Foi publicada a Portaria n.º 86/2023, de
27 de março, que procede à alteração das regras de distribuição
eletrónica dos processos nos tribunais judiciais e nos tribunais administrativos
e fiscais. Ou seja, regulamenta a Lei n.º 55/2021, de 13 de agosto, e a Lei n.º
56/2021, de 16 de agosto, que preveem “novos mecanismos de controlo da distribuição
eletrónica dos processos judiciais e dos processos da jurisdição administrativa
e fiscal, remetendo para o Governo a sua regulamentação”.
Esta regulamentação é incompreensivelmente
tardia. Com efeito, a duas leis, remetem-na para o Governo, fixando-lhe prazo
de 30 dias. E, apesar de ambas, segundo o que as próprias estabelecem, entrarem
em vigor 60 dias após a sua publicação (contando o prazo da primeira a partir
do dia 16 de agosto e o da segunda a partir do dia 17), cada uma delas
estabelece que a regulamentação deve entrar em vigor com a respetiva lei. Por
isso, criou-se, por omissão, uma anomalia legislativa.
E, por mais que enfatizem a dificuldade da
aplicabilidade da lei, mercê da falta de regulamentação ou da complexidade do
funcionamento dos tribunais, uma regulamentação vinda a lume com quase dois
anos de atraso e mais de dois nos seus efeitos, é inadmissível e poderia levar
línguas viperinas a ver no atraso outras intenções, no que, pessoalmente, não
creio.
Na verdade, a portaria em causa entrará em vigor “45 dias após a data da sua
publicação” (prazo a contado a partir do dia 28 de março), mas o disposto no
artigo 4.º (sobre a publicidade dos algoritmos da distribuição) “produz efeitos
quatro meses após a data de entrada em vigor da presente portaria”.
Este imbróglio da vigência dá razão aos magistrados
que alegavam, perante a defesa de Sócrates, que o novo ordenamento da
distribuição dos processos não estava em vigor (e ainda não está). E só
produzirá pleno efeito em setembro. Portanto, não era verdade que alguma norma
das ditas leis pudesse ser aplicada diretamente, já que as duas remetem para
regulamentação o todo, não apenas parte.
A falta de regulamentação atempada da Lei
n.º 55/2021, de 13 de agosto, paralisou, ao menos, o processo judicial do
ex-primeiro ministro. Coerente
com a estratégia que vem seguindo desde que os recursos contra a decisão
instrutória de Ivo Rosa começaram a chegar aos tribunais superiores, Pedro
Delille pediu a recusa do coletivo presidido por Raquel Lima, porque só o nome
daquela desembargadora foi sorteado, enquanto Micaela Rodrigues e Madalena
Caldeira foram escolhidas pela sua antiguidade no Tribunal da Relação de Lisboa
(TRL). Dizia o causídico: “Enquanto não
houver sorteio de todos os juízes, não aceitamos nenhum coletivo. Vamos pedir a
recusa porque isto é pura e simplesmente inaceitável.”
A defesa de Sócrates entende que todos os nomes devem ser
sorteados, na observância da lei que deveria ter sido regulamentada pelo
Governo “em 30 dias”, o que só agora aconteceu. Todavia, os tribunais entendiam
que a lei não estava em vigor e só sorteavam o relator, sendo os adjuntos
nomeados. Sócrates, não concordando, tem apresentado sucessivos pedidos de
recusa, que travaram, por exemplo, o início do seu julgamento.
Pronunciado por Ivo Rosa pelos crimes de branqueamento e
falsificação de documentos, em abril de 2021, Sócrates recorreu para o TRL, que
sorteou uma juíza e nomeou as outras para apreciar o pedido. Uma delas
declarou-se impedida por ter tomado uma decisão na Operação Marquês, e Sócrates
recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) para afastar estas juízas,
alegando que não foram sorteadas. O recurso foi distribuído ao conselheiro
Lopes da Mota no verão de 2022, que se declarou impedido, pois fora suspenso 30
dias por ter, alegadamente, pressionado os procuradores do processo Freeport,
em que Sócrates foi investigado. O pedido de Lopes da Mota foi distribuído ao
coletivo presidido pela conselheira Leonor Furtado, e a defesa do ex-primeiro-ministro
(ex-PM) pediu o seu afastamento, por falta de sorteio de todos os membros. O
conselheiro Ernesto Vaz Pereira observou: “Os motivos invocados não configuram
qualquer base factual para a recusa, não constituem e não podem legalmente
constituir fundamento de recusa, e o pedido formulado apresenta-se como
manifestamente infundado.”
Porém, Sócrates recorreu da decisão de Pereira, pedindo o seu
afastamento, e o pedido foi indeferido pela conselheira Conceição Gomes, que
também foi alvo de um pedido de afastamento por parte do ex-PM, decidido,
novamente, por Ernesto Vaz Pereira. Assim, o STJ ainda não decidiu quem vai
determinar se Sócrates tem ou não razão em pedir o afastamento do coletivo do
TRL que deveria resolver se vai ou não a julgamento pelos crimes por que foi
pronunciado.
Ao recurso do ex-PM contra os crimes apontados por Ivo Rosa
junta-se, no TRL, o recurso do MP sobre os crimes constantes na acusação e que
Ivo Rosa apagou no despacho de não pronúncia. E Sócrates pediu, novamente, o afastamento
do coletivo sorteado/nomeado por este tribunal, o que provocará novo atraso. O
primeiro recurso está no TRL desde o final de 2021.
Segundo Mónica Quintela, deputada do PSD, “falta definir os
critérios do sorteio”, ou seja, o algoritmo a utilizar, e “decidir a presença
de um representante da Ordem”. “Esta é uma lei fundamental, como se viu pela
Operação Lex, com processos distribuídos à mão, e o Governo não faz nada. A
ministra da Justiça diz que vai mudar a lei, mas não faz nada”, afirmou Quintela.
O gabinete da ministra diz que a regulamentação “implica a
introdução de novos procedimentos e requer modificações extensas no sistema de
suporte à atividade dos tribunais” e que o Governo “tem estado a avaliar a
oportunidade de revisitar algumas soluções”. Portanto, iria mudar a lei, apesar
de se rever “efetivamente” nela. E a sua regulamentação seria feita quanto
antes.
Enquanto, para uns, a vontade do legislador tem de prevalecer,
embora seja mais prático não considerar a lei em vigor por não estar regulamentada
(a situação é de ilegalidade por omissão do Governo), para outros, a execução
da lei depende da aprovação do regulamento, sem o qual não é possível aplicar
as normas ao sorteio do coletivo nos tribunais superiores, sendo duvidoso que
estas normas sejam autoexequíveis, mercê das especificidades do processo de
distribuição.
Entretanto, é de referir que Sócrates foi detido em 2014 e
ainda não foi julgado. Os crimes de falsificação começam a prescrever em 2024.
Ou se age ou se perderá tudo.
***
A questão da regulamentação da distribuição eletrónica foi um dos temas do
congresso dos juízes, a 16, 17 e 18 de março, na Madeira. E o presidente da
Associação Sindical de Juízes Portugueses aludiu, implicitamente, ao processo
que envolve o ex-PM, no qual já foram submetidos mais de duas dezenas de
pedidos de afastamento dos juízes, pela falta de regulamentação da lei aprovada
no verão de 2021. “Sra. Ministra, aquela lei tem de ser regulamentada
imediatamente, não só porque o que lá está nos parece acertado, mas para acabar
com estas situações de verdadeira chicana processual”, disse Manuel Soares, ante
a ministra da Justiça, Catarina Sarmento e Castro.
E o tema chegou ao último debate parlamentar do dia 22 de março, com a
Iniciativa Liberal a questionar António Costa sobre o risco de prescrição de
milhares de processos pela ausência da regulamentação sobre o sorteio dos
juízes. E, em resposta, o primeiro-ministro garantiu que a portaria estava “para
publicação muito em breve em Diário da República”.
Segundo a portaria, os trabalhos de preparação da regulamentação começaram
“logo após a sua publicação”, tendo sido feito o levantamento das condições dos
tribunais e reconhecendo-se a necessidade de desenvolvimentos informáticos
relevantes para cumprir os novos procedimentos.
A
distribuição dos atos processuais é efetuada eletronicamente, pelo sistema
informático de suporte à atividade dos tribunais, não obstando a que se proceda
a classificação manual prévia dos atos processuais, quando não for possível
efetuar automaticamente tal classificação.
A
distribuição eletrónica é efetuada uma vez por dia, nos dias úteis, em horário
fixo a definir pelo presidente do tribunal, sem prejuízo de haver distribuições
extraordinárias quando a urgência do processo o justifique. É efetuada por
tribunal, exceto no caso dos tribunais de comarca, em que é efetuada por
núcleo. E o tribunal publica a hora da distribuição ordinária na área de
serviços digitais dos tribunais, acessível no endereço eletrónico
https://tribunais.org.pt.
Os
intervenientes nas distribuições, incluindo as extraordinárias, são designados
assim: o presidente do tribunal designa um juiz para presidir e um substituto,
para os casos de impedimento daquele; o magistrado do Ministério Público (MP)
coordenador ou o magistrado do MP que assegure a coordenação do MP nos
tribunais superiores designa um magistrado do MP para assistir e um substituto,
para os casos de impedimento daquele; o administrador judiciário ou o
secretário do tribunal superior designa um oficial de justiça para secretariar
e um substituto, para os casos de impedimento daquele; e a Ordem dos Advogados
pode designar um advogado para assistir e um substituto, para os casos de
impedimento daquele.
Havendo
necessidade de proceder a distribuição extraordinária, a hora e o local são
comunicados, logo que possível, pela secretaria à qual incumba designar os
intervenientes.
Antes do
início da operação de distribuição, o oficial de justiça informa os
intervenientes do local onde podem ser consultadas as decisões, as
deliberações, os provimentos e as orientações que condicionam as operações de
distribuição efetuadas naquele tribunal.
As decisões,
as deliberações, os provimentos e as orientações que condicionam as operações
de distribuição são publicadas e atualizadas pelo presidente do tribunal na
área de serviços digitais dos tribunais, conservando-se o seu histórico.
Finda a
operação, o sistema apresenta os resultados e, por determinação do juiz
presidente, é desencadeada, no sistema informático, nova operação, ficando
consignado em ata o fundamento, quando: forem distribuídos processos a juízes
impedidos de neles intervir; ou se verificar alguma irregularidade ou erro.
Nestes casos, a nova operação de distribuição abrange os processos e juízes
relativamente aos quais se verificou a situação que a justifica e, no primeiro
caso, o sistema informático não permite que os processos sejam novamente
distribuídos aos juízes impedidos.
Cabe ao juiz
que preside declarar a conclusão das operações de distribuição.
A publicação
dos resultados da distribuição por meio de pauta é efetuada, às 17 horas de
Portugal continental, na área de serviços digitais dos tribunais, durante o
período de seis meses.
A ata
documenta: data da distribuição e horas do início e do fim; nome e a função dos
intervenientes; operações de distribuição efetuadas; impedimentos
identificados, motivos e processos abrangidos; atribuição de um processo a um
juiz e fundamentos legais; e informações a consignar. Os resultados de cada
operação de distribuição constam em anexo à ata.
Declarada a
conclusão da distribuição, a ata é assinada pelo juiz, pelo magistrado do MP,
pelo oficial de justiça e pelo advogado. Os algoritmos utilizados nas operações
de distribuição são descritos em página informática de acesso público do
Ministério da Justiça.
No prazo de
quatro meses a contar da data de entrada em vigor da portaria são
progressivamente disponibilizadas novas funcionalidades que permitam praticar,
ou agilizar a prática, dos atos previstos na presente, nomeadamente a
elaboração da ata em referência.
As operações
de distribuição e registo podem ser objeto de auditoria periódica pelo Conselho
Superior da Magistratura e pelo Conselho Superior dos Tribunais Administrativos
e Fiscais, mediante solicitação. E a aplicação deste regime é avaliável por uma
entidade independente, após o decurso de seis meses a contar da
disponibilização das funcionalidades previstas.
***
Distribuição
eletrónica assistida por vários intervenientes, operação de correção, registo e
publicitação de resultados, disponibilização de novas funcionalidades,
auditoria periódica e possibilidade de uma avaliação por uma entidade
independente, para melhoria, são elementos conferidores de credibilidade
acrescida ao novo regime.
2023.03.27 – Louro de Carvalho
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