No dia 11 de março, na Madeira, treze militares
(sargentos e praças) recusaram-se a embarcar no navio patrulha NRP ‘Mondego’
para cumprir a missão de acompanhar um navio russo que estava em trânsito ao
largo de Porto Santo, invocando falta de condições de segurança, designadamente
uma avaria num dos motores e o não funcionamento de um gerador elétrico.
Esta posição levou a Marinha a considerar que os treze
operacionais “não cumpriram os seus deveres militares, usurparam funções,
competências e responsabilidades não inerentes aos postos e cargos respetivos”.
Com efeito, no dizer, do Almirante Gouveia e Melo, Chefe de Estado-Maior da
Armada (CEMA), a competência para avaliar as condições de segurança do
patrulheiro é do seu comandante ou do imediato.
Porque a situação pode configurar infração
disciplinar, internamente, a Marinha anunciou que iria avançar com processos
disciplinares aos treze militares. Os
factos estão a ser apurados, vindo a disciplina e consequências resultantes a
ser aplicadas em função disso. E, pela
suspeita de os militares terem incorrido em ilícito criminal, o caso foi
participado à Polícia Judiciária Militar (PJM), que os vai inquirir a 20
de março, a partir das 10 horas, em processo externo à Marinha.
De
acordo com um documento elaborado pelos militares em questão, a 11 de março, à
noite, o ‘Mondego’ recebeu ordem para “fazer o acompanhamento de um navio russo
a norte do Porto Santo”, quando as previsões meteorológicas “apontavam para
ondulação de 2,5 a 3 metros”.
Segundo
os militares, o próprio comandante do NRP ‘Mondego’
“assumiu, perante a guarnição, que não se sentia confortável em largar com as
limitações técnicas” do navio.
Entre
as limitações técnicas aduzidas pelos militares, constava, designadamente, o
facto de um motor e um gerador de energia elétrica estarem inoperacionais. E o
navio “não possui um sistema de esgoto adequado para armazenar os resíduos
oleosos a bordo, ficando estes acumulados nos porões, aumentando significativamente
o risco de incêndio”, como explicam.
Em
nota enviada à agência Lusa, a
Marinha confirmou que o NRP ‘Mondego’ estava com “uma avaria num dos motores”,
mas que a missão a desempenhar era “de curta duração e
próxima da costa, com boas condições meteo-oceanográficas”, que
o comandante do patrulhão reportou que, “apesar das limitações mencionadas,
tinha condições de segurança para executar a missão”; e que a decisão do
comandante do navio foi tomada, apesar de o Comando Naval (COMNAV) lhe ter dado
liberdade para abortar a missão, “em caso de necessidade superveniente”.
A
Armada sublinhou que a “avaliação das prioridades das missões e [do] estado do
navio segue uma linha hierárquica bem definida e estruturada”, cabendo “apenas
à Marinha e à sua linha hierárquica, a definição de quais os navios em
condições de cumprir com as missões atribuídas”.
No atinente
às limitações técnicas do NRP ‘Mondego’, a Marinha refere que os navios de
guerra “podem operar em modo bastante degradado sem impacto na segurança”, pois
têm “sistemas muito complexos e muito redundantes”. “Essa avaliação, mais uma
vez, pertence à linha de comando e à Superintendência do Material, enquanto
entidade técnica responsável. Ambas as entidades não consideraram estar o navio
inseguro para navegar”, diz a Marinha, acrescentando que “as guarnições dos
navios são treinadas para operar em modo degradado, estando preparadas para
lidar com os riscos inerentes, o que faz parte da condição militar”.
***
A 16
de março, na Madeira, após ter falado à guarnição, o CEMA saiu, visivelmente irritado,
do NRP ‘Mondego’, a dizer aos jornalistas que “este ato vai ficar registado na
nossa história”. A “revolta da Bounty, na Royal Navy, em
1789”, também ficou, fez questão de lembrar.
“Um ato de insubordinação nas Forças Armadas é um ato muito grave.
A hierarquia existe porque há necessidade de disciplina e não o contrário. Há
necessidade de as forças militares serem altamente disciplinadas e, quando
quebramos a disciplina, o que estamos a quebrar é a essência da Forças Armadas
e nós, militares, não o podemos permitir”, continuou, garantindo: “Não vou
permitir que isto se alastre ou que possa passar despercebido um ato destes.”
O
almirante assumiu ter ido à Madeira para dizer, “olhos nos olhos”, aos
militares insubordinados, que, após este encontro, saem do Funchal para Lisboa,
sendo substituídos por outros militares que vão para o Funchal. “O que vim aqui dizer é que não são admissíveis atos de
indisciplina”, prosseguiu, adiantando que “será um juiz de
direito a julgar estes comportamentos”.
Ainda
assim, apontou, “face ao ruido externo, fiz questão de mandar uma inspeção
independente” avaliar se tinha havido algum erro na cadeia de comando. E deixou
implícito que o comando tinha razão: “O navio não está nas melhores condições,
mas os navios militares, face às suas redundâncias, operam mesmo com
limitações.”
Porém,
a questão não é se os militares tinham ou não razões para a recusa. “Parte
destes militares acharam que estavam em risco. Não lhes compete a eles fazer
essa avaliação. Essa avaliação é da linha de comando”, disse o CEMA,
garantindo: “Não mandamos missões impossíveis.”
Não
sabendo a quem serve o episódio, foi perentório: “Ao país não serviu, à Marinha não serviu e a estes homens, que
serão vítimas do seu próprio ato, também não serviu.” Mas
acusou quem gosta de sensacionalismo e que está a usar nas redes sociais, para
ampliar o sensacionalismo, um vídeo, que “tem, no mínimo, um ano e meio e não é
deste navio”. O caso “não manchará a nossa reputação, mas será notado pelos
nossos aliados”, admitiu o almirante, que, ao ser questionado sobre o que fazia
o navio russo perto de Porto Santo, disse que isso deveria ser perguntado aos
russos. Não obstante, deixou no ar a ideia de que podem andar a verificar cabos
submarinos.
Já
sobre os meios que faltam à Marinha, o CEMA remeteu para o poder político. “Não
fui eleito democraticamente para decidir sobre isso, quem foi eleito para
decidir sobre isso foi o Governo”, afirmou, vincando também aqui a cadeia de
comando: “Eu informo. Com o que o país me atribui começa o meu dever de
otimizar todos esses recursos para cumprir a missão da Marinha.”
***
Aos amotinados a bordo do “Mondego”, o almirante disse, que apesar de
“limitado”, o navio tinha “condições” para navegar. “Que interesses os senhores
defenderam?”, questionou.
Falando para os 29 militares da guarnição perfilados no convés, assumiu que
“podem estar em causa, para além das infrações disciplinares, questões de foro
criminal”. Ou seja, lembrou que podem ir presos após julgamento. “Não vos consigo entender, nem perceber
bem as vossas motivações e certamente a vossa interpretação peculiar do dever
de tutela e de disciplina”, disse.
Antes de agradecer aos militares que se mantiveram ao lado do comandante,
pediu os amotinados que pusessem as mãos na “consciência” para “o ato que
praticaram”, porque “a Marinha não pode
esquecer, ignorar, ou perdoar atos de indisciplina, estejam os militares
cansados, desmotivados ou preocupados com as suas próprias realidades”.
E reforçou: “O vosso ato será certamente lembrado por muitos anos nesta
Marinha.”
Lançou, então, a pergunta com significado político: “Que interesses os senhores defenderam? Os
da Marinha não foram certamente, os vossos muito menos”. Será alusão implícita
às associações militares de sargentos e praças, que têm defendido estes
militares e que, nas altas patentes, são associadas ao Partido Comunista
Português (PCP).
Ante a suspeita de ter o navio a operar com risco para a tripulação, o CEMA
frisou que os técnicos concluíram que o relatório da equipa técnica enviada à
Madeira concluiu o contrário: “A
resposta clara e inequívoca que recebi, ontem [15 de março], foi que sim, que a
avaliação do comando do navio, nas condições em que o COMNAV definiu, a missão
era realizável em segurança”.
“A Marinha não envia os nossos navios e
guarnições para missões impossíveis. Nem colocamos em risco as
nossas guarnições de forma fútil, ligeira, irresponsável, ou mesmo ignorante”,
vincou, acrescentando uma frase sentenciosa que deixa implícita cobardia
daquele ato: “Devem confiar no seu comandante e
ser corajosos”. Entretanto, a bordo de um navio com gente
desgastada em estado de prontidão há 500 dias, reconheceu a “disponibilidade para sacrifícios e
incómodos, a resiliência ao cansaço físico e psíquico”, que resulta “na
ausência frequente das famílias”.
O comandante é “o último
responsável pela segurança da sua unidade”, acentuou, recordando que o 1.º tenente Lopes Pires “disse que, apesar de limitado e nas condições
em que lhe foi atribuída a missão”, o navio estaria pronto para a executar. E
zurziu: “Esta avaliação foi feita por quem tinha o dever de a fazer? Por
quem tinha a competência e responsabilidade para tal? A resposta é um rotundo:
Não!” Este grupo de militares “simplesmente
substituiu-se” aos comandantes.
A seguir, mandou recados ao poder político: “Se
estou contente com o Estado da Esquadra? Não! Se estamos a trabalhar
empenhados, todos, em alterar esse estado de coisas? Sim!” Mas não
deu esperanças de que fosse rápido: “Pode o estado da Esquadra mudar
instantaneamente? Não! Requererá muito esforço de todos, muita imaginação,
determinação, paciência e dedicação. Estamos todos empenhados e aqui incluo
necessariamente a tutela.”
E acusou a fuga de informação para as redes sociais, prevendo que as
investigações também irão por aí, dado estar a ser partilhada informação
classificada e sensível para a segurança nacional. “Alguns destes elementos,
após o sucedido, ainda fizeram uma lista das avarias e problemas do navio e
enviaram, sem conhecimento e autorização, para entidades externas à Marinha,
com um intuito, imaginamos nós, de encontrarem apoio para os atos de
insubordinação. Comprometeram a
reserva necessária sobre o estado dos equipamentos militares, aparecendo esses
relatos na rede Whatsaap. Não entendem os senhores o significado do que fazem?”
– interpelou.
***
Em
declarações à Lusa, a 14 de março, o
presidente da Associação Nacional de Sargentos (ANS), Lima Coelho, observou que
as anomalias do navio representavam “grave risco” para a tripulação.
Assegurando
que os elementos em causa já tinham alertado para diversas anomalias do navio,
vincou: “Isto não foi uma crise no momento, foi fruto de muitas situações já vividas
a bordo”. E criticou a posição assumida pela Marinha, frisando que “não se pode
matar o mensageiro”.
“A Marinha mostrou mais vontade em matar o mensageiro do que em
resolver a situação”, criticou, acrescentando:
“Independentemente do posto ou da função que assumimos, temos um dever de
tutela para com os subordinados”.
A
Marinha, como os outros ramos das Forças Armadas tem sofrido limitações nos
orçamentos de operação e manutenção. Em novembro de 2022, o Almirante Gouveia e
Melo tinha mostrado aos deputados da Comissão de Defesa Nacional, que a Armada
tinha menos 30 milhões de euros do que o necessário para fazer a manutenção dos
navios. Com a falta de meios e de pessoal, a consequência tem sido a elevada
rotação das guarnições e o desgaste dos militares.
***
Em março de 2022, o CEMA fez um discurso violento para os fuzileiros – “Não quero arruaceiros na Marinha”
–, na sequência do homicídio de um polícia à pancada. Agora falou duro à guarnição do NRP
‘Mondego. É certo que a disciplina é a cola das Forças Armadas, como bem preconiza,
mas, embora o CEMA deva proceder a atos de suspensão preventiva e, neste caso,
de rendição, deveria manter reserva e, no discurso público, aguardar o resultado
final das investigações, que determinam a responsabilidade disciplinar e ou
criminal de cada um. E, se é certo que todos trabalhamos com falta de meios,
também é certo que “não se fazem omeletes em ovos”.
2023.03.17 –
Louro de Carvalho
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