Pequim marcou o primeiro aniversário da invasão da Ucrânia pela Rússia (24
de fevereiro) com a apresentação de um plano de paz para a região, em doze
pontos.
A proposta do plano surgiu um dia depois
de a China ter optado pela abstenção numa resolução da Assembleia Geral da
Organização das Nações Unidas (ONU) a apelar ao fim do conflito, resolução que,
aprovada com 141 votos a favor, sete contra e 32 abstenções, inclui a exigência
da saída do exército russo de território ucraniano.
A proposta da China foi divulgada a 24 de fevereiro, mas
tinha sido anunciada a 17, por Wang Yi, o diplomata chinês que tem a pasta dos
Negócios Estrangeiros, na Conferência de Segurança de Munique, e visa, segundo
o responsável, alcançar “uma iniciativa de paz” que acabe com a guerra na
Ucrânia, no cumprimento da Carta das Nações Unidas.
Com o anúncio do plano de paz, a China do Presidente Xi
Jinping reitera a intenção de ser neutra na guerra, apesar de continuar a
bloquear os esforços da ONU para condenar a invasão.
O documento, cujo teor a Ucrânia dizia não conhecer, ecoa
as alegações russas de que os governos ocidentais são os culpados pela invasão
e critica as sanções adotadas contra a Rússia. Com efeito, a China atribuiu a
responsabilidade pelas sanções a outros “países relevantes” sem os nomear, mas
referindo que esses países “devem parar de abusar das sanções unilaterais” e “fazer
a sua parte na redução da crise na Ucrânia”, no que tem razão, em meu entender.
Na reunião de Munique, o secretário de Estado dos Estados
Unidos da América (EUA), Antony Blinken, expressou ceticismo sobre a posição de
Pequim, mesmo antes da divulgação do plano, avançando ter informações de que a
China está “a considerar fornecer apoio letal” à Rússia, alegação que Pequim
considerou ser “uma difamação”.
O presidente ucraniano assumiu que gostaria
de uma maior aproximação da China à Ucrânia. “Gostaríamos de nos encontrar com
a China", apontou Volodymyr Zelensky numa conferência conjunta com o
primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchéz, em Kyiev, a 23 de fevereiro.
E Zhanna Leshchynska, a principal
diplomata de Kiev em Pequim, citada pela Bloomberg,
vincou: “Claro que a Ucrânia gostaria de ver a China ao seu lado […]. Neste
momento, vemos que a China não está a apoiar os esforços ucranianos […]. Esperamos
que eles também insistam com a Rússia para parar a guerra e retirar as suas tropas
do território da Ucrânia.”
O plano apresentado por Pequim vai ao encontro do que
vários diplomatas chineses tinham já manifestado. É mais brando para com
Moscovo, não explica em que ponto ficam os territórios já anexados pela Rússia
e muitos
dos 12 pontos são muito gerais e não contêm propostas específicas.
Em todo caso, a China propõe: o respeito
pela soberania dos países; o abandono da mentalidade da Guerra Fria; o fim das
hostilidades; o regresso das conversações de paz; a resolução da crise
humanitária; a proteção dos civis e dos prisioneiros de guerra; a salvaguarda
das centrais nucleares; a redução dos riscos estratégicos; o encorajamento às
exportações de cereais; o fim das sanções unilaterais; a manutenção da
estabilidade das cadeias de abastecimento; e a promoção da reconstrução
pós-conflito.
Como se vê, a proposta pede um cessar-fogo, negociações de paz
e o fim das sanções à Rússia.
Sem mencionar a Rússia ou a Ucrânia, Pequim defende que a
soberania de todos os países deve ser mantida, embora não concretize como é que
isso funcionaria para a Ucrânia, tendo em conta que a Rússia já anexou várias
regiões do país, a começar pela Crimeia, em 2014.
A proposta também condena a “mentalidade de Guerra Fria”,
expressão usada frequentemente pela China quando se refere aos EUA ou à aliança
militar entre EUA e Europa, ou seja, a Organização do Tratado do Atlântico
Norte (NATO). E considera que “a segurança de uma região não deve ser alcançada
pelo fortalecimento ou expansão de blocos militares”.
Segurança radioativa e implementação da
carta das Nações Unidas são outros dois dos pontos que o território ucraniano
quer ver assegurados.
Acreditando ser pouco provável que
os EUA, a União Europeia (UE) e o Reino Unido apoiem o plano, Neil Thomas,
analista sénior do grupo Eurásia, em declarações à CNN, dizia: “A proposta
chinesa devia ter terminado no primeiro ponto, que pede o respeito pela
soberania dos países. Esta guerra pode terminar já amanhã, se a Rússia parar de
atacar a Ucrânia e retirar as suas tropas.”
E tinha razão o diplomata. Os EUA e a UE
já declararam não aceitar o plano. Ao invés, a UE decretou novo pacote de
sanções à Rússia. E o Kremlin, que se mostrou, a princípio, muito interessado
no plano já declarou rejeitá-lo e diz não ver o fim da gueira na Ucrânia, por
agora.
A China está “a tentar ter o melhor de dois mundos”,
afirmou o secretário de Estado dos EUA, a 26 de fevereiro, em declarações à NBC. “Publicamente, apresenta-se como um
país a lutar pela paz na Ucrânia, mas, no modo privado, tem fornecido, nos
últimos meses, assistência não letal que serve diretamente para ajudar e
encorajar o esforço de guerra da Rússia”, atirou Blinken.
O apoio da China à Rússia tem sido amplamente retórico e
político. Pequim ajudou a impedir esforços para condenar Moscovo na ONU, mas
não há provas públicas de que esteja a fornecer-lhe armas, embora os EUA digam
que fornece “apoio não letal”, que pode aumentar e evoluir.
Na Conferência de Segurança de Munique, Blinken disse que
os EUA receiam que a China esteja a fornecer armas à Rússia. “Temos informações
que nos preocupam de que [os chineses] estão a considerar fornecer apoio letal
à Rússia”, afirmou, acrescentando ter expressado ao enviado chinês à reunião, o
diplomata Wang Yi, que “isso seria um problema sério”.
Por sua vez, o secretário-geral da NATO adiantou, no dia 23
de fevereiro, que viu alguns sinais de que a China pode estar pronta para
fornecer armas e alertou que, a concretizar-se, o país estaria a apoiar uma
violação do direito internacional.
No entanto, o ministro da Defesa da Ucrânia, Oleksii
Reznikov, expressou dúvidas sobre a disposição da China de enviar ajuda letal à
Rússia. “Acho que, se a China os ajudar, não será com armamento. Será com
alguns tipos de roupas”, disse Reznikov a 27 de fevereiro, talvez a tentar
deitar água na fervura.
“O tom básico e a mensagem fundamental da política são
bastante pró-russos”, considerou Li Mingjiang, professor de política externa
chinesa e segurança internacional da Universidade Tecnológica de Nanyang, em
Singapura, citado pela agência norte-americana de notícias AP.
***
O plano de paz vem num momento de pausa dos esforços
diplomáticos. No entanto, é de recordar que, em novembro de 2022, enquanto os líderes das
20 maiores economias centravam, durante dois dias, a atenção no que é um dos
maiores problemas na Europa, a guerra na Ucrânia, o presidente ucraniano, apresentou
aos líderes europeus dez pontos, essenciais, aos olhos do país, para um acordo
de paz. “Se não existirem ações concretas para restaurar a paz, significa
que a Rússia simplesmente vos quer enganar novamente”, afirmou em
videoconferência, garantindo que não haverá um Minsk-3 – alusão aos tratados de Minsk 1
e 2, dantes assinados para obter o cessar-fogo entre as partes.
Para a Ucrânia, há dez soluções que
devem ser asseguradas para que a paz volte ao bloco europeu: segurança
radioativa e nuclear, segurança alimentar, segurança energética,
libertação de todos os prisioneiros e deportados, implementação da carta das
Nações Unidas, retirada das tropas russas e cessar das hostilidades, justiça,
proteção ambiental, prevenção da escalada militar e a confirmação do fim da
guerra oficial.
O líder ucraniano frisava que a retirada
das tropas contempla também a Crimeia e a região de Donbass – territórios
anexados pela Rússia. “A Crimeia é parte da Ucrânia, não se trata apenas de
estado dentro de outro estado, é parte do nosso país e da nossa soberania”,
defendeu.
Zelensky desafiou os líderes a agirem e adotarem aquelas que são “soluções práticas
e eficazes”.
E os líderes do G20 comprometeram-se com medidas urgentes contra a crise alimentar.
O acordo de exportação de cereais, assinado
em julho entre a Ucrânia, a Rússia, a ONU e a Turquia seria prolongado por 120
dias, como anunciou, nessa altura, o líder ucraniano. “O acordo de cereais
será prolongado durante 120 dias”, escreveu Zelensky, na rede social Twitter, apontando que se aguardava o
anúncio oficial dos parceiros. Entretanto, a continuação do acordo foi confirmada
por António Guterres, secretário-geral da ONU.
O acordo fora
temporariamente suspenso em outubro, após um ataque ucraniano à Crimeia,
mas foi retomado logo depois.
***
A China tem feito declarações contraditórias sobre a sua
posição, dizendo que a Rússia foi provocada pela expansão da NATO para leste, reivindicando
neutralidade em relação ao conflito.
Antes do ataque da Rússia, Xi e Putin compareceram à
abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno do ano anterior, em Pequim, e
divulgaram uma declaração segundo a qual os dois países passariam a ter “uma
amizade sem limites”. Desde então, a China tem ignorado as críticas ocidentais
e reafirmado a sua promessa para com Moscovo. Putin já disse que espera que Xi
visite a Rússia nos próximos meses, mas a China ainda não confirmou a viagem.
E, agora, depois de mostrar alguma simpatia pelo plano de paz que Pequim propôs,
Putin acabou por rejeitá-lo.
As forças russas e chinesas realizaram exercícios conjuntos
desde o começo da invasão, o mais recente dos quais com a Marinha sul-africana
numa rota na costa sul-africana.
***
Foi um erro estratégico a forma precipitada como a UE e os EUA
rejeitaram a iniciativa chinesa, ainda antes de a Rússia o fazer. Porém, é de realçar
a atitude de Zelensky, que mostrou abertura a Pequim. O líder ucraniano revelou
que sabe ler, como poucos, a opinião pública e o xadrez político internacional
em que se movimenta. Ao invés do sucedido em tempos, passou a dar a entender
que jamais será ele a rejeitar qualquer tentativa de paz.
Após
a inação europeia aquando da invasão russa da Crimeia e do Donbass, quase todas
as ações europeias e americanas relativas à guerra na Ucrânia eram vistas como positivas
por muitos. Agora, a rejeição liminar de um plano de paz constitui um grave
erro estratégico e diplomático.
Joe
Biden começou por não o rejeitar, mas, logo a seguir, os EUA ridicularizaram a
iniciativa de Pequim e repetiram o erro de Bruxelas. A Rússia jamais aceitaria
um moderador que tivesse apoiado ou viesse a apoiar a Ucrânia, mas Zelensky, ao
contrário da UE e dos EUA, abriu a porta à moderação chinesa. O presidente da
Ucrânia, ao invés de rejeitar o interesse de uma potência como a China, que se
propõe ajudar a construir a paz, mostrou abertura. Com efeito, a China não é o
Irão e muito menos a Bielorrússia, é um país crucial no xadrez internacional e
tem sido dos mais moderados apoiantes de Putin, ou um dos mais tolerantes. Por
isso, Zelensky viu aqui uma oportunidade de caminhar para a paz.
Jamais
o documento inicial coincide com a versão final após negociação das partes. Por
isso, os 12 pontos – genéricos ou mais especificados – não passam de um ponto de
partida, mas que é essencial. É certo que o plano chinês não é inocente nem desinteressado,
mas não é despiciendo. E a sua rejeição liminar e ridicularização permite
duvidar da boa-fé dos EUA, da UE e da Rússia.
2023.03.02 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário