O último
relatório da Amnistia Internacional (AI) mostra que há povos e guerras que não
merecem a atenção dos que têm o poder de mudar algo. E ante as falhas de quase
todos os países do Mundo em proteger os seus cidadãos, esmorece a esperança de
que a resposta mundial à agressão russa marcasse nova era para um sistema
internacional fundado em valores e no direito.
Os crimes contra a Humanidade ocorrem em toda a parte,
sem sanção ou crítica. Os ditadores seguem impunes. Diz-se que 2022 foi o ano
em que a guerra voltou em força à Europa, mas ela já existia há oito anos no
leste da Ucrânia, pelo que os ucranianos não chamam “guerra” a esta, mas “invasão
em larga escala”. A outra marinava e o Ocidente não interferia.
Nos países menos desenvolvidos, centenas de conflitos,
com armas de fogo ou de controlo social, alimentam a deterioração das condições
de vida de centenas de milhares de pessoas. A lei humanitária internacional é
usada como dá jeito, conforme o interesse em causa. Se há interesses económicos
comuns e alianças geopolíticas, as coisas fazem-se, caso contrário, impera o
silêncio. Esta duplicidade de
atuação espelha a hipocrisia do uso do duplo tipo de critérios e de ações para denunciar
os conflitos, protegendo os “bons”, não os “maus”.
Agnès Callamard, secretária-geral da AI, disse, na
apresentação do relatório de 2022, que “a invasão da Ucrânia pela Rússia é um
exemplo assustador” do que pode suceder quando os Estados “pensam que podem
desrespeitar o direito internacional e violar os direitos humanos sem
consequências” e lembrou os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos
Humanos (DUDH), que se ergueu sobre destroços do conflito mais violento de que
há memória, a II Guerra Mundial, reconhecendo o direito igual de todos os povos
à paz e à liberdade.
A perpetuação do conflito israelo-palestiniano é um
dos pontos que mais pesam na tese, defendida pela AI, de que o Ocidente tem um
olho seletivo nas exasperações que elege. Com efeito, 2022 foi o ano mais violento da última década para
os Palestinianos da Cisjordânia. Os Israelitas mataram 151 pessoas em 2022, sendo
37 menores de idade. E a política de construção de casas para Israelitas em
territórios que a Organização das Nações Unidas (ONU) considera parte de um
Estado palestiniano futuro desaloja, todos os dias, famílias palestinianas.
A 5 de agosto, Israel lançou uma ofensiva de três dias
sobre a Faixa de Gaza, porção de terra palestiniana, colada ao Mediterrâneo, de
onde é difícil sair e onde tudo o que entra é controlado pelas forças
israelitas. Pelo menos 1.700 palestinianos perderam as suas casas em 72 horas,
17 morreram devido aos ataques israelitas e sete foram vítimas de morteiros,
que dispararam, sem querer, do lado palestiniano. E o silêncio dos Estados Unidos da América (EUA), face ao apartheid que
Israel impõe nos territórios ocupados, cobre Israel para perseguir os
Palestinianos.
Ao fim de 20 anos de guerra, os EUA saíram do
Afeganistão, fenecendo as ilusões que as mulheres tinham de mudança sólida do
seu papel na sociedade. Sem alternativa num país dominado por um grupo imbuído
do seu machismo superlativo, as afegãs ficaram impedidas de aceder a qualquer
tipo de escolaridade ou de emprego. No Irão, os protestos por liberdade levaram
à detenção e à morte de centenas de pessoas, principalmente jovens, sendo as
mulheres as principais vítimas, como no Afeganistão.
Nos EUA abundam os exemplos de sociedade enviesada
contra as mulheres. Até em países onde há recursos financeiros, democracias
robustas, funcionamento dos serviços, tudo fatores de garantia de melhores
condições de vida às mulheres, nota-se o retrocesso de direitos.
Em 2021, o Supremo Tribunal dos EUA reverteu a decisão
“Roe contra Wade” que garantia o direito ao aborto às mulheres, ao criar a
ligação entre este ato médico e o direito à privacidade entre doente e médico.
Por causa dessa decisão, dezenas de casos judiciais, a nível estadual,
contribuem para a restrição dos direitos das mulheres. A discriminação de
mulheres negras, pobres, indígenas, imigrantes sem documentos, entre outras, aumenta.
E estes são os segmentos da população com salários mais baixos e condições
familiares mais instáveis.
Na Polónia, Justyna Wydrzynska, ativista pelo direito ao aborto
foi condenada a oito meses de serviço comunitário por ter enviado comprimidos
indutivos de aborto a uma mulher que pediu ajuda à associação Abortion Dream
Team, que Justyna dirige. É a
primeira pessoa na história da Polónia condenada em caso de ajuda ao aborto,
indo a pena até aos três anos de prisão.
No Paquistão e na Índia, os
“assassínios de honra” são problema grave. Duas irmãs, com dupla nacionalidade,
espanhola e paquistanesa, foram mortas em 2022 pelos respetivos maridos, com
quem foram forçadas a casar, por se recusarem a pedir-lhes vistos de cônjuge
para Espanha. Muitos pais casam as filhas com homens da mesma família (no caso,
primos direitos) para mais membros da família entrarem na Europa, pelo processo
de reunificação familiar.
Este foi também o ano em que se confirmou a mortandade
da guerra de dois anos na Etiópia. Mais de 600 mil pessoas morreram em 2021 e
2022, número que os investigadores europeus da universidade de Ghent, na
Bélgica, os primeiros a chamar a atenção para as atrocidades na região do
Tigray, corroboraram. Em 12 anos de guerra na Síria, terão morrido entre 350 e
400 mil pessoas. No Iémen, em guerra há sete anos, morreram 377 mil pessoas.
No Myanmar, o exército persegue as minorias religiosas
e a violência intensificou-se. Em maio de 2022, a AI divulgou o relatório
específico para a situação no país, que relata o uso generalizado de
detenções arbitrárias, tortura e execuções extrajudiciais de civis. Embora as minorias étnicas, nomeadamente cristãos
e muçulmanos, sofram, há décadas, nas mãos do exército, houve um aumento
significativo da violência, após o golpe militar de fevereiro de 2021, que
levou à morte de centenas de civis e ao deslocamento de mais de 150 mil pessoas
em três meses (de dezembro de 2021 a março de 2022).
Este ano, a comunidade
internacional reage à agressão da Rússia sobre a Ucrânia e condena a invasão,
mas isso contrasta com a pouca ação a outras violações de direitos humanos em
países como a Etiópia, o Myanmar e a Arábia Saudita, que tanto viola os
direitos dos seus cidadãos como está envolvida na terrível guerra do Iémen”,
diz o diretor da AI de Portugal, Pedro Neto.
Os custos da crise climática intensificaram-se.
Inundações, secas, ondas de calor e incêndios causaram mortes, perda de bens de
primeira necessidade, habitações, florestas e culturas agrícolas, provocando
crassa escassez alimentar e doenças em várias zonas do globo.
A União Africana declarara 2022 como o Ano da
Nutrição, mas as condições climáticas extremas desencadearam o contrário. Na
Somália, a seca severa aumentou os casos de subnutrição e, na Nigéria, as
inundações precipitaram um surto de doenças transmitidas pela água, matando
centenas de pessoas e de animais. Aumento do nível do mar e inundações afetaram
comunidades costeiras empobrecidas em países como o Bangladesh, as Honduras e o
Senegal.
Apesar de as alterações climáticas atingirem todo o Mundo,
é em África que se regista a maioria das consequências. Em 2022, o Corno de
África sofreu a sua pior seca em 40 anos e partes da África Austral sofreram
inundações inéditas, causadas por chuvas intensas. Em Madagáscar, as
tempestades tropicais e os ciclones mataram mais de 200 pessoas de janeiro a
abril.
Na África do Sul, as chuvas destruíram milhares de
casas. Na África Ocidental, as autoridades nigerianas não conseguiram
implementar medidas suficientes para mitigar o impacto das inundações que
mataram, pelo menos, 500 pessoas. No Senegal, o aumento do nível do mar causou
erosão nas aldeias de pescadores, forçando as comunidades a deslocar-se para o
interior.
Dois anos antes da guerra da Síria enorme seca levou
ao êxodo rural para os meios urbanos. Muito do descontentamento que gerou os protestos radica nesse
evento climático, que levou à abundância de mão-de-obra nas cidades, onde não
havia emprego para todos.
Em setembro, um terço do Paquistão ficou submerso,
provocando a fuga de milhares de pessoas, embarcar algumas em viagens perigosas
até à Europa, aonde nem todos chegam. O facto de a cidadania paquistanesa ter
aparecido, em 2022, entre as três mais comuns a chegar ao Reino Unido pelo
canal da Mancha revela a correlação entre as alterações climáticas e o aumento
de pedidos de asilo, registando-se um fenómeno migratório de dimensões que o
Ocidente nunca viu e para o qual não se está a preparar.
Na Argélia, os fogos florestais mataram 40 pessoas. No
Iraque, as tempestades de areia e as ondas de calor obrigaram cerca de 10 mil
famílias a sair das suas casas.
Há outros exemplos de zonas do globo afetadas por conflitos
regionais ou por tragédias climáticas que modificaram a forma de vida dos povos,
mas os indicados ilustram bem o problema é a causa de quase todos os problemas:
a desigualdade. É a desigualdade de tudo, incluindo de atenção mediática, de
distribuição de recursos, como ajuda humanitária e medicamentos, e a dos
esforços diplomáticos para resolução de conflitos. A pandemia de covid-19 e,
agora, a guerra na Ucrânia exacerbaram o padrão duplo. As nações ricas
acumularam vacinas e enfraqueceram os sistemas de redistribuição, contribuindo
para aprofundar a desigualdade. Os países ricos falharam nas medidas de alívio das
esmagadoras dívidas dos países em desenvolvimento.
Na Europa, tudo se fez para
acolher ucranianos, a União Europeia (UE) facilitou o acesso à proteção
internacional, mas para outras pessoas, como as de origem africana, que também
fogem da guerra, a abertura não é a mesma. Os EUA acolhm milhares de
ucranianos, mas prendem, deportam e torturam pessoas do Haiti, que vive uma situação
igualmente dramática.
Na região de Xinjiang, na China, a minoria muçulmana
uigur é vigiada, presa, endoutrinada contra a própria etnia, assassinada e
torturada. Apesar das violações dos
direitos humanos, equivalentes a crimes contra a Humanidade, Pequim escapou da
condenação internacional pela Assembleia Geral da ONU, pelo Conselho de
Segurança e pelo Conselho de Direitos Humanos. Este último estabeleceu um
Redator Especial sobre os direitos humanos na Rússia e um mecanismo de
investigação no Irão, mas votou para não se investigar mais, nem apreciar o relatório
do que se passa em Xinjiang, num país que diz querer liderar as negociações de
paz na Ucrânia (quando só lhe interessa a diplomacia comercial), mas que devia
dar o exemplo com Taiwan.
Na Rússia, foram encerrados meios de comunicação,
ONG privadas de fundos e alvo de buscas e de mandados de apreensão de material
(caso da “Memorial”, que venceu o prémio Nobel da Paz em 2022), por terem
chamado guerra à guerra. Jornalistas foram presos no Afeganistão, na Etiópia, no
Myanmar, na Rússia, na Bielorrússia e em mais países onde há guerras.
Na Austrália, na Índia, na Indonésia e no Reino Unido,
aprovaram-se leis que restringem as manifestações; no Sri Lanka, utilizaram-se os
poderes do estado de emergência para restringir os protestos contra o aumento
do custo de vida; no Reino Unido, a lei dá às autoridades amplos poderes, como
o de proibir “protestos ruidosos”; em dezembro, as forças de segurança peruanas reprimiram indígenas e
camponeses, pelos protestos contra a deposição do ex-presidente Pedro Castillo;
e, em Moçambique, a par de inundações e de violência em Cabo Delgado, jornalistas, defensores dos direitos humanos e oposição política sofreram
a repressão.
E uma reportagem da agência Lusa, já este ano, registava as queixas de manifestantes contra os
métodos de repressão da polícia, cada vez mais comuns, tendo matado
manifestantes em países como o Equador, a Colômbia, a Somália, a Serra Leoa, o Chade
ou as Filipinas.
Enfim, sofrimento, guerra, violência e violação dos
direitos humanos vistos sob duplo critério.
2023.03.28 – Louro de Carvalho
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