quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Celebrar o 25 de novembro, mas não da forma como foi celebrado

 

Recordo-me do tempo (1981-1982) em que prestei serviço militar no então denominado Regimento de Infantaria de Viseu (RIViseu), que todos chamávamos, como antigamente, RI14, e os militares, nesses dois anos, a maneira dos anos anteriores, a 25 de novembro, formavam no recinto da parada e escutavam a mensagem que o Presidente da República dirigia às tropas.
No mesmo dia, havia a parada militar no Terreiro do Paço, em Lisboa, e o respetivo desfile perante o Presidente da República, ao tempo, o general António dos Santos Ramalho Eanes.
No ano de 1982, foi colocada a questão, a nível nacional, se a mensagem deveria ser endereçada pelo Presidente da República (o PR), se pelo chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (GEMGFA). Com efeito, nos anos anteriores, o PR acumulava as funções de GEMGFA. Eu não percebia o motivo por que só em 1982 se levantava a questão, visto que o general Ramalho Eanes passara as funções de GEMGFA para o general Melo Egídio, a 17 de fevereiro de 1981, pois o segundo mandato presidencial de Ramalho Eanes, de acordo com o compromisso da campanha eleitoral inaugural, pretendeu a configuração de uma presidência tipicamente civil. O recandidato presidencial, que tinha passado à reserva, não aparecia com o uniforme militar.  
Fosse como fosse, o Presidente da República era e é, nos termos constitucionais, o comandante supremo das Forças Armadas, pelo que tem o direito e o dever de se dirigir às tropas, em momentos solenes e em tempos de crise.
Quero dizer, com este excursus, que o 25 de novembro pode e deve ser comemorado como episódio militar e, obviamente, acompanhado pelos poderes políticos, por ter confirmado a resolução de um problema político nacional relevante. E entendo que o seu 50.º aniversário merece especial destaque e deve ser objeto de estudo, dadas as diversas e contraditórias narrativas de que tem sido objeto. Neste sentido, a entrevista do coronel Rodrigo de Sousa e Castro ao jornal Público, publicada no 2.º Caderno (P2) do dia 23 de novembro, assim como o longo texto do historiador Francisco Bairrão Ruivo, serão um bom ponto de partida. 
Foi criada a Comissão das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, “para, entre 2022 e 2026, promover um conjunto amplo e diverso de iniciativas que conciliam a evocação da memória da resistência e da Revolução com a reflexão sobre o futuro”. E, a par dos vários estudos que promoveu antes, começou por sinalizar a dita primeira reunião dos capitães, em Alcáçovas, a 9 de setembro de 1973. E fez a justa memória ao gorado episódio militar das Caldas da Rainha, a 16 de março de 1974.  
Assim, competia-lhe sinalizar, além do 25 de Abril, data fundadora da democracia, da assunção das liberdades, da autodeterminação (e independência) das colónias e das bases do desenvolvimento socioeconómico do país, assim como todas as datas decorrentes do dia da Revolução dos Cravos, incluindo a data das eleições para a Assembleia Constituinte (as primeiras eleições livres, que galvanizaram o eleitorado), a 25 de abril de 1975, a data da promulgação da Constituição da República Portuguesa (CRP), a 2 de abril de 1976, a data das primeiras eleições para a Assembleia da República (AR) – instituída pela  CRP –, a 2 de abril de 1976, a data da eleição do primeiro Presidente da República em democracia, a 27 de junho de 1976, as primeiras eleições das Regiões Autónomas da Madeira e dos Ações, também a 27 de junho de 1976, e as primeiras eleições dos órgãos autárquicos, a 12 de dezembro de 1976.  
Era expectável que a Comissão das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril tivesse capacidade para promover a celebração integral de todas as datas pertinentes e para mandar elaborar os estudos que se impõem, embora tivessem surgido, desde o princípio, críticas à formação da Comissão, nomeadamente, quanto à presidência da sua comissão executiva. Porém, a areia na engrenagem foi introduzida pelo presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ao promover uma celebração autónoma do 25 de novembro, a nível da capital. E, depressa, forças que tentavam ofuscar o 25 de Abril e apropriar-se dos méritos do 25 de novembro, se colaram à ideia e foi promovida a comemoração do 25 de novembro em 2024, com sessão solene na AR.  
Entretanto, a 28 de agosto deste ano, o governo resolveu criar a comissão para a comemoração do 50.º aniversário do 25 de novembro de 1975, sob a égide do Ministro da Defesa Nacional, devendo os seus trabalhos começar em “novembro” e findar “em maio de 2026”. Que datas vai comemorar entre novembro e maio?
Nestes termos, embora a Comissão das Comemorações dos 50 anos do 25 de Abril tenha continuado a trabalhar – incluindo a exposição “25 de Novembro: um passo nos caminhos da Democracia”, de 27 de novembro a 2 de dezembro – tem sido eclipsada pela comissão para a comemoração do 50.º aniversário do 25 de novembro de 1975 e pela polémica gerada em torno da criação da comissão e da celebração autónoma da data.
Aliás, a propósito da exposição em referência, os promotores sustentam que ela “convida a revisitar um dos momentos mais decisivos e debatidos do processo revolucionário português”. Considerando o 25 de Abril o “marco fundador da liberdade, do fim da ditadura e do início da democratização”, entendem que “o percurso expositivo acompanha as dinâmicas, desafios e encruzilhadas que moldaram o país entre 1974 e 1976”.
Vincando que o 25 de novembro “marcou uma viragem essencial, uma etapa de definição e esclarecimento do rumo democrático”, salientam que, “em plena tensão interna e num contexto internacional polarizado, o desfecho deste dia consagrou a prevalência das vias constitucionais, reforçando a opção por uma democracia pluralista, representativa e assente no Estado de Direito”, tendo sido “a partir daí que o processo político português encontrou os alicerces para a estabilidade institucional”.
Nesse sentido, “através de documentos, imagens e narrativas, a exposição propõe uma reflexão sobre o percurso da Revolução, as suas esperanças e dilemas, e os caminhos que conduziram à consolidação da democracia” e “sublinha a genealogia da liberdade em Portugal, recordando que, se o 25 de Abril permanece como origem da participação cívica e dos direitos conquistados, o 25 de novembro foi essencial para definir os contornos duradouros da nossa vida democrática”.

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Não o entendeu assim a direção reinante do poder político, antes tolerou ou fomentou as mais distorcidas discussões sobre o 25 de novembro, arranjando uns heróis e esquecendo o papel relevante de outros intervenientes, colando a à efeméride datas que valem por si. Há uma reescrita da História ao arrepio da memória de quem foi coevo dos acontecimentos.
Por exemplo, fala-se, com justeza, do papel de Ramalho Eanes e da missão cumprida por Jaime Neves, mas esquece-se o relevante papel de Costa Gomes, na gestão das crises, o de Vasco Lourenço, o dos comandantes das diversas regiões militares, o de Melo Antunes e de todo o Grupo dos Nove. Oculta-se que, a nível político, a apelar à moderação, está o comício da Fonte Luminosa, em Lisboa, a 19 de julho de 1975, no contexto de ruidosa manifestação de descontentamento, em que pontificou Mário Soares e outros socialistas; e que, a nível político-militar (mas sem partidos), houve o pronunciamento de Tancos, a 9 de setembro desse ano, que determinou alterações na composição do Conselho da Revolução e abriu as portas à queda do V Governo Provisório e à posse do VI Governo Provisório, a 19 de setembro.   
Assim, o 25 de novembro, foi um momento histórico de índole político-militar que ratificou toda a maioritária caminhada política em ascensão, contra uma minoria de pendor militar, à esquerda, e contra outra, também de pendor militar, à direita.
Embora tenham o Grupo dos Nove e o 25 de novembro a simpatia e até significativa cooperação da parte do Partido Socialista (PS) e de elementos do Partido Popular Democrático (PPD), não se pode dizer que esses partidos tenham cooperado diretamente nas operações militares. Aliás, tanto quanto se sabe, os líderes do PS e do PPD, atual Partido Social Democrata (PSD), caminharam para o Norte e o líder do partido do Centro Democrático Social (CDS) estava na Alemanha.   
No entanto, como diz Francisco Bairrão Ruivo, no mencionado artigo do Público, “se, na fotografia do 25 de novembro de 1975, o PPD ficava ao lado de PS e do Grupo dos Nove, hoje, surge ao lado de Chega e [de] IL [Iniciativa Liberal]”.  
Se é verdade que um certo processo revolucionário em curso (PREC) foi anulado, não é verdade que o processo revolucionário aberto pelo 25 de Abril tenha sido interrompido ou minimizado.
Cita-se Mário Soares para dizer que o 25 de novembro restituiu a pureza do 25 de Abril e critica-se o PS, pelo facto de não querer integrar a comissão para a comemoração do 50.º aniversário do 25 de novembro de 1975 e por contestar a celebração autónoma da efeméride na AR.
Ora bem, se o 25 de novembro, repôs os ideais de Abril, é mais um motivo para celebrar Abril e pôr novembro no respetivo lugar: data consequente e retificante, não fundadora; data consequente e derivada de outras, como as da Fonte Luminosa e do pronunciamento de Tancos.
Tolera-se que o Partido Comunista Português (PCP) e outros partidos de esquerda não queiram participar em sessões, nem paradas em militares alusivas ao 25 de novembro, porque, supostamente, foi derrotada a sua linha política. Todavia, a sua linha política foi subvalorizada em eleições, em 1975 e em 1976. Ao mesmo tempo, a linha da direita radical militar e política – bem representada nos atuais partidos pró-governo e no partido de direita antigoverno e antissistema –, que foi derrotada no 25 de novembro, arroga-se o estatuto de vencedor e forçou um comemoração exclusiva, em torno de uma data derivada.
A este respeito, é de acolher o que também escreveu Francisco Bairrão Ruivo no mencionado artigo do Público: “A questão não está, então, em comemorar o 25 de novembro. O problema é a valorização desta data ser o pretexto para desvalorizar a importância histórica do 25 de Abril e da transição revolucionária para a democracia, numa deturpação da História que traz para a disputa da memória o ascendente da extrema-direita e a sua capacidade de sequestrar a direita democrática.”   
E, no último parágrafo, sustenta: “A exacerbação do 25 de novembro destapa o ascenso de uma direita ultraconservadora, radical, fundamentalista, amargurada e em busca de vingança e de um ajuste de contas histórico. Porque sempre viveu mal com o 25 de Abril e com a matriz revolucionária da democracia portuguesa e, de forma ambígua, com o derrube de uma ditadura de extrema-direita, [com] a guerra colonial, [com] a descolonização, [com] as independências africanas e [com] a participação das massas populares na política.”

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E convenhamos: o que se passou na parada militar, na Praça do Comércio ou Terreiro do Paço, do meu ponto de vista, foi uma cerimónia digna da instituição castrense. Gostei da mensagem concisa do general Ramalho Eanes, mas com o devido respeito pelo general duas vezes ferido em combate, achei que as palavras do presidente da comissão comemorativa limitaram-se a espelhar a narrativa da reescrita da História pela direita política. Já o minidiscurso do Presidente da República, de apreço pelo 25 de Abril, em primeiro lugar, e pelo 25 de novembro, em segundo, foi incisivo na homenagem ao primeiro Presidente da República eleito em democracia.
Como nota de reparo, devo dizer que é irritante a sobreposição da loquacidade dos locutores de televisão e dos comentadores convidados. A sua loquela, excessiva e a destempo, não permitiu ouvir e ver, em boas condições, a sequência das cerimónias. Isso é frequente, não foi só desta vez. E para quem gosta, como eu, de apreciar e até de saborear o espetáculo militar e político, tal sobreposição torna-se incómoda.    
Na AR, ocorreu tudo ao contrário do que devia ter acontecido. Salvou-se apenas o exercício de liberdade por parte de todos os intervenientes.
Os partidos à esquerda, com exceção do PCP, fizeram as suas intervenções, menorizando o 25 de novembro e recordando o 25 de Abril e dois oradores deixaram cravos vermelhos no púlpito, que o líder parlamentar do CDS ocultou, o presidente do partido Chega retirou, porque prefere rosas brancas, mas que o orador do PSD repôs.
As intervenções espelharam a clivagem das diversas bancadas, relativamente à relevância fundante do 25 de Abril e relevância ou não do 25 de novembro. E continua a ser truculenta a intervenção do partido que se diz antissistema, anticorrupção, antitudo.
O chefe de Estado que tem, nestas ocasiões, primado por intervenções de fundo, desta vez, tentou congraçar as divergências, a meu ver, de forma menos conseguida, mas salvando-se o seu apelo à moderação e à união, em torno do desígnio do país e do seu futuro.
Por sua vez, os comentadores e os políticos tentam distrair-nos e tapar o Sol com a peneira, através de chavões do género: “ninguém é dono do 25 de Abril”; ninguém é dono do 25 de novembro”; “não há vencedores, nem vencidos, quem venceu foi o povo”.    
É óbvio que o grande beneficiário da liberdade e da democracia é o povo. Porém, os acontecimentos históricos têm autores, fautores e agentes. E o 25 de Abril teve-os. Uns são conhecidos, outros não o são. Alguns não foram protagonistas no dia da revolução, porque foram dispersos pelo regime. Uns são heróis, outros cumpriram missões que lhes foram destinadas. Uns e outros merecem ser lembrados e homenageados. Nem os seus erros futuros os devem apagar da memória coletiva. E não devem ser inventados heróis, segundo os gostos e as conveniências.
Também o 25 de novembro teve os seus autores, fautores e agentes. Não é lícito endeusar uns e esquecer outros. Nem é legítimo dizer que foi a direita atual que venceu ou que a esquerda foi derrotada. Por certo, nem a direita de então obteve quanto quis (pelos vistos, pretendia a ilegalizar o PCP, perturbar a independência das colónias, nomeadamente, a de Angola e impor um regime autoritário), nem a esquerda radical recebeu o 25 de novembro com agrado. Porém, não foi derrotada. Assim, o Grupo dos Nove, com os militares que o acompanharam, garantiu a moderação, o equilíbrio institucional e a estabilidade de que o país carecia.  
Por último, deve comemorar-se o 25 de novembro? Sim: em paradas militares, com exposições, com estudos, mas não na AR, porque as versões são demasiado díspares, apropriadoras e não consolidadas. Deve celebrar-se o 25 de Abril? Sempre e de todos os modos. Com efeito, é a data fundadora de todas as outras. Não era possível o 28 de setembro, o 11 de março, o 19 de julho, o 5 de setembro, o 19 de setembro e o 25 de novembro, sem o 25 de Abril (grafo-o em maiúscula), como data fundadora, protagonizada por militares e acolhida, saboreada e multiplicada pelo povo.      
Portanto, 25 de Abril, sempre; e 25 de novembro e outras datas, quanto necessário.  

2025.11.26 – Louro de Carvalho


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