Celebrou-se,
a 9 de novembro, a Dedicação da Arquibasílica Basílica de S. João de Latrão, a
catedral do Papa, enquanto bispo de Roma. Edificada pelo imperador Constantino,
no tempo do Papa Silvestre I (314-335), foi consagrada, no ano 324, a Jesus
Cristo Salvador e, mais tarde, a São João Batista e a São João Evangelista. Inicialmente,
foi uma festa da cidade de Roma. Mais tarde, estendeu‑se à Igreja de Rito
Romano, por ser “a igreja-mãe de todas as igrejas da Urbe e do Orbe”, ou seja,
de Roma e do Mundo, e é o símbolo das Igrejas de todo o Mundo, unidas à volta
do sucessor de Pedro. A festa convida-nos a tomar consciência de que a Igreja
nascida de Jesus (a Basílica de S. João de Latrão simboliza-a e representa-a) é,
no meio do Mundo, a “morada de Deus”, o testemunho vivo da presença de Deus na
caminhada histórica dos homens.
***
Na primeira
leitura (Ez 47, 1-2.8-9.12 Ezequiel anuncia aos exilados na Babilónia
que Deus fixará, em definitivo, a sua morada no meio do Seu Povo. Da casa de
Deus brotará um rio de água viva e abundante que se derramará sobre todo o
Israel, fecundará o deserto, fará nascer árvores de toda a espécie, carregadas
de frutos comestíveis e de folhas medicinais que serão remédio contra a morte.
O povo de Deus, vivificado pela água que brota da morada de Deus, conhecerá a
vida em abundância, a felicidade infinda.
Do
Novo Templo que vai surgir e que será a habitação de Deus no meio do Povo, o
profeta vê brotar um rio de águas profundas e impetuosas. A água é símbolo de
vida, de fecundidade, de abundância, de felicidade. E essa simbologia torna-se
mais significativa para um Povo marcado pela dura experiência do deserto, onde
a falta ou a abundância de água faz a diferença entre a morte e a vida. Dado
que o rio de que o profeta fala brota da casa de Deus, a sua água evoca o poder
vivificante e fecundante de Deus que, de Jerusalém, se derrama sobre o Povo.
O
rio que brota do Templo de Deus corre para oriente, desce para a região da
Arabá – a região mais desolada e árida do país – e, daí, para o Mar Morto. Essa
corrente de água fecunda a aridez do deserto, torna salubres as águas do Mar
Morto e enche-as de vida. Nas margens do rio crescerão árvores de toda a
espécie, carregadas de frutos comestíveis e de folhas medicinais que serão
remédio contra a morte. É um cenário que evoca a imagem paradisíaca do Éden, de
água abundante e de árvores de fruto de toda a espécie, onde o homem – vivendo
em comunhão com Deus e obedecendo ao seu desígnio – tinha todas as condições
para ser feliz.
De
acordo com esta visão profética, o cenário que Deus prepara para o seu povo
será o regresso ao tempo idílico de felicidade ilimitada, em que Deus e a criação
viviam lado a lado, em comunhão total e sem sombras. E, durante os anos do
exílio, esta promessa animou os exilados e deixou-lhes no coração enorme
capital de esperança. De olhos postos em Jerusalém, no Monte do Templo, os
exilados sonhavam com esse Novo Templo prometido, a partir do qual a vida de
Deus voltaria a derramar-se, abundantemente, sobre toda a Terra e sobre todos
os membros da comunidade do povo de Deus.
Os
escritos nascidos da tradição joânica ligarão esta profecia a Jesus Cristo.
Para o autor do Quarto Evangelho, Jesus é o Novo Templo de que o profeta falou,
o lugar da residência de Deus no meio dos homens. Do coração de Cristo, o Homem
Novo que amou os homens até ao dom total de Si mesmo, brotará a fonte de água
que mata, definitivamente, a sede de vida que o homem sente. E o Livro do
Apocalipse apresenta – na descrição da nova Jerusalém, onde vão residir os que
se mantiverem fiéis a Jesus – o quadro do trono celeste do Cordeiro imolado, de
onde sai um “rio de água viva, resplendente como cristal”, que fecundará toda a
Terra. Nas suas margens estará a “árvore da Vida, que produz, anualmente, doze
colheitas de fruto” e que “tem folhas que servem de medicamento para as nações”.
***
No Evangelho
(Jo 2, 13-22), Jesus apresenta-Se como o Templo Novo onde Deus mora e marca
encontro com os homens para lhes oferecer a Vida e a salvação. Quem quiser
encontrar Deus deve aproximar-se de Jesus, tornar-se seu discípulo, abraçar o
seu projeto, seguir os seus passos, viver animado pelo seu Espírito.
O
templo de Jerusalém era o centro do culto e da fé de Israel. Era para lá que os
israelitas se dirigiam para “contemplar a face de Deus” e para comunicarem com
Deus. O povo amava o templo com amor comovente (“a minha alma suspira e tem
saudades dos átrios do Senhor”; “que alegria quando me disseram: ‘vamos para a
casa do Senhor’.” Embora a catequese de Israel ensine que a residência de Deus
está no céu, o templo era a réplica terrena do palácio celestial de Deus. A
vida de toda a comunidade israelita gravitava à volta do templo.
Contudo,
os profetas de Israel criticaram o culto sacrificial que Israel oferecia a Deus
no templo, considerando-o como um conjunto de ritos estéreis, vazios e sem
significado, por não serem verdadeira expressão de amor a Javé. Até denunciaram
a relação do culto com a injustiça e com a exploração dos pobres. E as críticas
proféticas consolidaram a ideia de que a chegada dos tempos messiânicos
implicaria a purificação e a moralização do culto prestado a Javé no Templo.
Nesta linha, Zacarias ligou o “dia do Senhor” (o dia em que Deus intervém na História
e constrói um Mundo novo, através do Messias) com a purificação do culto e com a
eliminação dos comerciantes que desenvolviam a sua atividade comercial “no
Templo do Senhor do universo”.
O
gesto que o Evangelho do dia relata deve entender-se neste sentido. Quando
Jesus pega no chicote de cordas, expulsa do Templo os vendedores de ovelhas, de
bois e de pombas, deita por terra os trocos dos banqueiros e derruba as mesas
dos cambistas, está a revelar-Se como o Messias e a anunciar que chegaram os
novos tempos, os tempos messiânicos. Porém, Jesus ultrapassa os profetas veterotestamentários.
Ao expulsar do Templo as ovelhas e os bois que serviam para os ritos
sacrificiais que Israel oferecia a Javé (João é o único evangelista a referir
este pormenor), Jesus mostra que não propõe só a reforma do culto ali prestado,
mas a sua abolição. Aquela “casa” tinha-se tornado uma casa de comércio (“não
façais da casa de Meu Pai casa de comércio. A pretexto do culto a Deus,
praticava-se ali a exploração e a injustiça; em nome de Deus, roubava-se o
dinheiro dos pobres. Deus há muito que se tinha afastado daquele lugar maldito.
O culto ali prestado era a mentira que só interessava aos que beneficiavam daquele
negócio. Jesus, o Filho, com a autoridade que Lhe vem do Pai, diz o “basta” à
mentira com a qual Deus não pode pactuar. Deus não Se identifica com o que se
passa no templo, nem quer o culto que ali se Lhe presta. Tudo aquilo tem de
terminar, de uma vez por todas.
Os
líderes judaicos, indignados, questionaram-No sobre as credenciais para atitude
tão radical e grave e sobre a legitimidade que tem para se arrogar o direito de
abolir o culto oficial a Javé.
A
resposta de Jesus é estranha: “Destruí este Templo e Eu o reconstruirei em três
dias”. Recorrendo artifício do “mal-entendido” (propor uma afirmação; os
interlocutores entenderem-na de forma errada; e vir a explicação final dar o
significado exato do que se afirma), João esclarece que Jesus não Se referia ao
Templo de pedra onde Israel celebrava os ritos litúrgicos, mas a outro Templo
que é o próprio Jesus (“Jesus, porém, falava do Templo do seu corpo”). Nestes
termos, desafia os líderes que O questionaram, a suprimirem o Templo que é Ele
próprio, mas garante que, três dias depois, esse Templo estará, outra vez,
erigido no meio dos homens. Ou seja, alude à sua ressurreição. A prova de que
Jesus tem autoridade para “proceder deste modo” é que os líderes não
conseguirão suprimi-lo. A ressurreição garante que Jesus vem de Deus e que a
sua atuação tem o selo de garantia de Deus. Os defensores da religião oficial
vão matar Jesus para o calarem, mas, ressuscitando-O, Deus garante-lhes que
Jesus tem razão.
Contudo,
o mais notável na resposta de Jesus é a ideia de que Ele é, doravante, o “novo
Templo”. Jesus é agora a casa onde Deus Se encontra com os homens e Se
manifesta ao Mundo. Jesus é o lugar do encontro, da intimidade, da comunhão
entre Deus e os homens. É por Jesus que o Pai oferece aos homens o amor, a vida,
a salvação. O que a antiga Lei já não fazia – estabelecer relação e comunhão
entre Deus e os homens – é Jesus que, doravante, o faz.
***
Na segunda
leitura (1Cor 3, 9c-11.16-17), Paulo recorda aos cristãos de Corinto (e
a todos) que são, no Mundo, o Templo de Deus onde reside o Espírito.
Animados pelo Espírito, os cristãos são chamados a viver segundo o novo dinamismo,
testemunhando a bondade e a misericórdia de Deus entre os irmãos. E é à ação de
Deus que se deve a constituição da comunidade cristã de Corinto.
O
apóstolo, chamado por Deus a colaborar na construção da comunidade, colocou-lhe
o alicerce, quando anunciou Jesus Cristo aos Coríntios. Porém, outros, também
eles chamados por Deus, ajudaram a erguer o edifício comunitário com a palavra
e com o testemunho. Deus é o “dono da obra”. Paulo, Apolo, Pedro, cada um a seu
jeito, foram cooperadores de Deus, que tornaram realidade o desígnio de Deus.
Assim nasceu a comunidade que é, agora, um edifício de Deus”. Deus reside
ali, na comunidade, nos crentes que acolheram a salvação de Deus.
Paulo
quer que os Coríntios estejam conscientes disto. Por isso, interroga-os: “Não
sabeis que sois Templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em
vós?” O Templo (de Jerusalém) era, no Antigo Testamento, a residência
de Deus, o lugar por excelência da presença de Deus no meio do Povo. Era lá que
Israel O encontrava e estabelecia comunhão com Ele. Agora, porém, é a
comunidade cristã o verdadeiro Templo da nova aliança, o lugar onde
Deus reside, onde Se manifesta aos homens e onde oferece a salvação ao Mundo. E
isto postula a interrogação se o testemunho da comunidade cristã revela Deus à
cidade e ao Mundo. Na verdade, ser Templo de Deus (lugar onde Deus
reside no Mundo e onde os homens encontram Deus) não se compatibiliza com a
realidade da comunidade que vive na lógica da “sabedoria do Mundo”. A
comunidade não pode ser Templo de Deus, onde reside o Espírito, e
viver no conflito, na divisão, no ciúme, no confronto. Ao dizerem que são “de
Paulo”, “de Apolo” ou “de Pedro”, os Coríntios, em vez de testemunharem Deus,
impõem líderes humanos que obscurecem o protagonismo de Deus.
Mais:
o Templo de Deus (a comunidade cristã) é santo, tal como o é
cada um dos seus membros, que é templo e santo. A noção de santidade postula
a ideia de separação. Neste âmbito, a comunidade deve marcar a sua diferença em
relação ao Mundo, aos seus valores, aos seus esquemas, à sua sabedoria), para
viver ao serviço de Deus. Os comportamentos típicos do Mundo são incompatíveis
com a santidade a que a comunidade é chamada. E Paulo declara que, se alguém
destrói o Templo de Deus, Deus o destruirá. Mais do que ameaça, a
afirmação deve ser entendida como aviso: os que, com o seu egoísmo, orgulho e
vaidade, impedem que a comunidade viva, de forma coerente, o compromisso
cristão, não podem integrar a família de Deus.
Nas
religiões antigas, como o templo era a morada terrestre da divindade e o local
onde se lhe ofereciam os sacrifícios e se rezava, devia ser uma construção digna
e sumptuosa, um edificado de referência, mas não precisava de ser muito amplo.
Com o cristianismo, os cristãos, sem deixarem de frequentar o templo, para a
oração, perceberam que a liturgia implica a participação de todos, o que era viável,
a princípio, nas casas mais amplas, nas catacumbas, mais tarde; e, a partir do
ano 313, com o aumento do número local de crentes, nos novos templos. Estes,
porque, além de dedicados a Cristo (onde vive no sacrário), a Maria ou a algum
santo ou santa, reuniam a comunidade dos crentes (santos ou cristãos), a Igreja
(assembleia dos cristãos), passaram a designar-se por igreja (por contaminação com
a assembleia), por basílica (a casa do Rei: Cristo é rei), por santuário (onde
se está em comunhão com Deus) e, por capela, se for um espaço pequeno.
Porém,
ao mesmo tempo, foi-se consolidando a ideia paulina de que a comunidade cristã
é o novo templo onde Deus habita, assim como a ideia paulino-joânica de que o
cristão, pelo batismo, se torna verdadeiro templo de Cristo e templo santo – santidade
que só o pecado contradiz e pode anular, se não houver determinação na luta
contra ele.
***
São
Cesário de Arles, bispo do século VI, clamando que “somos todos, pelo batismo,
templos de Deus”, a propósito da dedicação da catedral do bispo de Roma, diz-nos
que, pela graça de Cristo, celebramos, “com alegria e júbilo, o dia aniversário
da consagração deste templo”. Porém, sustenta que “nós é que devemos ser o
templo vivo e verdadeiro de Deus”. As comunidades cristãs celebram, fielmente,
a solenidade da Igreja Mãe, porque “sabem que renasceram espiritualmente por
meio dela”. E o santo bispo explica:
“Pelo
primeiro nascimento, éramos vasos da ira de Deus, mas, pelo segundo, convertemo-nos
em vasos da sua misericórdia. O primeiro nascimento gerou-nos para a morte; o
segundo restituiu-nos à vida. Todos nós fomos templo do diabo, antes do batismo,
mas, após o batismo, merecemos ser templos de Cristo; e, se pensarmos, com mais
interesse, na salvação da nossa alma, tomamos consciência de que somos,
realmente, ‘o templo verdadeiro e vivo de Deus’. Deus não habita só em templos
edificados pelos homens, nem em casas construídas de madeira ou de pedra, mas,
principalmente, na alma feita à imagem de Deus e por sua própria mão. Assim
diz, com efeito, o apóstolo São Paulo: ‘O templo de Deus é santo, e vós sois
esse templo’.”
E
Cesário de Arles prossegue a sua douta explanação:
“Se
Cristo, com a sua vida, expulsou o diabo dos nossos corações, a fim de preparar,
em nós, um templo para Si, trabalhemos, com a sua ajuda, quanto pudermos, para
que Ele não seja ofendido em nós, com as nossas obras más. Na verdade, todo
aquele que pratica o mal ofende a Cristo. Como já disse, antes de Cristo nos
resgatar, fomos casa do diabo. Depois, merecemos ser casa de Deus, porque Ele
Se dignou fazer de nós a sua morada.
“[…]
se desejamos celebrar com alegria o aniversário deste templo, não devemos
destruir em nós, com obras más, os templos vivos de Deus. E direi isto de
maneira que todos possam compreender: sempre que vimos à igreja, devemos
preparar bem a nossa alma, tal como gostamos de ver adornado o templo de Deus.
Queres encontrar a basílica limpa? Então não queiras sujar a tua alma com a
imundície do pecado. Se queres que a basílica esteja luminosa, também Deus
deseja que a tua alma não esteja nas trevas, como diz o Senhor no Evangelho: ‘Brilhe
em nós a luz das boas obras e seja glorificado Aquele que está nos Céus.’ Assim
como tu entras nesta igreja, também Deus quer entrar na tua alma, como
prometeu: ‘Estabelecerei a minha morada no meio deles e viverei com eles’.”
***
Com
o salmista, a comunidade eclesial cantou:
“Os
braços dum rio alegram a cidade de Deus, / a morada santa do Altíssimo.”
“Deus
é o nosso refúgio e a nossa força, / auxílio sempre pronto na adversidade. / Por
isso nada receamos ainda que a terra vacile / e os montes se precipitem no
fundo do mar.
“Os
braços dum rio alegram a cidade de Deus, / a mais santa das moradas do
Altíssimo. /Deus está no meio dela e a torna inabalável, / Deus a protege desde
o romper da aurora.
“O
Senhor dos Exércitos está connosco, / o Deus de Jacob é a nossa fortaleza. / Vinde
e contemplai as obras do Senhor, / as maravilhas que realizou na Terra.
Aleluia
Escolhi e consagrei esta casa, / para que o meu nome esteja neste lugar para
sempre.
2025.11.09 – Louro de Carvalho
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