O Presidente da República (PR), Marcelo Rebelo de Sousa, promulgou, a 22 de
março, o decreto da Assembleia da República (AR) que introduz alterações ao
Código do Trabalho (CT), no âmbito da Agenda do Trabalho Digno, por ter sido viabilizado
pelo maior partido da oposição, o Partido Social Democrata (PSD) e pelos seus “numerosos
aspetos positivos”, mas não sem críticas à falta de consenso de certas medidas
junto dos patrões e à possibilidade de algumas mudanças virem a ter o efeito
contrário ao inicialmente previsto pelo Executivo.
Por conseguinte, estas alterações entrarão em vigor no primeiro dia útil de
abril, como previsto.
Reagindo à promulgação, a ministra do Trabalho, Solidariedade
e Segurança Social (MTSSS), Ana Mendes Godinho, vincou o “compromisso
para a valorização dos trabalhadores”.
Em nota da Presidência da República, o chefe de Estado diz ter levado em linha de conta “os numerosos aspetos positivos
do diploma” e o facto de ter sido viabilizado por “uma larga maioria do
Parlamento, que votou a favor ou se absteve, designadamente o maior partido da
oposição”. Contudo, sublinhou que aprovou as alterações, apesar de o decreto “se
afastar, nalguns aspetos, do acordo assinado pelo Governo com os parceiros
sociais”. Por outro lado, advertiu que o decreto “consagra certas soluções que
podem, porventura, vir a ter, no mercado de trabalho, um efeito contrário ao
alegadamente pretendido”, mas não disse quais.
Por exemplo, estão em causa matérias,
como a limitação do recurso a outsourcing
(externalização de
serviços) por parte de empresas que hajam feito despedimentos coletivos ou
extinguido o posto de trabalho nos 12 meses anteriores; o reforço das
restrições impostas à contratação temporária e a termo, bem como ao recurso à
prestação de serviços; a limitação do número de renovações dos contratos temporários,
que passam de seis para quatro (já foram duas); a redução ou extinção do
período experimental, atualmente de 180 dias, nos casos em que o anterior
contrato a termo (com outro empregador) tenha tido duração igual ou superior a
90 dias.
Os patrões contestam também o aumento
das compensações por despedimento coletivo dos atuais 12 dias para 14, por ano
completo de trabalho; a impossibilidade de renúncia do trabalhador aos créditos
devidos por cessação de contrato (a não ser por acordo firmado em tribunal); o
aumento do valor da retribuição dos estágios profissionais extracurriculares
dos atuais 480 euros, valor do Indexante de Apoios Sociais (IAS), para não
menos que o salário mínimo nacional, 760 euros em 2023. São alterações que,
segundo as confederações patronais, criam maior rigidez nas relações de
trabalho, têm impacto negativo na sua política remuneratória e limitam a sua
liberdade de gestão, pelo que põem em causa o cumprimento do acordo de
competitividade e rendimentos, assinado em outubro de 2022. E causam efeitos
que o PR parece temer, a avaliar pela nota que acompanha a promulgação, mas que
Mendes Godinho desvaloriza.
A ministra salienta o reconhecimento
da importância que deve ter para a sociedade “este compromisso para a
valorização dos jovens no mercado de trabalho, dos trabalhadores, que é crítica
para o nosso futuro coletivo”. Disso “depende também a nossa capacidade de
transformar agora esta Agenda para o Trabalho Digno, numa agenda de crescimento
para as empresas e trabalhadores”, diz a governante.
No atinente à contestação dos
empresários, que mereceu a oposição de um conjunto de cidadãos, entre os
quais juristas, investigadores, sindicalistas e membros de comissões de
trabalhadores, Mendes Godinho lembra que, “neste momento, o ativo mais valioso
e mais procurado no mundo é o talento”, pelo que tudo o que se fizer para criar
uma confiança nos trabalhadores, valorizando-os no mercado de trabalho, é
condição crítica para atrair talento e fixá-lo em Portugal”. E esse “é também
um instrumento poderoso para as empresas no momento que vivemos”.
***
Foram precisos dois anos para que o Governo fechasse este seu dossiê
bandeira, a Agenda para o Trabalho Digno. A partir de abril, entrarão em vigor
as mais de 150 alterações ao CT que o voto do Partido Socialista (PS) fez
aprovar na AR, com vista ao combate à precariedade e ao reforço da proteção
social dos trabalhadores. Só que as alterações parecem só agradar ao Executivo.
E, tendo fechado este dossiê, o primeiro-ministro arrisca ter de reabrir outro,
o do Acordo de Rendimentos, assinado com os patrões e a União Geral dos
Trabalhadores (UGT), em outubro.
Estão em causa normas que, segundo os patrões,
beliscam a sua liberdade de gestão empresarial e comprometem a capacidade de
executar o acordo. A hipótese de renegociar o compromisso para a valorização
dos salários é um cenário provável. Os patrões tentaram apelar ao PR para que
travasse a entrada em vigor da lei, alegando inconstitucionalidade, mas este
remeteu o tema para António Costa, com quem reuniram, antes da tomada de
decisões, mas não saíram convictos.
As cinco confederações empresariais com assento na
concertação social – Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP),
Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP), Confederação Empresarial
de Portugal (CIP), Confederação Portuguesa da Construção e do Imobiliário
(CPCI) e Confederação do Turismo de Portugal (CTP) – contestam as alterações ao
CT, por incluírem normas não discutidas com os parceiros sociais e que
“adulteram o acordo de rendimentos e competitividade”, além de limitarem a
autonomia de gestão das empresas.
Além das referidas normas em causa (pelo acréscimo de
encargos par o empregador), os patrões contestam o excessivo poder que a lei dá
à Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT).
As normas contestadas constituem variáveis que “dificultam
a vida às empresas”, “não foram aprovadas em concertação social”, mas, “o
Governo insistiu nesta legislatura em apresentá-las”, acrescentando novos
pontos que “prejudicam as empresas”, aponta João Vieira Lopes, presidente CCP e
porta-voz do Conselho Nacional das Confederações Patronais (CNCP), cenário que,
segundo alguns líderes das confederações, legitima a reavaliação das premissas
e metas firmadas no acordo de rendimentos assinado com o Governo e a UGT, em
outubro.
Fonte da Presidência da República salientava, aquando
da contestação patronal de fevereiro, a “duplicidade” registada entre o PS e o
Governo na matéria, nomeadamente quando o grupo parlamentar socialista aprovou
propostas do Bloco de Esquerda (BE), que, inicialmente, parecia não aceitar e
que são apontadas pelos patrões como pondo em causa o compromisso assinado com
o Executivo. Porém, desde logo, o PR transmitiu uma certeza: pela sua parte, a
nova legislação laboral não iria parar ao Tribunal Constitucional (TC), pois Marcelo
Rebelo de Sousa não detetou inconstitucionalidades no diploma e deu a entender
que não o vetaria. Restava aos patrões ver se o que António Costa teria a dizer,
para evitar a renegociação do acordo de rendimentos.
A esquerda considera que há progressos em matérias
relevantes, mas que as alterações deveriam ter ido mais longe, sobretudo na
indemnização por despedimento, na caducidade das convenções coletivas ou na revogação
dos cortes impostos pela troika. E a direita diz que se foi longe de mais, com
normas que retiram flexibilidade ao mercado de trabalho e ignoram a concertação
social.
O isolamento do Governo na AR também tem respaldo fora
do hemiciclo. Do lado dos sindicatos, a Confederação Geral dos Trabalhadores
Portugueses (CGTP) defende que a revisão legislativa não garante o reequilíbrio
nas relações de trabalho, nem os direitos dos trabalhadores. E os especialistas
em direito laboral falam em obsessão legislativa, questionam a
constitucionalidade de algumas normas e denunciam o fomento da conflitualidade
laboral que o diploma pode criar.
Considerando os efeitos práticos no combate à
precariedade, no reforço da proteção social e na valorização dos salários, os
economistas duvidam da sua eficácia. Pedro Martins, professor da Nova SBE e
ex-secretário de Estado do Emprego, fala em plano de ação desajustado, com
enfoque excessivo no quadro legal e regulamentar, “quando sabemos que a
resolução destes problemas depende, sobretudo, da resiliência da economia e do
seu crescimento”.
As plataformas digitais – para quem foi criada uma
presunção de laboralidade específica, que abre caminho à integração de milhares
de estafetas nas suas estruturas – queixam-se de não terem sido ouvidas. E
entre os estafetas e motoristas, principais beneficiários das novas regras,
muitos temem que, na prática, a lei se traduza numa perda de rendimentos.
Os patrões recordam que o Governo avançou com as
alterações sem o acordo dos parceiros sociais e foi mais além, aprovando normas
não foram discutidas com patrões nem sindicatos.
Os limites
à contratação temporária e a termo, bem como o recurso à prestação de
serviços, constituem uma limitação à capacidade de adaptação das empresas a
situações previstas na lei, como o aumento repentino de produção. E a impossibilidade de empresas que tenham
feito despedimento coletivo ou extinguido posto de trabalho nos 12 meses
anteriores recorrerem ao outsourcing é limitativa da
liberdade de gestão empresarial, pois externalizar serviços pode ser uma forma
de garantir a sustentabilidade da empresa.
A redução ou extinção do
período experimental para desempregados de longa duração ou para trabalhadores que tenham
tido contrato anterior, com outro empregador, superior a 90 dias, não garantem
ao empregador atual que o profissional contratado se adeque à função, mesmo que
já tenha tido outros empregadores. E o aumento das compensações por
despedimento representa um aumento de encargos para a empresa, a
par dos que decorrem de outras regras da lei.
***
Entretanto,
a 15 de março, um grupo de 53 cidadãos – que inclui juristas, sindicalistas,
membros de comissões de trabalhadores e investigadores – escreveu uma carta
aberta, que seguiu para o PR, em que acusam o CNCP de “instrumentalizar
indevidamente a concertação social para os seus propósitos” e sublinham que não
se deve confundir legislação com concertação.
A 10
de março, quando a Agenda do Trabalho Digno seguiu para o chefe de Estado, o CNCP
alegou que algumas alterações “são inconstitucionais nas soluções” em si e, nalguns
casos, por terem sido aprovadas pelo Governo e, mais recentemente, pela AR, sem
terem sido apreciadas em concertação social. Contra tal postura, a carta aberta
vinca: “A oposição das confederações patronais à reforma laboral concentra-se
significativamente, e não por acaso, em matérias em que esta reforma das leis
laborais representa progressos do ponto de vista da justiça laboral. E tenta,
para isso, instrumentalizar indevidamente a concertação social para os seus
propósitos e colocá-la em confronto com o poder legislativo.”
Apesar
de valorizarem o papel da concertação social, os subscritores sublinham que o
local para formular a lei laboral é a AR – algo que o CNCP não mostra. Com
efeito, a supremacia legislativa da AR e da sua plural representação não pode
ser questionada, não sendo aceitável qualquer narrativa que tente confundir os
poderes de órgãos legitimados pelo voto popular com os poderes de órgãos
sociais setoriais, que representam grupos de interesse, que não têm qualquer
legitimidade para assumir poderes próprios dos órgãos de soberania.
Entre
as 53 assinaturas estão as de Teresa Coelho Moreira (que co coordenou o Livro
Verde Sobre o Futuro do Trabalho), Alexandra Leitão (jurista, deputada do PS e
ex-ministra), Rui Tavares (historiador e deputado único do Livre), Miguel Matos
(economista e deputado do PS) e José Soeiro (deputado do BE, com o mandato
suspenso) e vários dirigentes sindicais.
***
Espera-se
que, em contexto de desvalorização generalizada do trabalho, da eufemística
redução dos trabalhadores a “colaboradores” e do uso e abuso da contratação de
prestação de serviços, o Trabalho Digno passe da letra da lei à prática
assumida por todos.
2023.03.22 – Louro de
Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário