O texto da proposta de lei do pacote “Mais Habitação”, com as medidas
criadas pelo governo para fazer face à crise habitacional, foi publicado pelo
governo e encontra-se em consulta pública desde 3 de março. O envio de
participações, no âmbito desta consulta pública, faz-se exclusivamente pelo
portal ConsultaLEX (consultalex.gov.pt) e pressupõe a inscrição na plataforma
dos cidadãos, empresas ou associações. E o texto pode ler-se em ANEXOS
DA CONSULTA: LEGISLAÇÃO “MAIS HABITAÇÃO”.
O documento a apresentar à Assembleia da República prevê, entre outras
medidas, que mais de metade dos
membros de um condomínio pode determinar o encerramento de um alojamento local (AL)
no próprio prédio, o que parece vir ao encontro da jurisprudência dos tribunais
superiores.
É importante conhecer as principais novidades e os novos pormenores conexos
com as medidas anunciadas pelo Governo e que, passado o momento da mera apresentação
em PowerPoint, estão agora plasmadas
em texto. Parece que a opinião pública não gostou de ver o primeiro-ministro a
fazer o anúncio apoiado num suporte digital, quando aceitam os gráficos, os quadros
e as tabelas dos comentadores políticos, nomeadamente de Marques Mendes e de Paulo
Portas. Não querem um governante atualizado!
***
Estabelecendo “medidas com o intuito de garantir habitação para todos”, a
lei cria um regime
de arrendamento, para subarrendamento, para famílias com dificuldades no acesso
à habitação no mercado; cria um apoio à promoção de habitação a custos
controlados para arrendamento acessível; e aumenta os solos disponíveis para
habitação pública ou a custos controlados.
Para tanto, procede à 4.ª alteração à lei de bases
gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de
urbanismo, aprovada pela Lei n.º 31/2014, de 30 de maio, alterada pela Lei n.º
74/2017, de 16 de agosto, e pelos Decretos-Leis n.os 3/2021, de 7 de
janeiro, e 52/2021, de 15 de junho; à 4.ª alteração ao Regime Jurídico dos
Instrumentos de Gestão Territorial, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 80/2015, de
14 de maio, alterado pelos Decretos-Leis n.os 81/2020, de 2 de
outubro, 25/2021, de 29 de março, e 45/2022, de 8 de julho; e à alteração ao
regime jurídico da urbanização e edificação (RJUE), aprovado pelo Decreto-Lei
n.º 555/99, de 16 de dezembro, na atual redação.
Procede ao alargamento do âmbito de isenções de
fiscalização prévia do Tribunal de Contas, através da 14.ª alteração à Lei n.º
98/97, de 26 de agosto, na atual redação; à revogação das autorizações de
residência para atividade de investimento, através da 10.ª alteração à Lei n.º
23/2007, de 4 de julho, na atual redação, que aprova o regime jurídico de
entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território
nacional; ao incentivo à transferência de fogos em alojamento local para o
arrendamento habitacional, através da 5.ª alteração ao Decreto-Lei n.º
128/2014, de 29 de agosto, alterado pelo Decreto-Lei n.º 63/2015, de 23 de
abril, pelas Leis n.ºs 62/2018, de 22 de agosto, e 71/2018, de 31 de dezembro,
e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29 de janeiro, que aprova o regime jurídico
da exploração dos estabelecimentos de alojamento local; ao reforço da
verificação das condições de habitabilidade dos fogos arrendados ou
subarrendados, através da primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 89/2021, de 3
de novembro; à fixação do valor das rendas nos novos contratos de arrendamento;
e à proteção dos inquilinos com contratos de arrendamento anteriores a 1990 e à
garantia da justa compensação do senhorio, através da 12.ª alteração à Lei n.º
6/2006, de 27 de fevereiro, que aprova o Novo Regime de Arrendamento Urbano
(NRAU).
E aprova um conjunto de medidas fiscais, através: i) da
criação da contribuição extraordinária sobre o alojamento local; ii) da
alteração ao Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA), aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de dezembro, na atual redação; iii) da
alteração ao Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS),
aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 442-A/88, de 30 de novembro, na atual redação;
iv) da alteração ao Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), aprovado em
anexo ao Decreto-Lei n.º 215/89, de 1 de julho, na sua redação atual; v) da
alteração ao Código do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), aprovado pelo
anexo I ao Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de novembro, na atual redação; vi)
da alteração ao Código do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas
de Imóveis (IMT), aprovado pelo anexo II ao Decreto-Lei n.º 287/2003, de 12 de
novembro, na atual redação; vii) da alteração ao Código do Imposto do
Selo (IS), aprovado pela Lei n.º 150/99, de 11 de setembro, na atual redação; e
viii) da 2.ª alteração ao Decreto-Lei n.º 159/2006, de 8 de agosto,
alterado pelo Decreto-Lei n.º 67/2019, de 21 de maio.
A mesma lei, em anexos, aprova o regime jurídico do
arrendamento para subarrendamento para famílias com dificuldades no acesso à
habitação no mercado e o regime jurídico do apoio à promoção de habitação a
custos controlados para arrendamento acessível.
***
Além dos incentivos já conhecidos, para que os proprietários que têm as casas
em regime de AL as passem para regime de arrendamento habitacional (através,
por exemplo, da taxa de zero em IRS), ressalta, agora, a possibilidade de, num prédio urbano, o condomínio
poder decidir pelo término do regime de alojamento local. Basta, para
isso, que mais de metade dos elementos do condomínio o decida em sede de
assembleia de condóminos.
No artigo 9.º da proposta, pode ler-se que, em caso de a atividade de AL
ser exercida numa fração autónoma de edifício ou parte de prédio urbano
suscetível de utilização independente, “a assembleia de condóminos, por
deliberação de mais de metade da
permilagem do edifício, pode opor-se ao exercício da atividade de alojamento
local na referida fração”.
Exceto nas regiões autónomas, até
31 de dezembro de 2030 fica suspensa a emissão de novos registos de AL,
“com exceção das zonas para alojamento rural”.
Os AL existentes caducam na mesma data, tendo, depois, a duração de cinco
anos “contados a partir da data da comunicação prévia”. Porém, será necessária
autorização por parte da "câmara
municipal territorialmente competente”.
As rendas antigas vão ficar congeladas em definitivo – e fora
do NRAU – mas, segundo pacote legislativo em causa, vão ser atualizadas consoante a inflação e não consoante o rendimento bruto dos
inquilinos, como sucede hoje. Isto é, mesmo que o rendimento da pessoa
não aumente, o senhorio pode decidir um aumento da renda até ao valor da
inflação.
A compensar os senhorios pelos
entraves aos aumentos de renda, o governo propõe que fiquem isentos de tributação em sede de IRS
sobre os rendimentos prediais, bem como em sede de IMI. E terão uma
compensação monetária “pelas rendas não cobradas aos arrendatários”, cujo
montante e forma de cálculo ainda não estão definidos.
Como anunciado pelo governo, também as novas rendas terão tetos máximos
para aumento. A proposta de lei – em consulta pública – esclarece que a renda inicial dos novos contratos de
arrendamento para fins habitacionais não pode exceder o valor da última renda
praticada sobre o mesmo imóvel, num contrato anterior, mais a variação de, no
máximo, 2% (atribuída à inflação).
Sobre a tributação das rendas no IRS não há novidades. Segue apenas a
concretização do que já tinha sido anunciado. Os rendimentos prediais são
tributados à taxa liberatória de 25% que será mais baixa em função da duração
do contrato: entre 5 e 10 anos paga 15%, entre 10 e 20 anos pagam 10% e acima
de 20 anos pagam apenas 5%.
No caso de casas que transitem de AL, há uma isenção de IRS ou de impostos
sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), até 2030 desde que “o registo
do estabelecimento de alojamento local tenha ocorrido até 31 de dezembro de
2022” e o novo contrato de arrendamento com “respetiva inscrição no Portal das
Finanças ocorra até 31 de dezembro de 2024”.
Como o governo anunciou, os municípios devem identificar, nas suas zonas
geográficas, as casas devolutas com condições de habitabilidade e que
possibilitem o imediato arrendamento. E cabe ao município, após a devida
identificação, apresentar uma proposta de arrendamento do imóvel ao
proprietário. Por sua vez, o
proprietário terá de responder à proposta em 10 dias, mas, se não responder,
poderá usufruir de mais 90 dias para dar um uso ao imóvel. Só ao fim
desse tempo é que o município avançará para o arrendamento forçado.
De fora do conceito de imóvel
devoluto ficam, entre outros, os que se
destinem a “segundas habitações,
habitações de emigrantes ou habitações de pessoas deslocadas por
razões profissionais, de formação ou de saúde”. Para ser considerada devoluta,
a casa tem de estar desocupada durante, pelo menos, um ano, sendo indícios
disso a ausência de contratos de serviços (água, luz, telecomunicações) ou de
consumos, ou a existência de consumos baixos.
Outra das novidades é uma inversão de marcha do governo quanto à isenção de
mais-valias (impostos) em relação à venda de imóveis ao Estado. Assim, determina-se
que os
proprietários que vendam casas ao Estado ficam isentos de tributação sobre as
mais-valias decorrentes dessas operações. Excetua-se quem tem “domicílio fiscal em
país, território ou região com regime fiscal mais favorável, constante de lista
aprovada por portaria do membro do governo responsável pela área das finanças”
isto é, entidades com sede
nos “paraísos fiscais” ou “offshores”.
***
Da leitura do texto depreende-se que o governo limou algumas arestas, como
anteviu o ministro da Economia, António Costa Silva, e fá-lo-á mais, ante os
contributos da consulta em curso.
Não adianta invocar a Constituição (CRP) para defender, com unhas e dentes,
a iniciativa privada ou a propriedade privada, constitucionalmente protegidas iuxta modum. Desde que a lei ordinária
não tome medidas desajustadas ou desproporcionadas, não haverá atropelo à lei
fundamental. Por isso, considero precipitada a hipótese avançada do chefe de
Estado de submeter a lei à apreciação do Tribunal Constitucional. E as
autarquias clamam que o assunto é com elas. Porém, é de questionar sobre o que
têm andado a fazer ou a omitir no campo da habitação. Nem vale a pena aduzir
que o IMI é municipal, pois a tributação (génese/modificação) é competência
parlamentar.
O artigo 61.º, n.º 1 estabelece que “a iniciativa económica privada exerce-se
livremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta
o interesse geral”, dentro da velha máxima “Salus Reipublicae lex suprema esto”.
E o artigo 62.º, n.º 1 estabelece que “a
todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida
ou por morte, nos termos da Constituição”. E o seu
n.º 2 acautela que “a requisição e a expropriação por
utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante
o pagamento de justa indemnização”.
Ora, não há expropriação, mas impulso à
rendibilização. E não é do espírito da CRP a legitimação da especulação imobiliária
ou a consideração da casa como mercadoria acessível só a carteiras bem
entumecidas. E responda o Estado aos legítimos anseios dos que lutam por vida digna
e justa (sum cuique reddere), que os
populismos deixarão de ter razão de ser e não convencerão ninguém.
2023.03.04 –
Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário