domingo, 9 de novembro de 2025

“Não é Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos”

 

Como o 9 de novembro, pela festa da Dedicação da Arquibasílica de Latrão, eclipsou a liturgia do 32.º domingo do Tempo Comum no Ano C, nem por isso deixa de ser relevante a mensagem dessa liturgia dominical.

A primeira leitura (2Mac 7,1-2.9-14) aduz o exemplo heroico da família judaica que enfrentou a tortura e a morte, para manter a fé e os valores tradicionais. O que motivou a mãe e os sete filhos, presos e torturados à ordem do rei selêucida Antíoco IV Epífanes foi a certeza da ressurreição: “O Rei do universo ressuscitar-nos-á para a vida eterna, se morrermos fiéis às suas leis”, confessava um dos jovens aos que se preparavam para lhe tirarem a vida.
Em 323 a.C. quando Alexandre da Macedónia morreu, os seus generais (os “diadocos”) disputaram a liderança do império. A Palestina tornou-se pomo de discórdia entre os Ptolomeus – que assumiram o controlo do Egito – e os Selêucidas (de Seleuco Nicanor, um general de Alexandre), que controlava a Síria e a Mesopotâmia. A princípio, os Ptolomeus levaram vantagem e controlaram a Palestina, durante quase um século. Mas no ano 200 a.C., após a batalha das fontes do Jordão, a Palestina passou para os Selêucidas, o que mudou a fisionomia política do Médio Oriente e o horizonte do Povo de Deus. Os Ptolomeus eram relativamente tolerantes para com o judaísmo, mas, com os Selêucidas, a cultura helénica tornou-se agressiva, ameaçando pôr em causa a sobrevivência do judaísmo. Foi, sobretudo, no reinado de Antíoco IV Epífanes (175-164 a.C.) que o helenismo foi imposto, pela força, ao Povo de Deus. E muitos judeus – apostados em manter vivas as suas tradições – foram perseguidos e mortos.
É a época em que a família de Matatias coordena a resistência contra os Selêucidas e contra a sua pretensão de impor ao Povo de Deus a cultura e os valores helénicos. O apelido “Macabeus” (do hebraico “maqqebet”: “martelo”) vem de Judas, filho de Matatias, mas passou a designar toda a família de resistentes aos Selêucidas. A luta dos Macabeus foi coroada de êxito, com a independência da Judeia e com a restauração do Templo de Jerusalém.
O trecho em apreço coloca-nos neste cenário de perseguição e de resistência contra as pretensões selêucidas. Conta-nos o martírio de uma mãe e dos sete filhos, que recusaram violar a fé e as tradições. É uma tradição popular (embora com substrato histórico), transmitida oralmente, antes de ser integrada no 2.º livro dos Macabeus. O narrador não dá indicação acerca do lugar do martírio, nem do nome dos sete irmãos.
Uma mulher e os seus sete filhos foram presos à ordem das autoridades selêucidas. Recorrendo à tortura, os algozes tentaram obrigá-los a abandonar a fé e a comer carne de porco, proibida pela Lei judaica, por ser carne de animal impuro. Após breve apresentação inicial da questão, ouvimos a resposta de alguns desses irmãos aos perseguidores. Os jovens revelam-se mais preocupados com a fidelidade aos valores judaicos e à fé dos pais do que com as ameaças do rei: “Estamos prontos para morrer, antes que violar a lei de nossos pais”, diz um. “Tu, malvado, pretendes arrancar-nos a vida presente, mas o Rei do universo ressuscitar-nos-á para a vida eterna, se morrermos fiéis às suas leis”, diz outro. “Do Céu recebi estes membros e é por causa das suas leis que os desprezo, pois do Céu espero recebê-los, de novo”, diz o terceiro. “Vale a pena morrermos às mãos dos homens, quando temos a esperança em Deus de que Ele nos ressuscitará; mas tu, ó rei, não ressuscitarás para a vida”, diz o quarto. Todos eles responderam de modo similar. Os sete, sem cederem às exigências das autoridades selêucidas, foram mortos por causa da fé. No final, foi martirizada aquela mãe heroica que, apesar do sofrimento que sentia ao ver os filhos torturados e assassinados, não cessou de os exortar a perseverar na fé.
O que lhes deu coragem para enfrentarem as exigências dos algozes foi a fé na ressurreição. Os sete irmãos tiveram a coragem de defender a fé até à morte, porque acreditavam que, mantendo-se fiéis, Deus lhes devolveria a vida, que daria continuidade à que lhes seria tirada. O Deus criador tem, segundo esta catequese, o poder de ressuscitar os mártires para outra vida, no além.
No entanto, é de referir que esta ideia de ressurreição não coincide com a noção neotestamentária. Enquanto a perspetiva neotestamentária fala da ressurreição no sentido da vida nova, da vida plena, da vida transformada e elevada à máxima potencialidade, diferente da que temos, enquanto peregrinamos na Terra, as afirmações destes jovens parecem referir-se mais à revivificação, à possibilidade de se receber, no outro Mundo, vida semelhante à que se tinha na terra (um dos jovens fala em “receber de novo” os “membros” que lhe seriam arrancados pelos carrascos). Em todo o caso, é a ideia da imortalidade que subjaz a todo este texto. E um pormenor sugere que a revivificação não se destinará a todos os homens, sem exceção, mas apenas aos justos.
Seja como for, é a primeira vez que a doutrina da ressurreição é apresentada na Bíblia com tal clareza. Doravante, desenvolver-se-á até ser iluminada pelo exemplo e pelo ensinamento de Jesus.

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No Evangelho (Lc 20,27-38), Jesus, ante um grupo de saduceus que pretende ridicularizar a fé na ressurreição, garante que a morte não terá a última palavra na sorte dos homens. O Deus de Jesus e nosso é o Deus da vida. Preparou para os filhos uma vida surpreendentemente nova, diferente de tudo o que conhecemos na Terra, a vida onde as nossas aspirações e anseios serão plenamente realizados. É essa a meta final da nossa caminhada.
Estamos no mês de Nisan do ano 30. Jesus está em Jerusalém, a cidade santa onde, segundo a tradição, irromperá a salvação. Aproxima-se a celebração da Páscoa judaica e a cidade está cheia de peregrinos. São dias antes da prisão, da condenação e da crucifixão de Jesus.
Provavelmente, Jesus ficara hospedado em Betânia, a cerca de três quilómetros de Jerusalém, em casa dos seus amigos Lázaro, Marta e Maria. Pernoitava em Betânia, mas, de manhã cedo, descia o Monte das Oliveiras, atravessava o vale do Cedron e entrava pela Porta Dourada, a oriente, que dava acesso ao Monte do Templo. Por aí ficava durante o dia, rodeado pelos discípulos, a ensinar nos átrios do Templo. Neste cenário, terão lugar controvérsias que, nestes dias, O oporão às autoridades religiosas. Discussão após discussão, fica assente que os líderes judaicos rejeitam Jesus e se prepara o quadro da paixão e da morte na cruz. O trecho em causa apresenta-nos uma dessas controvérsias, em que os interlocutores de Jesus são os saduceus.
Ao tempo, os saduceus eram um grupo aristocrático, recrutado, sobretudo, entre os sacerdotes da classe superior. Exerciam a sua autoridade à volta do Templo e dominavam o Sinédrio. A sua importância política era real, embora limitada pela presença do procurador romano (que residia em Cesareia Marítima, na costa palestiniana, mas que ia a Jerusalém na altura das grandes festas). Politicamente, eram conservadores e colaboravam com as autoridades romanas. Interessava-lhes a estabilidade política e social, para não verem comprometidos os benefícios políticos, sociais e económicos de que desfrutavam. Só lhes interessava a Lei escrita, isto é, os mandamentos e preceitos que constavam da Torah. Negavam que a Lei oral (essencial, para os fariseus) tivesse algum valor. O apego à Lei escrita explica a negação de crenças e de doutrinas admitidas nos ambientes populares frequentados pelos fariseus. Por isso, não aceitavam a ressurreição dos mortos, considerando que nenhum versículo da Torah apoiava tal crença.
No conflito com os fariseus, estava em jogo certa visão da sociedade e do poder. Aos saduceus não agradava a democratização da Lei promovida pelos fariseus e pelos escribas, que apresentava o inconveniente de fazer os sacerdotes perderem a sua autoridade como intérpretes da Lei. Ante o povo, os saduceus eram distantes, severos e intocáveis.
Um grupo de saduceus dirige-se a Jesus, quando Ele ensinava nos átrios do Templo. Lucas não diz se o fazem por iniciativa própria ou por indicação das autoridades do Templo. O problema que trazem a Jesus é sobre a ressurreição dos mortos. Percebe-se que o objetivo não é esclarecer um ponto teológico duvidoso, mas atrapalhar Jesus e ridicularizá-Lo.
Lembraram-lhe a “lei do levirato”: se um homem, depois de casar com uma mulher, morrer, sem deixar descendência, um dos irmãos deve casar com a viúva, para dar descendência ao falecido e impedir que os bens da família vão para mãos estranhas. Depois, contaram-Lhe a história da mulher que casou, sucessivamente, com sete irmãos, que morreram um após outro, sem deixarem filhos. No final da narrativa, surge a pergunta sarcástica: “Na vida futura, de qual dos irmãos “será ela esposa, visto que os sete irmãos a tiveram por mulher?”
A resposta de Jesus é formulada em duas partes. Na primeira, Jesus refere-se ao modo como será a vida futura; na segunda, afirma a realidade da ressurreição.
Na primeira declaração, Jesus rejeita a forma pueril como os saduceus representam a vida que há de vir. Está convicto de que a vida futura não consistirá na mera revivificação do corpo, em retomar a vida em moldes semelhantes à que da Terra, mas será totalmente nova e distinta, de plenitude que dificilmente podemos entender a partir das realidades quotidianas e da experiência atual. Como exemplo, Jesus aduz a questão do casamento, trazida à baila pela narrativa dos saduceus: “Os filhos deste mundo casam-se e dão-se em casamento. Mas os que forem dignos de tomar parte na vida futura e na ressurreição dos mortos não se casam, nem se dão em casamento, pois nem podem morrer, porque são como os Anjos e porque são filhos de Deus, por terem nascido da ressurreição.” Os saduceus não criam nos anjos, mas a maioria dos que estavam nos átrios do Templo a ouvir Jesus estavam familiarizados com as crenças judaicas, segundo as quais esses seres não precisavam de comer, de beber ou de se casar. A Humanidade encontrará, no Mundo futuro, nova forma de vida, radicalmente diferente da que vive, enquanto caminha na Terra. As velhas estruturas, as desigualdades e injustiças desaparecerão; e o domínio do homem sobre a mulher jamais existirá.
Jesus não diz como será a vida futura, sendo a questão essencial não o saber como será a vida que há de vir, mas o confiar que o amor de Deus oferecerá aos seus filhos uma surpreendente vida nova, totalmente outra, sustentada pelo amor, em que as nossas capacidades cederão à plenitude, e que nos situará num horizonte de felicidade infinda. É só isso que conta.
Em seguida Jesus, recorrendo Escritura, garante a realidade da ressurreição. Como os saduceus não reconheciam a autoridade de quaisquer livros além da Torah, Jesus não evoca textos tardios da Bíblia Hebraica que se referem à vida do mundo que há de vir (como, por exemplo, Dn 12,2-3: “muitos dos que dormem no pó da terra acordarão, uns para a vida eterna, outros para a ignomínia, para a reprovação eterna”), mas cita um episódio da Torah, quando Deus, no Sinai, declara a Moisés: “Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob” (cf Ex 3,6). São palavras que integram as dezoito bênçãos que os judeus piedosos recitam três vezes ao dia e que, por isso, eram bem conhecidas dos saduceus. O raciocínio de Jesus é objetivo: se Deus Se apresenta assim, muitos anos depois de Abraão, Isaac e Jacob terem desaparecido, quer dizer que os patriarcas não estão mortos. Se estivessem mortos, errariam no sheol, o mundo das sombras onde Deus não intervém; mas, se Javé é o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, é porque estão vivos, ao lado de Deus, em comunhão com Deus. A ressurreição é pois, segundo Jesus, realidade inquestionável e é em direção a ela que rumamos.

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A segunda leitura (2Ts 2,16-3,5) deixa indicações a todos os que esperam a segunda vinda do Senhor. Não estão sozinhos. Deus acompanha-os, conforta-os ao longo do caminho e ajuda-os a permanecerem firmes “em toda a espécie de boas obras e palavras”. E convida-os a manterem diálogo frequente com Deus: a oração aproxima-os de Deus e torna-os solidários com os irmãos.
Tendo respondido às dúvidas dos Tessalonicenses sobre a segunda vinda do Senhor e convidado os membros da comunidade a manterem-se fiéis às tradições que dele receberam “por palavra ou por carta”, o apóstolo dirige-se a Deus Pai e a Jesus Cristo, pedindo-Lhes que confortem os corações dos Tessalonicenses e “os tornem firmes em toda a espécie de boas obras e palavras”. Paulo deixa claro algo a que já antes tinha aludido: no plano da salvação, cooperam a ação de Deus e a resposta do homem. Deus, tendo chamado o homem à salvação, dá-lhe a força e o discernimento para percorrer o caminho da vida. Sem a graça de Deus, o esforço do homem seria inútil. A salvação é, acima de tudo, dom de Deus, que o homem é convidado a acolher.
Depois, Paulo passa a outro nível. Pede, antes de mais, aos cristãos da comunidade de Tessalónica que rezem por ele, a fim de que o trabalho pastoral que vem levando a cabo dê bons frutos (“irmãos, orai por nós, para que a palavra do Senhor se propague rapidamente e seja glorificada, como acontece no meio de vós”). Pede que rezem para que o apóstolo seja protegido dos que fazem tudo para evitar a difusão do Evangelho (“orai também, para que sejamos livres dos homens perversos e maus, pois nem todos têm fé”). A oração de uns pelos outros é preciosa forma de cristã solidariedade. Manifesta a comunhão que une todos os membros do Corpo de Cristo. Uns e outros – os Tessalonicenses e Paulo e companheiros de missão – necessitam do auxílio de Deus para superarem os obstáculos que lhes aparecem no caminho.
Paulo, sereno e confiante, sabe que “Deus é fiel” e que sempre cuidará dos seus filhos que caminham num mundo de incertezas e de dificuldades. E acredita que os cristãos de Tessalónica, com a ajuda de Deus, continuarão a percorrer, empenhada e fielmente, o caminho da fé.
Nas palavras dirigidas aos cristãos de Tessalónica paira o perfume da confiança e da esperança. Eles não estão sozinhos, indefesos e perdidos, ante a hostilidade do Mundo. Antes, caminham de mãos dadas com os irmãos na fé, rezando uns pelos outros e confiando, totalmente, na fidelidade de Deus. Assim, avançam, tranquilos e confiantes, ao encontro do Senhor que vem.

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Aleluia. Aleluia. Jesus Cristo é o Primogénito dos mortos. / A Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos.

2025.11.09 – Louro de Carvalho


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