Noticiou
o Público, em título de primeira
página, que o Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa,
desclassificou os documentos que faltavam sobre a guerra colonial. Porém, lido
o conteúdo do texto noticioso, verifica-se algo diferente e que estávamos sob
um equívoco político e, sobretudo, de termos.
O
equívoco político, do meu ponto de vista, residia no facto de a Assembleia da
República (AR) ter discutido e rejeitado, a 23 de janeiro deste ano, um projeto
de Resolução do Bloco de Esquerda (BE), que recomendava a desclassificação de
todos os documentos militares até 1975, em particular os respeitantes à guerra
colonial.
Afinal,
a desclassificação já estava feita, quando alguns defendiam que só a Armada
ainda tinha alguns (poucos) documentos por desclassificar e outros se insurgiam
contra a classificação de documentos considerados essenciais para o
enquadramento da Historia política de Portugal.
Por
outro lado e como decorre do exposto, bem como da fresca notícia do Público, o PR não acabou, agora, de
desclassificar documentos, apenas declarou que “boa parte da documentação” relacionada com o período da guerra colonial
“já está acessível ao público ou veio a ficar acessível nos últimos anos”,
vincando que recebe, periodicamente, pedidos de investigadores para a
consultar. “Eu verifico se realmente está preenchido o prazo [a
partir do qual é permita a consulta] e normalmente autorizo o acesso aos
documentos”, explicou, esclarecendo que isso ocorre com “todas as
administrações da guerra colonial ou guerra ultramarina”, que terminou há 49
anos.
Como refere
o mesmo jornal Público, segundo fonte oficial da
Presidência da República, os documentos foram desclassificados em junho de
2019, inclusive as atas do Conselho Superior de Defesa (CSD) do período
compreendido entre abril de 1968 e fevereiro de 1974.
Terá
a obsessão pela transparência ou pela separação de poderes levado a AR a um
debate inútil, por extemporâneo, por parte dos deputados?
Há,
pois, diferença entre desclassificar e facultar o acesso à investigação. O que
sucede, agora, é que os documentos estão digitalizados e o acesso a eles é mais
fácil.
O PR falava
no Funchal, onde participou no encerramento do Congresso dos Juízes Portugueses
e na inauguração da delegação da Madeira da SEDES – Associação para o
Desenvolvimento Económico e Social, e reagiu à notícia de que a Presidência da
República desclassificara os documentos que faltavam sobre a guerra colonial,
nomeadamente as Atas do Conselho Superior de Defesa do período marcelista
(1968-74), esclarecendo o que, efetivamente, está em causa.
O Público, que refere que o ex-Presidente
da República Cavaco Silva se recusou a desclassificar o último lote, mas
Marcelo Rebelo de Sousa avançou com o processo em junho de 2019, regista:
“Houve um investigador, já há quatro anos, que pediu esses documentos e tinha
direito, uma vez que já tinha passado o prazo de reserva em relação ao acesso a
esses documentos”, explicou, referindo que, “na altura, foi autorizado”. “Pelos
vistos, foi sabido agora”, ironizou.
O chefe
Estado frisou que recebe, periodicamente, pedidos de investigadores que querem
ter acesso aos documentos, “para saber como foi a política portuguesa, a
ligação a países estrangeiros, com países amigos e países adversários, como é
que correram algumas reuniões do Conselho da Defesa”.
A comissão de
acesso aos documentos administrativos tinha interposto vários recursos para a
Presidência da República para que os documentos fossem desclassificados ainda
no tempo de Cavaco Silva, algo que o chefe de Estado, entre 2006 e 2016, sempre
recusou fazer.
Isto
acontecia ao arrepio da lei, a qual estabelece que a classificação dos
documentos como os do segredo de Estado não pode ultrapassar os 30 anos. Com
efeito, o n.º 3 do artigo 4.º do “Regime do Segredo de Estado”, aprovado pela
Lei Orgânica n.º 2/2014, de 6 de agosto, na atual redação, estabelece que “o prazo para a duração da classificação ou para a
respetiva reapreciação não pode ser superior a quatro anos, não podendo as
renovações exceder o prazo de 30 anos, salvo nos casos expressamente previstos
por lei”.
Porém, muitas
vezes, a consulta tem esbarrado em recusas que não têm qualquer base legal.
Agora, a documentação está
digitalizada e mais disponível para consulta (já o estava noutros suportes, mas
com maior dificuldade). Segundo a TSF,
estes documentos relatam a guerra colonial durante o marcelismo e mostram as
discussões entre o presidente do conselho de ministros, os chefes militares e o
ministro da Guerra (aliás, ministro da Defesa Nacional: o governo de Marcello
Caetano não tinha ministro da Guerra).
“O que
estamos agora a falar talvez sejam coisas mais ao nível político ou
diplomático, as relações com o exterior” – diz o tenente-coronel na reserva
Pedro Marquês de Sousa, investigador da história militar, citado pela TSF, para quem a documentação agora
disponível é de utilidade limitada. “O tema a esse nível já é suficientemente
bem conhecido, até porque outros investigadores também fizeram o mesmo que eu,
já tiveram acesso à documentação nos arquivos de Paris e de Londres”,
acrescenta.
Em todo o
caso, os interessados têm agora à disposição um longo e novo acervo sobre um
período crítico da história da guerra colonial e que não estava ainda
disponível.
***
A este respeito, o Expresso online, vincando que se trata do último lote de documentos referentes à guerra
colonial ainda
classificado como secreto, revela que o
levantamento desta classificação fora pedido, em 2013, durante o segundo
mandato presidencial de Cavaco Silva, por José Matos, investigador
independente em História Militar, o que foi recusado. O seu sucessor, Marcelo Rebelo de
Sousa, pronunciou-se pela desclassificação dos ficheiros em 2019 e estes, uma
vez digitalizados, passam, a partir de agora, a ser consultáveis pelos
investigadores na página eletrónica da Presidência da República. Por outro
lado, aponta vários mistérios desse período da história, que
poderão ser esclarecidos.
O efeito da desclassificação é, antes de mais, o de um ato simbólico, porque
deixa de haver documentos oficiais classificados relativos à guerra colonial.
Em termos práticos, poderá não haver grandes novidades factuais, mas permitir-se-á
cruzar informações com outras fontes já conhecidas – referentes ao citado
período 1968/74 –, e proporcionar leituras políticas sobre o relacionamento
entre o então primeiro-ministro Marcelo Caetano e as chefias militares.
Alguns dos eventuais cruzamentos de informações poderão lançar novas luzes
sobre operações militares bem conhecidas realizadas naquele período.
É o caso, entre outras, da “Operação Nó Górdio”, lançada por Kaúlza de Arriaga no
Norte de Moçambique, de que resultou a destruição de bases da Frente de
Libertação de Moçambique (Frelimo) e o alargamento da guerrilha a toda a metade
setentrional do território (1970); da
Operação Mar Verde, dirigida por Alpoim Calvão, que visava a mudança de
regime na Guiné Conacri, através do desembarque em Conacri de tropas
portuguesas e de oposicionistas a Sekou Touré, e cujo saldo prático foi a
libertação de prisioneiros portugueses (1970); ou da
Operação Ametista Real, levada a cabo a partir da Guiné-Bissau e
que passou pelo ataque à base do Partido Africano para a Independência da Guiné
e de Cabo Verde (PAIGC) de Cumbamori, em território do Senegal (1973).
E deste período há, pelo menos, três mistérios por esclarecer, na
totalidade ou em parte: o desaparecimento, em
1971, da tripulação do cargueiro “Angoche”, ao largo da costa norte
de Moçambique (encontrado à deriva, com fogo a bordo, mas vazio); o assassinato de Amílcar Cabral, líder
do PAIGC, na Guiné-Conacri (1973); e os
pormenores das operações de comandos no norte de Moçambique, que levaram ao
massacre de centenas de civis, em Wiriamu, em 1972.
Há ainda outro efeito importante, embora indireto, desta desclassificação
de documentos, que tem a ver com o modo como os portugueses lidam com a herança
de 13 anos de guerra em África e com o recalcamento dos traumas passados, bem
como com o seu debate sem peias ou complexos.
Ao invés dos Estados Unidos da América (EUA), que fizeram, no cinema e na
literatura, o luto do Vietname, o tema guerra colonial é, em Portugal, mais
exceção do que regra.
No cinema, apenas se destacam:
“Um Adeus Português” (João Botelho, 1986), “Non ou a vã glória de mandar
(Manoel de Oliveira, 1990) ou “Os Imortais” (António-Pedro Vasconcelos, 2003).
E, na literatura de ficção, para lá da presença recorrente da guerra na obra
de António Lobo Antunes, alguns
casos isolados como “O Elogio da Dureza”
(2021), de Rui Azevedo Teixeira.
Porém, houve enormes avanços nos livros de investigação histórica e
divulgação, desde a Resenha Histórico-Militar das Campanhas de Áfricas
(1961-1974), em diversos volumes, da Comissão para o Estudo das Campanhas de
África, criada no Estado-Maior do Exército, passando pelas obras dos
historiadores militares Aniceto Afonso e Carlos Matos Gomes, até às antologias
coordenadas por Fernando Rosas/Mário Artur Machaqueiro (“O Adeus ao império”,
edição Nova Vaga, 2017) ou por Miguel Cardina/Bruno Sena Martins (“Às Voltas
com o Passado”, edição Tinta da China, 2018), uma e outra incluindo trabalhos
de investigadores, tanto portugueses como angolanos, moçambicanos,
cabo-verdianos ou guineenses.
***
Enfim, há que promover o debate aberto sobre o passado colonial, sem o
esquecer e sem o enaltecer, mas analisando-o criticamente, situando-o no
contexto histórico e político e assumindo-o com os seus contravalores e, porque
não, também com alguns valores, nomeadamente no quadro do encontro de culturas.
2023.03.18 – Louro de Carvalho
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