresponde, nas comunidades de rito oriental, à
diocese) operacionalizarem uma “organização ou escritório, facilmente acessível
ao público para receber denúncias de casos de abuso”.
O Papa sublinha também que a “tarefa de investigação”
é da responsabilidade “do bispo ou do ordinário do local onde alegadamente
ocorreram os factos denunciados”.
“Os procedimentos introduzidos em 2019 estabelecem
diretrizes precisas sobre como lidar com as denúncias de abusos e asseguram que
os bispos e superiores religiosos – que agora incluem leigos com
responsabilidade por associações internacionais – são responsabilizados,
ficando obrigados, através de um preceito legal universalmente estabelecido, a
denunciar os abusos de que tomaram conhecimento”, precisa o texto.
O Motu proprio “Vos estis lux mundi” inclui “abuso e violência contra
crianças e adultos vulneráveis” e abrange “a violência e o assédio sexual
resultantes do abuso de autoridade”, isto é, passa a haver “obrigação de
denúncia” de casos de violência contra “mulheres religiosas por clérigos” ou
“casos de assédio de seminaristas ou noviços adultos”.
A versão atualizada substitui a versão publicada em
maio de 2019, decorrente do encontro, em fevereiro, que decorreu, no
Vaticano, com os presidentes das Conferências Episcopais (ou organismos
equivalentes) do mundo, sobre proteção de crianças e abusos sexuais na Igreja,
e confirma o desejo de continuar a combater os crimes de abuso sexual na Igreja
católica.
As atualizações no texto, agora publicadas, incluem a
revisão do Motu proprio “Sacramentorum
sanctitatis tutela” (de 2001, revisto em 2021), alterações ao Livro VI
do Código de Direito Canónico (2021), e a Constituição “Praedicate Evangelium” (2022).
***
O arcebispo D. Charles Scicluna, secretário adjunto do
Dicastério para a Doutrina da Fé e especialista na luta contra os abusos
sexuais na Igreja católica, entrevistado pelo Vatican News, afirmou a importância de alargar as normas a leigos
responsáveis por associações de fiéis. “A mudança mais importante é a
introdução de um procedimento detalhado sobre a denúncia e investigação de
acusações contra leigos à frente de associações internacionais”, concretizou.
Sublinhando a confirmação dos procedimentos apresentados em
2019, que são “lei universal”, a partir de 30 de abril, especificou: “Esta é
uma das mais fortes novidades desta versão de Vos estis lux mundi.
Estamos na segunda parte que dá à Igreja um procedimento detalhado sobre a
denúncia e investigação de acusações contra pessoas na liderança da Igreja. À
liderança que, no documento de 2019, inclui cardeais, patriarcas, bispos,
clérigos nomeados como pastores nas igrejas particulares, no texto de hoje, o
Papa introduz duas novas categorias: os clérigos que estiveram à frente de uma
associação pública, clerical, com a faculdade de incardinar, e os fiéis leigos
que foram moderadores de associações internacionais reconhecidas pela Santa
Sé.”
D. Charles Scicluna reconhece que a criação de “órgãos e
escritórios”, “facilmente acessíveis ao público para a denúncia de casos de
abusos”, corresponde a um sinal da Igreja para “facilitar a denúncia” e “cuidar
das pessoas”. Assim, explanou: “O artigo 5.º estabelece que as autoridades
eclesiásticas se devem comprometer para que aqueles que afirmam ter sido
ofendidos, juntamente com as suas famílias, sejam tratados com dignidade e
respeito e sejam acolhidos, escutados e acompanhados através de serviços
específicos de assistência espiritual, médica, terapêutica e psicológica, de
acordo com o caso específico.”
Como explicou, as alterações pedem “não apenas centros de
escuta onde as pessoas podem apresentar uma denúncia, mas também lugares onde facilitar
o cuidado das pessoas”.
***
Sobre a matéria, a 7 de março, a agência Ecclesia elencava, em 15 pontos, os procedimentos a adotar, segundo
as normas da Santa Sé e da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), que preveem o
sigilo do processo, a aplicabilidade de medidas cautelares e o direito à
presunção da inocência. Aqui se deixam de forma sintetizada, mantendo os
respetivos itens.
1. Qualquer pessoa pode levar uma denúncia à Igreja
Católica. Em 2019, Francisco instituiu a obrigação de denúncia aos membros do
clero e de institutos religiosos (e, agora, a leigos com responsabilidade por
associações internacionais), sempre que alguém “saiba ou tenha fundados motivos para supor” a
existência de abusos sexuais – sem infringir o segredo de Confissão.
2. Cada bispo deve acolher, analisar, avaliar e aprofundar,
com atenção, todas as denúncias, independentemente da forma ou do canal utilizado.
Por iniciativa de Francisco, as dioceses criaram comissões próprias para estes
casos, com especialistas de várias áreas. As normas exigem “cuidadosa avaliação
dos factos”, vincando a necessidade de acolhimento, de escuta e de
acompanhamento das pessoas que se apresentam como vítimas.
3. Uma das novidades tem a ver com as denúncias anónimas, que
deixam de ser automaticamente descartadas, tal como não é aconselhável
descartar a priori uma denúncia “proveniente de fontes cuja
credibilidade possa parecer, à primeira vista, duvidosa”.
4. As diretrizes da CEP, de 2020, determinam que o manual do
Dicastério para a Doutrina da Fé (DDF) deve ser integralmente aplicado, com
necessidade de escutar, acompanhar e garantir uma adequada assistência médica,
espiritual e social às vítimas dos abusos e aos familiares.
5. Determina-se a abertura de investigação prévia, se a denúncia for considerada,
pelo menos, verossímil, pelo que o bispo deve iniciar a investigação e aplicar
as necessárias medidas cautelares para evitar a continuação de eventuais
abusos, dando conhecimento à Santa Sé.
6. Mesmo sem obrigação explícita, do ponto de vista jurídico, recomenda-se
que a autoridade eclesiástica apresente denúncia às autoridades civis
competentes, “sempre que o considere indispensável para tutelar a pessoa
ofendida ou outros menores do perigo de novos atos delituosos”, mas não podendo
ir contra o sigilo sacramental na Reconciliação.
7. Em causa estão acusações de forçar e/ou realizar atos sexuais com menor
de 18 anos ou com “adulto vulnerável” (expressão atual), bem como de posse ou
divulgação de material pornográfico infantil. O direito canónico é mais
exigente do que a legislação portuguesa, na qual a idade de consentimento é aos
14 anos, embora com restrições até aos 16 anos. Desde 2021, com a reforma do
Código de Direito Canónico (CDC), estes casos são inseridos na secção dedicada
aos “delitos contra a vida, a dignidade e liberdade do homem”.
8. O bispo não pode decretar a “suspensão”, enquanto ato
condenatório, de padre indiciado. Porém, desde a abertura da
investigação, pode impor medidas cautelares – que são ato administrativo. Entre
elas, está a possibilidade de afastamento ou proibição de exercício público do
ministério. O próprio sacerdote alvo de denúncias pode pedir o afastamento
provisório de funções, durante a investigação. Desde o momento da
denúncia, o acusado tem direito de apresentar pedido de dispensa de todas as
obrigações inerentes ao seu estado de clérigo, incluindo o celibato. Na
legislação em vigor, na Igreja, a suspensão é uma pena, que decorre de um processo
penal, pelo que, tecnicamente, o termo não se aplica à investigação prévia.
9. O Papa aponta à responsabilidade de bispos que sejam acusados de “ações
ou omissões” que visem interferir ou contornar as investigações civis,
canónicas, administrativas ou criminais nestes casos. Está em causa delito
punível nos termos do Direito Canónico e do Motu proprio “Como uma mãe amorosa” (2016), podendo levar à
destituição do cargo.
10. Os atos da investigação são enviados para o DDF, que pode arquivar o
caso, abrir processo penal, solicitar aprofundamento da investigação, impor
medidas disciplinares, advertências ou repreensões. A abertura do processo pode
decorrer por via judicial ou administrativa; em casos muito graves, o processo
pode terminar com decisão direta do Papa; e, no desenrolar do
processo, podem ser impostas medidas cautelares ao acusado.
11. A autoridade eclesiástica deve informar a alegada vítima e o acusado – se
o solicitarem – sobre cada fase do processo, sem revelar informações cobertas
por segredo processual.
12. O CDC prevê a “privação do ofício e outras penas justas, sem excluir, se
o caso o exigir, a expulsão do estado clerical”, para os sacerdotes. As penas consideram as
circunstâncias atuais (saúde ou idade, etc.), podendo incluir a obrigação
ou proibição de residência num território, privação de cargos ou funções,
proibição de ouvir confissões ou de pregar.
13. As penas atingem clérigos, membros de instituto de vida consagrada ou de
sociedade de vida apostólica ou “fiel que goze de dignidade ou exerça cargo ou
função na Igreja”.
14. O prazo, no CDC, é mais longo do que na legislação portuguesa. Os casos
prescrevem num prazo de 20 anos a partir do 18.º aniversário da vítima. Essa
prescrição pode ser revogada, em casos individuais, por decisão da Santa Sé, e
os bispos devem dar seguimento à investigação, mesmo verificando que decorreu o
tempo para a prescrição.
15. A 17 de dezembro de 2019, o Papa decidiu abolir o segredo pontifício nos
casos de violência sexual e de abuso de menores cometidos por clérigos.
Mais claro do que isto não há.
2023.03.26
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário