Assinalou-se, a 3 de março, o Dia do Domingo Livre de Trabalho, com vista a refletir sobre a
necessidade de o comércio estar aberto todo o fim de semana, incluindo o
domingo.
A este respeito, a Liga Operária Católica/Movimento dos
Trabalhadores Cristãos (LOC/MTC), de Portugal, para assinalar a efeméride,
redigiu e divulgou uma mensagem, que o Movimento de Trabalhadores Cristãos da
Europa (MTCE) assumiu.
O documento interroga os consumidores se não há, na semana, outro
dia para as compras, se além das atividades estritamente necessárias, será preciso
trabalhar ao domingo e se, como sociedade, devemos reservar um dia na semana,
onde a maioria esteja livre de trabalho, valorizando o descanso, o tempo livre,
o lazer, dando mais tempo à família e ao seu legítimo bem-estar.
A seguir, faz uma resenha histórica sobre a organização e a
duração do tempo de trabalho, vincando que, nos países mais civilizados, se
demorou a entender e a regulamentar a matéria.
Durante muitos séculos, trabalhou-se de sol a sol. Porém, as lutas
dos trabalhadores dos séculos XIX e XX desembocaram no limite geral de oito horas
diárias, em cinco dias por semana, na maioria dos países ocidentais. Nos anos
90 do século XX, com a introdução das novas tecnologias acreditou-se que era
possível reduzir o horário de trabalho e que os trabalhadores teriam mais tempo
livre, esperança não concretizada. Ao invés, à época, nova legislação autoriza,
de forma indiscriminada, o trabalho ao domingo, medida apresentada como inevitável
e como seguidora do modelo dos outros países europeus, pois criaria mais
facilidades para as compras, aumentava o seu volume e criaria mais empregos.
Estudos recentes mostram que não se criaram mais empregos, mas grandes
superfícies impuseram-se e muito do comércio tradicional, urbano e local encerrou
por não aguentar a concorrência.
Vários países da Europa não adotaram tais medidas, sendo
raros os estabelecimentos comerciais abertos ao domingo. Também não aumentou o
volume de compras com a abertura ao domingo, apenas se transferiu o valor da
compra dos outros dias para o domingo, nas grandes superfícies.
Por isso, a LOC/MTC pensa que não faz sentido “trabalho ao
domingo que não seja para cuidar de pessoas (crianças, jovens, idosos,
famílias…), ou infraestruturas imprescindíveis à vida humana”. E os setores que
não possam parar ao domingo devem ter melhor regulamentação e fiscalização, e
os seus trabalhadores devem ser mais bem remunerados e compensados em tempo de
descanso. “O trabalho é uma dimensão essencial da vida social, porque não é só
um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o crescimento pessoal, para
estabelecer relações sadias, expressar-se a si próprio, partilhar dons,
sentir-se corresponsável do mundo e, finalmente, viver como povo” (ver encíclica
Fratelli tutti, n.º 162), diz a
LOC/MTC.
A globalização da economia e os novos hábitos de consumo
levaram à modificação na conceção do trabalho, o que gerou novas formas da
organização do tempo de trabalho, ameaçando e tornando incerto o tempo de
descanso. Em diversas situações, como no teletrabalho, a fronteira entre o
tempo de trabalho profissional e o tempo livre está pouco definida e têm-se
agravado as condições de trabalho e a qualidade de vida, fruto da feroz
competição do mercado e de condições de trabalho vezes inumanas, em certos
setores e profissões com novas configurações: salários baixos, horários
irregulares, turnos rotativos, à noite, aos fins de semana, trabalho em dois ou
três lugares diferentes, laboração contínua, sem que as empresas paguem mais.
A fronteira entre o tempo de trabalho e o tempo
de lazer tem-se esbatido. Em termos médios, o tempo de descanso
dos trabalhadores tem vindo a perder terreno. Vivemos um tempo do primado do
capital sobre o trabalho. “Os nossos princípios partem do primado da pessoa
sobre as coisas. A economia, a empresa e o trabalho devem servir as pessoas, e
não o contrário (“o trabalho para a pessoa, e não a pessoa para o trabalho”). “É
este o sentido do tradicional princípio do primado do trabalho sobre o
capital.” (ver encíclica Laborem exercens, n.os 7 e
13).
“Compatibilizar esta diversidade de formas de trabalho com as
exigências de um horário que permita o descanso diário, semanal e anual, e a
dignidade do trabalho e do trabalhador, aqui está o grande desafio”, afirma Cristina
Rodrigues, doutora em Sociologia do Estado, do Direito
e da Administração,
pela Universidade de Coimbra.
A realidade põe em causa o fundamental do ser humano, o “ser
pessoa”, pois a adaptação contínua a novos horários e os desencontros de
horários dificultam a coincidência dos tempos de descanso do trabalhador com os
do cônjuge ou dos filhos, prejudicando a harmonia familiar.
A liberalização do comércio a envolver o domingo interfere
com questões de ordem humana, social, familiar, cultural e religiosa e
contraria o bem-estar comunitário, o convívio familiar e a disponibilidade para
participar na vida social, cultural e religiosa, desagrega as famílias e a
sociedade, individualiza as pessoas, impede a solidariedade, não gera
bem-estar, provoca doenças e dificulta a vida comunitária. Ora, não tem futuro
a sociedade onde as famílias se não encontram, não dialogam e quase não se
conhecem. Todos precisamos de assumir as responsabilidades. E compete aos
consumidores, a cada um de nós, fazer opções.
Numa sociedade onde cada vez mais pessoas se mobilizam em
torno de “Cuidar da Casa comum”, minimizar o consumo do supérfluo parece uma
medida acertada. As nossas opções têm impacto nos decisores das empresas: muitos
espaços comerciais fecham ao domingo e não perdem viabilidade económica. Temos
de pensar mais em quem tem de trabalhar ao domingo e em todos os transtornos
familiares e sociais que provocam o desencontro de horários a familiares e aos
seus grupos sociais e de amigos. A luta pelo Domingo Livre de Trabalho é justa e necessária para a vida em
família, para todos, e para que as famílias, todos os trabalhadores, possam
conviver e confraternizar e para que se construa um mundo mais justo e
solidário.
***
Desde 2011 tem aumentado o número de trabalhadores com o
horário de trabalho fora dos dias úteis. São mais de dois milhões ao sábado e
mais de um milhão ao domingo. Por isso, em 2014, Sara Gonçalves, licenciada em Gestão Cultural, lançou a
petição online “Pelo encerramento dos shoppings
aos domingos”. Cerca de 20 mil pessoas assinaram o documento, mas foi votado ao
esquecimento, até que, na homilia do domingo de Páscoa de 2019, o Bispo do
Porto, D. Manuel Linda, levantou a questão, situando-a na onda do materialismo
consumista que degrada a condição humana, violando o direito ao lazer. Assim, a
petição, em três dias, passou a contar com 55.884 assinantes e o número não
parava de crescer, o que levou a jovem, movida pela responsabilidade social, a
fazê-la chegar ao Parlamento, já com 81.785 assinaturas (a 21 de abril de
2020).
Frisando que nada exige a abertura
dos shoppings ao domingo, a petição apelava à proibição do
seu funcionamento nesse dia. “A procura de novas formas de
entretenimento ajudaria a estimular a vida na cidade e no comércio
local. O fortalecimento das relações interpessoais traria nova ênfase à vida
familiar e aqui reside o aspeto valioso e fundamental da
petição. Mais tempo de qualidade para nós e para os nossos”, lia-se
no texto, em que a qualidade de vida dos trabalhadores desses espaços é motivo
de preocupação. “Seria uma resolução que traria aos trabalhadores de grandes
superfícies comerciais horários mais equilibrados e a garantia de passar o
domingo em família, ao passo que, para os não trabalhadores de grandes
superfícies comerciais, traria o pretexto ou empurrão perfeito para investir
mais no espaço público e na nossa cultura”, prosseguia o texto.
A ideia nasceu quando Sara Gonçalves esteve
a trabalhar em Lyon, França, e teve de conviver com domingos sem centros
comerciais abertos.
A proponente vincava que chegar a
petição à Assembleia da República em tempo de pandemia era adequado, pois, “neste
contexto específico, encerrar as grandes superfícies comerciais ao domingo,
seria também uma grande medida na prevenção de covid-19”. “Agora
mais que nunca, esta seria uma medida de extrema importância. Esta pausa
forçada a que fomos obrigados mostrou-nos, de forma muito clara, que o nosso
alucinante ritmo de vida traz consequências graves para nós como indivíduos,
nós como coletivo e para o nosso ambiente”, dizia a primeira subscritora do
texto.
A petição foi discutida pelos
deputados, mas esbarrou com a oposição dos consumidores, que desejam a abertura
das grandes superfícies ao domingo. E nem a recente Agenda do Trabalho Digno
incluiu o encerramento das grandes superfícies comerciais nas condições de
harmonização da vida profissional com a vida familiar e com o direito ao
descanso e ao lazer.
A petição veio ao encontro das
preocupações da LOC/MTC, movimento
especializado da Ação Católica que, pela vivência e pelo testemunho da mensagem
cristã, entre os trabalhadores, se situa na dinâmica da vida operária,
participando na caminhada solidária dos trabalhadores que buscam a justiça e a
promoção coletiva. É um espaço de reflexão que permite aos militantes partilhar
e aprofundar a fé cristã em ligação com os compromissos no trabalho. Nesse espaço
aprofundam a sua consciência de ser Igreja, à qual pertencem ontologicamente
pelo Batismo, e organicamente ligados a nível do Movimento, através dos assistentes
oficialmente nomeados pela hierarquia. O seu método original é a revisão de
vida: ver – julgar – agir. Através dele, os militantes procuram lançar um olhar
mais profundo e crítico sobre as realidades do mundo do trabalho para aí
descobrirem os sinais vivos de Jesus Cristo Ressuscitado e do Reino de Deus em
germinação.
O tema requer atenta reflexão. O
trabalho foi inventado para o homem e não o homem para o trabalho. Não pode
transformar-se um meio de sustento pessoal e familiar, uma fonte de realização
pessoal e de dignificação da pessoa humana e um instrumento de produção e de
distribuição de riqueza num mecanismo de escravização humana e de refinada
precariedade.
“Vale mais quem Deus ajuda do que quem
muito madruga” é o adágio repleto de sabedoria popular. E é preciso acreditar
que a economia, no sentido nobre do termo, concilia várias formas de
socialização e pode, se bem regulada, amentar os objetivos de gestão e de
produtividade.
Lutar pelo domingo de trabalho não
impreterível, porque não?
2023.03.03 – Louro de Carvalho
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