Os
estudiosos identificam três tipos de motivos da pobreza: o desemprego, a doença
e o divórcio (três D) – situações que envolvem ruturas com impacto na vida
das pessoas e das famílias.
O desemprego
é a mais óbvia, embora haja alguns cambiantes a considerar, nomeadamente o que
respeita à zona difusa entre emprego e desemprego. E o desemprego, além do
próprio, envolve também os membros em idade ativa do agregado familiar, pois há
uma inequívoca dimensão familiar na pobreza e no desemprego. Na verdade, as
dificuldades existentes no mercado de trabalho atiram indivíduos e famílias
para a pobreza e manifestam-se como ruturas.
Para
lá do desemprego e a emparceirar com ele, são exemplo dessas ruturas a quebra
de relações no trabalho com colegas ou com chefias, a precariedade no emprego e
as más condições laborais.
A
seguir ao desemprego, nos motivos que levam à pobreza, vem a doença, desde logo
a doença crónica ou incapacitante (incluindo deficiência) com impactos variados
na capacidade de as pessoas desenvolverem uma atividade laboral, no bem‑estar,
na necessidade de, eventualmente, existir um cuidador (que fica impedido de
exercer outra atividade ou, então fica sobrecarregado) e no acréscimo das
despesas (medicamentos e outros bens de saúde). Assim, a doença de uma
pessoa não é problema meramente individual, pois tem impacto alargado no
círculo familiar.
E,
a par da doença, a morte de familiares constitui um aspeto importante nas
trajetórias de vida, com impacto na harmonia do agregado e no rendimento. Neste
sentido, a morte de um provedor de recursos tem impacto nas dinâmicas de entrada
na pobreza, mormente quando a intensidade laboral do agregado familiar é muito
reduzida.
É
de vincar que a intensidade laboral de um agregado familiar é considerada muito
reduzida, quando os membros adultos trabalham apenas uma fração das horas
mensais disponíveis para trabalhar, designadamente quando há pessoas
desempregadas ou inativas (domésticas ou pessoas com deficiência, por exemplo).
Por
último, vem o divórcio, atualmente, um fenómeno frequente, a que se
equipara, para este efeito, o caso em que o casamento não foi formalizado, mas
em que ocorre a separação definitiva dos casais em união de facto
representa.
O divórcio
próprio ou dos pais é algo que, em situações já de si são de grande
fragilidade, lança facilmente as pessoas na pobreza, pela redução de
rendimentos causada pela separação e pelos seus efeitos em cascata, incluindo a
atividade laboral.
No
entanto, mau grado a sua inegável capacidade para explicar a realidade, esta abordagem
dos três D da pobreza tem evidentes limitações. Na verdade, analisar as
desigualdades sociais a partir da perspetiva da pobreza é uma opção com forte
componente política. Ao abordar a pobreza em termos individuais, minimizam‑se
os fatores políticos, sociais e estruturais que contribuem para a produzir e
reproduzir na sociedade. Por isso, não se pode perder de vista o contexto
social em que o desemprego, a doença e o divórcio têm impacto na vida das pessoas:
a desregulação do mercado de trabalho; as caraterísticas do tecido económico
que favorecem determinados postos de trabalho, segmentados e desqualificados,
mas que têm um papel importante na sobrevivência do sistema como um todo; a
incapacidade do sistema educativo de cumprir as suas promessas de
universalidade; a fragilidade da rede de segurança que o Estado proporciona, em
caso de eventos disruptivos da vida dos indivíduos e das famílias, associados a
perdas de rendimento; as insuficiências do apoio público à conciliação trabalho‑família.
A
crise económica de 2009‑2014 acentuou as desigualdades de género,
particularmente incidentes nas trajetórias de vida das mulheres, sobretudo nas
mais idosas. Também pôs a descoberto, em vários casos, a maternidade como
um fator de exclusão do mercado de trabalho.
Contudo,
os três D não existem só nos processos de produção da pobreza, isto é, na entrada
numa situação de pobreza, mas também estão presentes nos processos da sua
reprodução ao longo da vida dos indivíduos e entre gerações e, até, da sua
intensificação pelo aumento da distância ao limiar de pobreza. Com efeito,
é claro que estes elementos estão presentes na trajetória de vida das pessoas,
agravando situações já de si difíceis ou condicionando fortemente as suas vidas,
reduzindo a sua margem de manobra e tornando as suas possibilidades de sair da
situação de pobreza mais remotas. E, como nos processos de produção de pobreza,
é preciso ter em conta os efeitos contextuais, quer sejam estruturais, mais
associados ao funcionamento da sociedade (incluindo o da economia e o do
Estado), quer sejam conjunturais, como os efeitos associados aos momentos de
crise ou de crescimento económico.
Ainda
sobre a entrada em situação de pobreza, há outro aspeto muito relevante: a
vulnerabilidade. Trata-se de pessoas que estão acima do limiar da pobreza, mas
para as quais qualquer acidente poderá redundar na sua entrada em situação de
pobreza, bem como da sua família. O que distingue as pessoas vulneráveis não é
a relação com o trabalho, a trajetória de emprego e o enquadramento familiar,
mas o facto de terem rendimentos um pouco mais elevados do que as pessoas em
situação de pobreza e de, em regra, não terem sido afetados pelos habituais
fatores disruptivos. Todavia, uma situação de crise económica – como a de 2009‑2014,
a que se iniciou em 2020 (provocada pela situação pandémica) e o atual panorama
inflacionista –, em particular conjugada com um evento crítico associado a
um dos três D, poderá lançá‑las, facilmente, numa situação de pobreza.
Uma
crise económica, surgida de súbito, agrava a situação existencial de pessoas empregadas
com um salário mínimo e até com um salário médio, bem como, por maioria de
razão, a dos pensionistas, cujo poder reivindicativo é nulo.
Resta,
ainda, atentar no caso da pobreza daquelas pessoas que entraram no Mundo sem
qualquer posse de casa, de terra ou mesmo de família – os sem eira nem beira –
sobretudo aqueles que ninguém procura ou aceita para emprego.
Por
outro lado, ter emprego não significa não ser pobre. Com efeito, se o salário
for de miséria (e, no futuro, a pensão de reforma for tão magra como acontece
com a maior parte dos cidadãos), não garantindo a sobrevivência do trabalhador (e
não contribuir para a da família) para o tempo de inatividade, como é o caso da
velhice, a doença prolongada ou o desemprego de longa duração, temos um mercado
de trabalho de pobres e de cada vez mais pobres, a par do grupo mínimo dos cada
vez mas ricos e anafados. E a situação de pobreza gera males físicos e
distúrbios mentais.
***
Os estudos publicados pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFS) e
pela Nova SBE, revelam que ter emprego não é sinal de abandono da pobreza. E João
Pedro Tavares, presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores
(ACEGE), diz que os resultados desta avaliação confirmam a importância da
iniciativa “Semáforo”, já em curso, na fase-piloto, monitorizando cerca de mil
famílias.
O “semáforo”
é uma ferramenta que avalia o estado de situação dos trabalhadores nas empresas
ao nível da pobreza financeira e habitacional e ao nível da saúde, entre outros.
João Pedro
Tavares vê como “um mal menor” a promulgação, pelo Presidente da
Republica, da Agenda do Trabalho Digno, por as medidas fazerem recair sobre as
empresas respostas que deveriam ser dadas pelo Estado, por exemplo, os custos
com a parentalidade e o emprego jovem.
A par do
mérito das iniciativas da ACEGE, é de apontar a transferência da
responsabilidade social da empresa para o Estado por parte de quem pretende
menos Estado. No entanto, é de registar o tom crítico do presidente da ACEGE às
disparidades espelhadas nas diferenças salariais nas empresas portuguesas,
entre os gestores de topo e a os trabalhadores.
Confrontado como uma análise do Banco de Portugal (BdP), segundo a qual o
grupo de trabalhadores mais penalizados pela contenção e pelos cortes salariais
praticados pelas empresas entre 2006 e 2020 é o dos licenciados e dos mestres,
contesta: “Esse é um
grupo diferenciado em termos remuneratórios a cerca de 20% ou 30% acima dos restantes.
Portanto, essa formação superior é uma formação que vale a pena ter e vale a
pena apostar na educação.”
Perante a asserção de que o esbatimento da diferença entre salários, apontada
pelo BdP, acontece por vários motivos, sendo um deles a subida do salário
mínimo, João Pedro
Tavares sustenta que “o
salário mínimo é um problema por si só, não no valor, mas no número de
colaboradores que está a trabalhar, que é cerca de um em cada quatro, que
recebe salário mínimo”. E observa que “o
salário médio não sobe por múltiplos motivos”.
Fiquemo-nos
por uma janela de razões. Muita atividade que enriquece o país é paga a custo
muito baixo. E os lucros das empresas e os dividendos aumentam. Ora, aí os empregadores
devem rever, quanto antes, as suas tabelas salariais. Porém, em muitos casos (e
o Estado está neste âmbito), é difícil pagar o que é justo. Isto sucede pela
magreza de receitas e pelos altos custos da produção e do funcionamento, nas empresas
e na administração pública. O tema tem a ver com o mercado em geral. E as
empresas não conseguiram acompanhar este surto inflacionista, porque muitas
delas têm contratos estabelecidos, não fizeram atualização desses contratos e
remuneram abaixo do que era a inflação.
Ora, daqui
resultou uma perda de poder de compra dos trabalhadores de forma generalizada. Contudo,
há empresas que remuneraram ao nível da inflação, há empresas que atribuem
prémios e que procuram atualizar esses prémios, mas, de facto, não se pode esquecer
que os níveis de pobreza e a disposição do limiar de pobreza em Portugal,
cresceram depois da pandemia, processo que se agravou no último ano, que vinha
numa trajetória relativamente positiva.
Porém, João Pedro Tavares expõe uma situação
complexa: a ACEGE sabe que 30% dos pobres finais são trabalhadores, pelo que
tem em marcha o “Semáforo”, um programa de transformação, de combate e de erradicação
da pobreza.
O projeto torna
visível o invisível, avaliando a situação de cada empresa no seu nível de
pobreza. As famílias ficam ‘semaforizadas’ em amarelo, em verde ou em vermelho.
E as que estão em amarelo ou em vermelho têm acesso a uma rede, assente na rede
da economia social e do setor do Estado – através da Instituições particulares
de Segurança Social (IPSS) e das redes da saúde – que, em coordenação entre
todos, faz a assistência estas famílias, por outro lado, e tenta, por outro,
levar a que seja a família a sair do estado de pobreza. Portanto, não se está a
acudir aos casos mais precários, mas a famílias que, apesar de terem rendimentos,
estão em situação de pobreza.
Não é a empresa
que contacta a rede, pois, à luz da proteção de dados, não pode revelar qual é
a família que está em assistência, mas a família acede a um centro de contacto
e é redirecionada.
E o
presidente da ACEGE, falando da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), defende que
é de juntar a justiça intergeracional e dar novas oportunidades às novas
gerações, constituindo a JMJ uma boa oportunidade para esta reflexão. E atira a
rude informação: “Portugal é um país que nos últimos 20 anos decresceu no
número de postos de trabalho, cerca de 77 mil postos. […] A União Europeia
cresceu [em] 25 milhões de postos de trabalho e a Zona Euro [em] 19 milhões de
postos de trabalho, mas Portugal teve o caminho inverso.” E dita: “Estes são
precisamente os temas de origem que têm de ser debatidos, este é um tema
crucial.”
***
Será pouco?
Porém, se o Estado, todas as associações empresariais e todas as ordens
profissionais fizerem um pouquito, o panorama compor-se-á. Porém, melhor é
mudar de paradigma.
2023.03.31 – Louro de Carvalho
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