A opinião pública sentiu um episódio na Armada que, supostamente, revelou
um “intolerável” ato de indisciplina, o que deu azo a repreensão por parte do
chefe do Ramo, a par de procedimento investigatório de ordem disciplinar e de
ordem criminal. E o Chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA), Almirante Gouveia e
Melo, referiu, para quem o ouviu que a disciplina é a cola da instituição
militar, que não admite “se” e que se espelha no funcionamento da cadeia de
comando, ou seja, na estruturação hierárquica, o que implica obediência, se não
cega, ao menos, pronta.
Entretanto, li em Ponto
de Reunião, Revista das Operações Especiais do Exército, de 2021, a páginas 45-47, o
artigo “A
Disciplina: um valor intrínseco das forças militares”, do tenente-coronel
capelão Luís Seixeira, para os militares do Centro de Operações Especiais
(CTOE), em Lamego, que julgo uma pérola de escrita, ao nível dos valores que a
sociedade deve assumir. Porque me parece útil e sem querer atropelar a memória
do padre militar recém-falecido, respigo do texto algumas ideias, com que
misturo, adicionalmente, alguns comentários.
Anota o colunista que o termo “disciplina”
se reporta ao verbo latino “discere”
(aprender), impondo que “o discípulo siga incondicionalmente o mestre, sob pena
de ruir, por completo, toda a instrução a que corresponde a aprendizagem –
conteúdos e automatismos – que se adquire de forma progressiva”. Daí se passou
à disciplina como “ordem, obediência, regime de colégio (vida comum) ou escola
(lá estão as disciplinas) e sentido de corpo”.
E, do meu ponto de vista, as disciplinas têm como
alternativa as cadeiras, pois, o mestre ensinava a partir da “cátedra” (a
significar “cadeira”, do nome latino cathedra).
Temos os professores catedráticos e as cátedras das universidades, das
academias e da UNESCO.
Apesar de o ilustre militar entender a disciplina como
“valor axial” e mobilizador do “empenhamento
ético pessoal” e da “vontade e capacidade de servir”, sem o qual “não se
cumpre nenhum dos objetivos militares que se venham a definir”, trata-se de um
valor instrumental, pois não é credível uma disciplina que leve à obediência
inaciana “obtemperare tanquam cadáver” (obedecer como um cadáver). Tem, sim,
como aponta Seixeira, o valor de “argamassa” (melhor do que o de cola, a qual
pode desfazer-se ou sofrer descolamento), a aglutinar “as demais virtudes
militares – lealdade, prudência, frontalidade, coragem, patriotismo, sentido da honra e
da justiça, assunção da responsabilidade e do risco” – e a concretizar “os
valores” da competência, da excelência, da discrição, da flexibilidade, da prontidão
e da credibilidade.
Nestes
termos, é imperativo criar e incorporar, de modo racional, “uma noção
fundamentada e sustentável de disciplina” para
que os militares sejam exímios na tomada de decisões e na sua execução,
comandando ou obedecendo ao comando – sempre em “espírito de disponibilidade e
de serviço”. Por conseguinte, no âmbito militar, a disciplina funciona como “o liame entre os diversos graus da hierarquia”,
edificando a dedicação pelo dever e pela
pontual observância da Constituição, das leis e dos regulamentos.
E “radica-se na justiça e no respeito” pelos direitos de todos, no cumprimento exato do dever, no
saber, na correção procedimental e na estima recíproca.
Não deixa o
colunista de ancorar na lei os seus considerandos sobre a matéria. Com efeito,
o Regulamento de
Disciplina Militar (RDM), aprovado pela Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de julho, elege
a disciplina militar como o garante da “observância dos valores militares
fundamentais, no respeito dos princípios éticos da virtude e da honra inerentes
à condição militar” (artigo 2.º) e como “o elemento essencial do funcionamento
regular das Forças Armadas, visando a integridade da sua organização, a sua
eficiência e eficácia, bem como o objetivo supremo de defesa da Pátria” (artigo
3.º, n.º 1). E, elegendo-a como “condição do êxito da missão a cumprir”, que se
consolida “pela assunção individual dessa missão, pela natural aceitação dos
valores militares fundamentais e pelo sacrifício dos interesses individuais em
favor do interesse coletivo” (artigo 3.º, n.º 2), preconiza que “resulta de um
estado de espírito coletivo assente no patriotismo, no civismo e na assunção
das responsabilidades próprias da condição militar” (artigo 3.º, n.º 3).
E o saudoso colunista salienta que a disciplina se
impõe, “não pela violência ou
repressão”, que incuta medo, mas “pela atitude de aceitação do ónus do dever”.
Dela ninguém fica excluído, mercê da sua “essencialidade na organização”. Por
outro lado, como a disciplina resulta de “um estado de espírito coletivo, assente no dever patriótico e cívico, quanto
mais se cumpre o dever, mais apto se está para a perceber, aqui e agora, “quanto
falta ainda fazer para o cumprir na perfeição, na esteira dos que, ao longo da
História, tombaram em sacrifício pela Pátria”.
Como
estabelece o artigo 4.º do RDM, “a disciplina militar consiste no cumprimento
pronto e exato dos deveres militares decorrentes da Constituição, das leis e
dos regulamentos militares, bem como das ordens e instruções dimanadas dos
superiores hierárquicos em matérias de serviço”, pois está em causa a
eficiência e eficácia da ação, o sentido de missão e o cumprimento do desígnio
patriótico.
E
Seixeira adverte: “Se é
necessária a interiorização da necessidade da disciplina como enformadora da
condição militar, não basta a vontade romântica de ser disciplinado, mas
exige-se que o perfil do militar disciplinado se concretize na prática: pelo
aprumo pessoal, pela perfeita integração na unidade ou subunidade de que faz
parte, pela sinceridade e lucidez com que se pronuncia, quando consultado, pela
justeza com que dá ordens, pela prontidão com que obedece, pelo seu empenho no
estudo e na exercitação, pela clareza com que instrui, pelo espírito de serviço
com que desempenha as missões que lhe são confiadas, enfim, pelo espírito de corpo
que ajuda a criar, a manter e a consolidar.”
Dá para
deduzir que a disciplina, como valor axial, mas instrumental (basilar, mas
insuficiente), concita a mobilização para a apetência pelos valores superiores,
que devem pautar a vida em sociedade, o funcionamento das instituições, o
discurso público, a gestão empresarial, a vida política e, obviamente, a vida
militar.
Não, não me
refiro à dita disciplina de voto no Parlamento. Essa faz-me lembrar a
obediência inaciana, mas hipocritamente cega, por medo de retaliação
partidária, com eventual exclusão das futuras listas eleitorais. E aproveito o
ensejo para, entre parêntesis, recomendar aos nossos representantes no
Parlamento e aos nossos zeladores no Governo, que não se limitem à atitude de
“Sim, Excelência”. Isso não é disciplina: é subserviência, que está longe de
configurar uma atitude genuinamente democrática, a qual exige estudo,
informação e atitude profissional. Todos teremos competência, se a soubermos
adquirir e cultivar. Basta empenhar-se e querer aprender.
Porém, nas
palavras de Seixeira, importa “acautelar contra a possibilidade da quebra da
disciplina que possa resultar do ‘constrangimento’ em que a vida em
coletividade pode incorrer pela natural tentação de que o proibido é o mais
apetecido, sendo que o excessivo rigor pode levar a maior volume de infração”. (Recordo
que, em tempos que servi como capelão militar, verificava que a secção de
justiça disciplina funcionava todos os dias, pois todos os dias era possível
haver quebra da disciplina e eventual atropelo à justiça). E, porque a
disciplina se adquire e se mantém pelo apreço dos princípios de justiça, “reclama sempre a atitude justa”.
Na verdade, “o rigor
excessivo na aplicação da justiça provoca a indisciplina, tal como a muito ampla
permissão”. Por conseguinte, “são bons conselheiros o bom senso, a moderação, a
cautela, o rigor, o bem-querer e a amizade”. E “a aplicação da justiça, qual
forma de manter a disciplina,
pode ser feita de dois modos: não mostrando qualquer interesse pela pessoa do
infrator; ou levando em consideração a pessoa que prevaricou e mostrando-lhe
que a punição não advém da necessidade de vingança, mas do imperativo de disciplina e [do] desejo de
correção pessoal para bem do próprio e do coletivo”. Obviamente, é de concluir
que “o segundo modo é o desejável, pois não gera prepotência, arrogância,
excesso; e, regra geral, corrige sem marcas de rancor”.
E, como a disciplina se ancora no respeito pelos
direitos de todos e no cumprimento dos deveres por parte de todos, “enriquece-se,
sempre que os disciplinadores não atropelam direitos individuais, mas limitam
as tentativas de uns ultrapassarem os seus direitos para desrespeitarem os
direitos dos outros; e consolida-se, sempre que os deveres são cumpridos
exatamente, tendo-se colocado nisso todo o saber, evitando-se ao máximo os
pontos de discordância entre quem manda e quem deve obedecer”.
Como
corolário desta ancoragem, o colunista sustenta que “a disciplina se robustece
quando se desenvolvem laços de estima mútua”, sabendo o subordinado que “conta
com um amigo na pessoa do superior” e sabendo este que aquele o respeita, o
admira, o compreende e o segue para onde as razões de serviço determinarem”.
Mas, a fim de levar as vontades a
obedecer ao menor impulso do comando, para a respetiva Unidade militar
ter êxito na missão, “a disciplina postula treino frequente, a nível individual
e a nível coletivo”. O mais simples exercício da disciplina é a ordem unida militar, que “ajuda ao seu
desenvolvimento, pondo um conjunto de seres humanos sob o mesmo comando,
levando-os à sincronia de movimentos” – que obriga à disciplina mental – exercitando a coação do grupo sobre o
indivíduo, treinando a paciência e a resistência individuais e coletivas e
gerando um duplo universo de subordinações: a das vontades individuais à do
comandante e a da vontade de cada um à do grupo. Vale, assim, a pena “cultivar,
enriquecer, consolidar e robustecer a disciplina para bem de todos e do todo”.
***
É
confrangedor notar que abundam os estatutos de empresas, de sociedades, de
associações de profissionais, de alunos, de eleitos, etc. (com elencos de
direitos e deveres, bem como com normas procedimentais) ou que há códigos
deontológicos e códigos de conduta e que, a cada passo se instauram processos
de sindicância, de inquérito ou disciplinares, sem que se cuide, a montante, da
formação pela disciplina.
Alguém
imagina um treino ou uma partida de futebol (ou de qualquer outro desporto) ou
um ensaio ou exibição de orfeão, orquestra ou banda filarmónica, sem que se
cuide da disciplina em relação ao manual ou partitura e ao treinador ou diretor
artístico? Ora, mesmo um pelotão militar autocomandado ou um artista a atuar a
solo requerem uma boa dose de disciplina assumida e interiorizada, caso contrário,
o espetáculo não passa de um fiasco.
Instrumental,
mas necessária, a disciplina é mobilizadora e uma estruturante matriz de
virtudes.
2023.03.25 – Louro de Carvalho
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