Francisco tem sido o papa impulsionador de grandes mudanças na Igreja
Católica no atinente ao aumento da presença e da relevância das mulheres na
Igreja, inclusive na Cúria Romana. Mas, segundo a esmagadora maioria das
mulheres católicas, muito há ainda por fazer.
Segundo um estudo internacional apresentado na Santa Sé, a 8 de março, Dia
Internacional da Mulher, oito em cada dez mulheres (82%) consideram que
deveriam ser incluídas em todos os níveis de liderança e dois terços gostariam
de ver outras “mudanças radicais”. E são ainda mais as que pensam que o poder
clerical causa danos à Igreja Católica (85%). Com efeito, há “uma preocupação
significativa com os abusos de poder cometidos por clérigos e com os danos espirituais
daí resultantes” (89%). Não faz sentido falar de clérigos do “sexo masculino”,
pois frades não padres e freiras não integram a clerezia, ao invés do que referem
os historiadores.
O estudo, levado a cabo por uma equipa de investigadores/as australianos/as,
coordenada por Tracy McEvan, teóloga e socióloga da religião, da Universidade
de Newcastle, Kathleen McPhillips, socióloga da religião, género e saúde
mental, e Miriam Pepper, socióloga da religião, baseou-se em
entrevistas a 17.200 mulheres católicas de 104 países diferentes – a maior
pesquisa alguma vez feita junto de mulheres católicas.
A metodologia assentou num inquérito online em oito
idiomas (inglês, espanhol, alemão, italiano, francês, polaco, mandarim e
português), aberto entre 8 de março e 26 de abril de 2022.
A amostra, não-aleatória, resulta de uma rede de coletivos (dioceses,
paróquias, redes e organizações de mulheres) que, em países e culturas
diferentes, divulgaram o questionário e apelaram ao seu preenchimento.
Foi a organização internacional Catholic Women Speak (CWS) que decidiu
avançar com o inquérito, em resposta ao convite do Papa para contributos para o
Sínodo dos Bispos 2021-2024. A preocupação de dar a conhecer à Igreja o sentir
e pensar das mulheres católicas relativamente à instituição de que fazem parte
levou a organização a convidar a equipa de investigação da Universidade de
Newcastle, juntamente com a professora emérita Tina Beattie, da Roehampton
University UK, para elaborar e executar o estudo e apresentar o relatório ao
Vaticano.
O relatório final, intitulado International
Survey of Catholic Women; Analysis and Report of Findings (Inquérito
Internacional sobre as Mulheres Católicas: Análise e Relatório das Conclusões),
de cerca de 90 páginas, inclui um sumário, dados mais relevantes e
recomendações.
Mais de três quartos das entrevistadas (79%) consideram que as mulheres
devem poder fazer a homilia na missa e apontam um forte apoio à “plena inclusão
das mulheres na liderança da atividade pastoral, litúrgica e de governação, bem
como em funções [que envolvem] tomada de decisões”, o que inclui a admissão aos
ministérios ordenados, em pé de igualdade com os homens. E, entre as suas
preocupações, contam-se, ainda, a “promoção de agendas políticas” por parte dos
padres e a “falta de transparência no governo da Igreja”.
A esmagadora maioria das inquiridas respondentes (88%), o que é de
assinalar, afirma, com vigor, a importância que tem, para elas, a sua
identidade católica, traduzida na “importância que dão à sua fé”, na
“centralidade da Eucaristia para as suas vidas, e a sua participação ativa nas
paróquias e comunidades eclesiais”. Simultaneamente, exprimem “elevados níveis
de frustração ou de insatisfação” conexos com as suas experiências, associados,
em particular, aos abusos sexuais, espirituais e físicos em contextos eclesiais
e entendidos como uso indevido ou até abuso de poder e expressão do
clericalismo. E muitas praticam a fé, apesar da preocupação, da frustração e da
insatisfação com a instituição.
Muitas (80%) chamam a atenção para a falta de responsabilização e de transparência
na liderança e governação eclesial, sobretudo na gestão da hierarquia de
alegações de abuso sexual. Este aspeto foi considerado “uma barreira à
participação na vida da Igreja”.
Relativamente ao que importa fazer e ao que é prioritário, mais de quatro
em cada cinco participantes (84%) defendem a necessidade de reformas na Igreja.
Contudo, um grupo bastante mais reduzido teme que as mudanças redundem num
“compromisso com as tendências seculares” – acatólicas ou mesmo anticatólicas. Apoiam
fortemente o cuidado com a linguagem inclusiva quanto ao género, nas práticas
litúrgicas e nos documentos da Igreja, bem como a promoção da “inclusividade”
como “dimensão central de uma ética cristã” (82%). Assim, manifestam
preocupação com os marginalizados pelos católicos, pela teologia, pela doutrina
e pela prática litúrgica, incluindo os católicos LGBTIQ+, divorciados,
católicos monoparentais, embora divirjam quanto ao que significa ou implica
esse acolhimento.
Entre outros aspetos que são fonte de preocupação, contam-se: o maior
respeito pela liberdade de consciência na tomada de decisões no foro sexual e
reprodutivo; a maior ação e empenho por parte da liderança da Igreja
relativamente à doutrina social católica (83%), particularmente no respeitante
a questões conexas com a mudança climática, com a justiça económica e com a pobreza;
e o problema da justiça económica nos assuntos da Igreja, incluindo a má gestão
financeira, a corrupção, a exploração e a falta de remuneração adequada das
pessoas que trabalham para a Igreja, tanto leigas como religiosas.
E o inquérito aponta a “urgente necessidade” de um modelo de Igreja “menos
hierárquico e autoritário”, com maior colaboração, diálogo, e responsabilidade
partilhada entre clero e laicado.
***
Compreendendo dados quantitativos e qualitativos, a pesquisa incluiu
perguntas abertas, que resultaram em contributos significativos. E Tracy McEwan
salienta que, ao invés do espectável, há “respostas duras”, não só das
entrevistadas mais jovens, mas também da parte de muitas mulheres mais velhas. Por
exemplo, muitas com mais de 70 anos apoiam o casamento entre pessoas do mesmo
sexo e a pregação da homilia por mulheres, enquanto o número de apoiantes é
muito menor na faixa etária entre os 18 e os 40 anos.
Mesmo quando têm lutas consideráveis com as instituições católicas, quase
90% das mulheres porfiam que a identidade católica é importante, pelo que
praticam contras todos os incómodos.
“Eu agarro-me à Igreja com unhas e dentes, por causa da eucaristia e apesar
de muitos dos seus clérigos”, responde uma entrevistada do Reino Unido. “Ser
mulher na Igreja é difícil – caminhamos na linha de ser membros valiosos da
sociedade, mas sem voz em muitos elementos da Igreja. Estou a tentar encontrar
o caminho para ser uma mulher moderna e alguém que se encaixe dentro do papel
disponível”, afirma uma participante australiana.
Os resultados apresentam algumas variações de país para país. Enquanto a
Austrália aparece como mais conservadora do que a média global em vários
indicadores (74% dizem que querem reformas, comparativamente à média global de
84%), a Irlanda e a Espanha surgem como os Estados onde o desejo de mudança é
mais forte.
Com base nos dados da pesquisa, a equipa responsável pelo estudo fez várias
recomendações, nomeadamente: um maior acesso das mulheres à liderança pastoral
e organizacional significativa, incluindo a ordenação de mulheres; a promulgação
de diretrizes para eliminar a violência sexual, espiritual e física; novos
requisitos relativos à denúncia dos perpetradores às autoridades; e a
implementação de medidas transparentes e responsáveis quanto às práticas de
gestão.
O essencial dos resultados foi debatido, ainda em versão preliminar, em
encontros da CWS, no final do último verão, andes de serem enviados para o
secretariado-geral do Sínodo, em Roma. “A resposta esmagadora que tivemos é um
indicador claro de como as mulheres católicas silenciadas se sentiram”, disse
Tracy McEwan, avançando que o trabalho já provocou impacto global e chamou a atenção
de altos funcionários do Vaticano envolvidos no Sínodo, que convidaram a equipa
a apresentar as conclusões pessoalmente.
Algumas mudanças têm vindo já a verificar-se nos últimos anos,
particularmente durante o pontificado de Francisco. Em 2022, as mulheres
representavam 23,4% da população ativa no Vaticano, contra apenas 19,2% em
2013. E o aumento de colaboradores do sexo feminino é mais pronunciado, se
olharmos para a Cúria romana, onde a proporção de mulheres aumentou de 19,3
para 26,1% nos últimos 10 anos, significando que mais de um em cada quatro
funcionários da Santa Sé agora é uma mulher: em números absolutos, 812 de
3.114.
Este crescimento da presença de mulheres tem sido elogiado, mas uma dezena
de funcionárias entrevistadas pela AFP lamentam – sob anonimato – as atitudes
condescendentes e adversas que enfrentam, principalmente entre os clérigos.
“Ainda há um longo caminho a percorrer”, sublinha uma das que trabalha, há
dez anos, na Santa Sé. Outra entrevistada denuncia um “teto de vidro e uma
atitude globalmente paternalista nos corredores”, com a visão antiga da “mulher
sensível, doce, que encontramos refletida nos discursos do papa”. “Às vezes
temos a sensação de sermos consideradas estagiárias. São pequenos gestos, uma
mão no ombro, uma falta de consideração, comentários quase diários sobre o
físico ou a roupa”, acrescenta.
Outras mulheres ainda, mães algumas delas, lamentam ter sido relegadas para
papéis secundários.
Entretanto, no Dia Internacional da Mulher, Francisco destacou, na
audiência geral, o importante contributo feminino para uma “sociedade mais
humana”. “Penso em todas as mulheres: agradeço pelo seu empenho na construção
de uma sociedade mais humana, através da sua capacidade de apreender a
realidade com um olhar criativo e um coração terno. Este é um privilégio das
mulheres”, disse, despertando os aplausos dos milhares de pessoas presentes.
Francisco aceitou escrever o prefácio do livro “More Women’s Leadership for
a Better World” (Mais lideranças femininas para um mundo melhor), lançado a 10
de março. No seu texto, denuncia que “a violência contra a mulher é uma
ferida aberta, resultante de uma cultura patriarcal e machista de opressão”, e
conclui: “devemos encontrar o tratamento para curar esta praga e não deixar as
mulheres sozinhas”.
A obra, que resulta de uma investigação multidisciplinar sobre o papel das
mulheres para um novo modelo de desenvolvimento cultural e social, inclui um
texto de Isabel Capeloa Gil, reitora da Universidade Católica Portuguesa, sobre
a liderança das mulheres nestas instituições académicas.
Enfim, as mulheres precisam de vez e voz na sociedade e na
Igreja. Talvez a Igreja tenha maior responsabilidade na mudança (não faz
sentido, teologicamente, vedar, o ministério ordenado às mulheres), mas a
sociedade tem de crescer em dignificação e em igualdade.
2023.03.10 – Louro de Carvalho
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