domingo, 2 de novembro de 2025

De coração partido entre “Todos os Santos” e “Todos os Defuntos”

 

O mês de novembro começa, em ambiente católico, com a “Solenidade de Todos os Santos”, no dia 1, e com a “Comemoração de Todos os Fiéis Defuntos”, no dia 2.
A Solenidade dos Santos (que inclui, obviamente, as Santas) remete-nos para o culto a todos e a todas as pessoas que nos precederam na fé e que, se fossem conhecidas, nos serviriam de exemplo e de estímulo à vivência em comunhão com Deus, com todas as demais pessoas e com a Natureza. Este não é dia dos santos ou das santas da nossa devoção, mas de todos e de todas aqueles e aquelas que nos precederam na fé, de forma visível ou no escondimento do anonimato: não ficam excluídos os beatos e as beatas, nem os canonizados e as canonizadas, mas, se há alguma preferência, ela vai para os santos e para as santas que, apesar de gozarem da visão direta do rosto de Deus, ninguém teve a ousadia de propor para beatificação e para canonização, ou seja, todos os e as que estão no estado celestial. E são “todos, todos, todos e todas, todas, todas”, não sendo lícito excluir ninguém, pela condição social, pelo estado civil, pelo estado eclesial, pela etnia, pela cor da pele, pelo sexo, pela idade.
Todos os santos e santas merecem o culto de dulia (veneração) e podem ser nossos intercessores junto de Deus. Por isso, cantamos, na Litania Sanctorum: “Omnes sancti et sanctae Dei, intercedite pro nobis” (“Todos os santos e santas de Deus, intercedei por nós”).
Porém, como ensina o abade São Bernardo de Claraval, “os santos não precisam das nossas honras e nada podemos oferecer lhes com a nossa devoção” e de nada lhes aproveitam “o nosso louvor, a nossa glorificação e até esta mesma solenidade”, ou seja, não vale a pena “tributar honras terrenas a quem o Pai celeste glorifica, segundo a promessa verdadeira do Filho”.
Realmente, “venerar a sua memória interessa-nos a nós, e não a eles”. Com efeito, interessa-nos implorar a sua intercessão, junto de Deus, e imitar as suas virtudes, segundo a nossa condição de vida. Contudo, Bernardo de Claraval sustenta que a recordação dos santos excita ou aumenta em nós o desejo do gozo da sua amável companhia, de merecermos ser concidadãos e comensais dos espíritos bem-aventurados, de sermos integrados na assembleia dos patriarcas, na falange dos profetas, no senado dos apóstolos, no inumerável exército dos mártires, na comunidade dos confessores, nos coros das Virgens; enfim, de nos reunirmos e nos alegrarmos na comunhão de todos os Santos.
Ao mesmo tempo, aguarda-nos a Igreja triunfante dos primogénitos, que não conhece limitações, nem vicissitudes; desejam os santos a nossa companhia; esperam-nos os justos.
Recordar os santos far-nos-á despertar para o nosso estatuto de ressuscitados com Cristo, almejando as coisas do alto e saboreando-as, far-nos-á correr para os que nos aguardam, far-nos-á preparar com as aspirações da alma para entrar na presença dos e das que nos esperam. Não devemos, porém, só desejar a companhia dos santos, mas também a sua felicidade, ambicionando a glória daqueles e daquelas por cuja presença suspiramos. De facto, ao comemorarmos os santos, outro desejo nos invade: que, tal como a eles, Cristo, nossa vida, Se nos manifeste e que nos manifestemos nós com Ele, revestidos de glória. É que, de momento, a nossa “Cabeça” (Cristo) revela-Se-nos não como é, mas como encarnou, não coroada de glória, mas rodeada dos espinhos dos pecados. Isso concita em nós a atitude do arrependimento e a da esperança de que chegará o momento da vinda de Cristo. Aparecerá a Cabeça gloriosa e, com ela, resplandecerão os membros glorificados, quando Ele transformar o nosso corpo mortal e o tornar semelhante ao corpo glorioso da Cabeça, que é Ele. “Mas para podermos esperar tal glória e aspirar a tamanha felicidade, devemos desejar, ardentemente, a intercessão dos santos, a fim de nos ser concedido pelo, seu patrocínio, o que as nossas possibilidades não alcançam”, ensina São Bernardo.

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A Liturgia da Palavra da solenidade, fala-nos, simbolicamente da multidão de 144 mil (cf Ap 7,2-4.9-14), provenientes de todos os cantos do Orbe e de todas as condições – o que significa ““todos, todos, todos e todas, todas, todas” – que têm em comum virem da “grande tribulação” e terem lavado as túnicas e as terem branqueado “no sangue do Cordeiro”. Por isso, clamam: “A salvação ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro.” E, mais adiante: “Ámen! A bênção e a glória, a sabedoria e a ação de graças, a honra, o poder e a força ao nosso Deus, pelos séculos dos séculos. Ámen!”
O apóstolo João (1Jo 3,1-3) ensina-nos, que somos filhos de Deus e que essa condição, que nos deve alegrar, significa que Ele nos amou, ama e amará, e que deixaremos de O ver, como agora, por um baço espelho, para O vermos tal como Ele é. E – mais um motivo para celebrarmos os santos – “todo aquele que tem n’Ele esta esperança purifica-se a si mesmo, para ser puro, como Ele é puro”. Foi isto que fizeram todos os santos e santas que, agora, festejamos.
E, no Evangelho (Mt 5,1-12a), Jesus indica-nos a via da santidade, acessível a todos – no ermo, no mosteiro, no convento, na família, na paróquia, no trabalho, no desporto, na cultura, na arte – a novos e velhos, a solteiros, casados e viúvos, sonantes ou anónimos. Porém, os parâmetros da bem-aventurança, felicidade ou santidade não são os do século, como honras, poder, prestígio, riqueza, adulação. Ao invés, são a pobreza, ao menos, em espírito, a mansidão, as lágrimas (não de raiva, mas de compaixão), a fome e a sede de justiça (não a dos tribunais, mas a que atende às necessidades de todos, no respeito e na otimização da sua dignidade), a misericórdia, a simplicidade de olhar (que espelhe a pureza de coração), a construção da paz desarmada e desarmante, a aceitação da perseguição (não a sua procura) pelo Reino de Deus, e até a calúnia, o insulto, a tortura e a morte (não procurados temerariamente), por causa do Evangelho.
Enfim, celebrar “Todos os Santos” implica aprender e praticar o caminho da santidade, mesmo que seja o da santidade de ao pé da porta, mas que seja entrega nas mãos de Deus, em quem totalmente confiamos, e na doação ao próximo, sobretudo, aos mais carecidos, aos que se sentem um peso para a sociedade, não os pondo no lugar de Cristo, mas vendo Cristo neles.

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Se o coração dos crentes exulta com a Solenidade de Todos os Santos, por outro lado, a saudade dos mortos traz-lhe alguma perturbação. É legítimo ter saudade de quem partiu antes de nós, mas devemos saber que, humanamente, as pessoas só morrem, quando os familiares, os amigos, os conterrâneos, os concidadãos e os que partilham a certeza da fraternidade humana e universal as votam ao esquecimento, o que não deixaremos que suceda. Ao mesmo tempo, sabemos que quem partiu antes de nós vive na memória subversiva de Jesus Ressuscitado e emerge no tesouro espiritual da Igreja, que reza, canta e celebra, tentando purificar-se em cada dia que passa.
É lícito que, também neste dia, recordemos a memória dos nossos familiares e amigos, que estão cada vez mais próximos de nós, só nos separando o “rio” que liga as duas margens. Todavia, este dia é de comemoração de “todos, todos, todos e de todas, todas, todas” aqueles e aquelas que já partiram, cuja memória devemos venerar – e fazemo-lo, com unção, com garbo e com respeito – e que podem precisar das nossas orações de sufrágio. Neste dia, não podemos excluir ninguém da nossa oração, mesmo que se trate de pessoas de quem não gostávamos.       
Assim, no dia 2, veneramos a memória de todos os e as que partiram. Fazemo-lo movidos pelo sentido de “justiça, de reconhecimento e de solidariedade” para com aqueles e para com aquelas que deram o melhor de si ou deram mesmo tudo, ou só viveram de forma discreta. A quem lutou por grandes causas – religiosas, políticas, militares, sociais, culturais e humanitárias – aplica-se, como uma luva, o verso horaciano “Dulce et decorum est pro patria mori” (“é doce e belo morrer pela pátria”). Com efeito, se falham as demais recompensas merecidas da parte de quem as deve propiciar, resta o conforto do dever cumprido, a consciência da honra, do valor, da lealdade, da vida vivida em pleno ou na discrição do anonimato. Em todo o caso, é de agradecer a Deus os benefícios que lhes concedeu e os que nos concedeu a nós, através deles.
Quem tem a radicação pessoal e comunitária da fé sabe, nestes momentos de memória, exprimir a certeza de que aqueles e aquelas que, antes de nós, partiram – irmãos e irmãs, em termos cristãos e humanos – estão no eterno “descanso do guerreiro” e cumprem a sábia previsão de Job: “Eu sei que o meu redentor vive e prevalecerá, por fim, sobre o pó da terra. (…) Eu mesmo O verei, os meus olhos e não outros o hão de contemplar!” (Jb 19,25.27). Na verdade, como diz São Paulo, na 1.ª Carta aos Coríntios, fomos justificados pelo sangue de Cristo, do Cristo, que, pela sua morte, nos reconciliou com o Pai, pelo que teremos a vida que não tem fim. E isto é motivo de consolação e de glória (cf Rm 5,5-11).
De facto, acima da lucidez e da vontade humana, está o desígnio e a vontade de Deus, que determinou, na versão evangélica de São João (cf Jo 6,37-40), que o Filho viesse ao Mundo para fazer a vontade do Pai, que é: “todo aquele que vê o Filho e Nele crê tenha a vida eterna”; e o Filho ressuscitá-lo-á no último dia. Por isso, costumamos rezar pelos/as que dormem, agora, o sono da paz, enquanto aguardam a ressurreição no fim dos tempos. Todos ansiamos, efetivamente, por um novo amanhecer. A este respeito, lembro-me de que a homenagem militar aos mortos reflete esta crença e esperança cristãs, terminando com o toque da alvorada.
Como ensina Judas Macabeu (cf 2Mac 12,43-46), magnífica recompensa está reservada para aqueles que morrem piedosamente, pelo que é piedoso e santo pensamento orar pelos defuntos, para que sejam, definitivamente, libertos de suas culpas. 
A este respeito, é oportuno reler um excerto do Livro de Santo Ambrósio, bispo de Milão,
sobre a morte do seu irmão Sátiro, sob o título “Morramos com Cristo, para vivermos com Ele”.
Porque a morte pode ser lucro e a vida castigo, Paulo afirma: “Para mim, viver é Cristo e morrer é lucro”. Ora, Cristo é morte do corpo e espírito de vida, pelo que é preciso morrermos com Ele, para vivermos com Ele. Por isso, o exercício diário deve ser o amor da morte, para que a alma, afastando os desejos corpóreos, aprenda a elevar-se para as alturas, aonde o prazer terreno não chega nem a atrai, e assim receba a imagem da morte para não incorrer no castigo da morte. A lei da carne contradiz a lei do espírito e quer submetê-la à lei do erro. E o remédio para isto é a graça de Deus por Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos libertará deste corpo mortal.
“Temos médico, apliquemos o remédio”, sentencia Ambrósio, exortando a que “nos afastemos do corpo, para não nos afastarmos de Cristo”, e a que, apesar de vivermos no corpo, “não sigamos o que é do corpo, nem nos sujeitemos às exigências da natureza, mas prefiramos os dons da graça”.
O Mundo foi resgatado pela morte de um só, Cristo, que podia não ter morrido, mas julgou que não devia fugir à morte, como se fosse inútil, porque a considerou o melhor meio para nos salvar. Portanto, a sua morte é a vida de todos. Porque recebemos o sinal sacramental da sua morte, anunciamo-la, na oração, proclamamo-la, na Eucaristia. E a sua morte é vitória, é sacramento, é solenidade anual em todo o Mundo.
Depois de mostrarmos, com o exemplo divino, que só a morte logrou a imortalidade e se redimiu a si própria, não devemos chorar a morte, nem fugir dela, pois o Filho de Deus não a desprezou, nem a evitou, e ela é a causa da salvação universal. A morte não fazia parte da natureza, mas tornou-se natural. Deus não a instituiu, ao princípio, mas deu-a como remédio. Condenada pelo pecado a trabalho contínuo e a lamentações insuportáveis, a vida do homem começou a ser miserável. Deus pôs fim a estes males, para a morte restituir o que a vida tinha perdido. De facto, a imortalidade seria mais penosa do que benéfica, se não fosse promovida pela graça.
A nossa alma aspira a sair do estreito círculo desta vida, a libertar-se do peso do corpo terreno e a caminhar para a assembleia eterna aonde só chegam os santos, para aí cantar o louvor de Deus, como cantam, os celestes tocadores da cítara: “Grandes e admiráveis são as tuas obras, Senhor Deus omnipotente; justos e verdadeiros são os teus caminhos, Rei das nações. Quem não há de temer e glorificar o teu nome? Porque só Tu és santo, e todos os povos virão adorar-Te. A nossa alma deseja partir do Mundo para contemplar as tuas núpcias eternas, ó Jesus, nas quais, por entre o cântico jubiloso de todos os eleitos, a Esposa é acompanhada da Terra ao Céu – a Ti acorrerão todos os homens – já não sujeita ao Mundo, mas unida ao Espírito.” Era isto que David desejava contemplar e admirar, quando dizia: “Uma só coisa peço ao Senhor, por ela anseio: habitar na casa do Senhor todos os dias da minha vida, para viver na alegria do Senhor.”

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E este momento celebrativo, que é de sufrágio pelos mortos, nem por isso deixa de constituir um poderoso apelo à revisão da nossa vida, para vermos como vai a nossa esperança em Deus, assim como o cultivo das virtudes de fortaleza, de prudência, de justiça e de temperança, que emolduram o ser humano. Como atesta Paulo, na 2.ª Carta aos Coríntios (cf 2Cor 5,1.6-10), quando esta morada, que é o nosso corpo, for desfeita, outra morada receberemos nos Céus. E esta é eterna, porque obra de Deus e não dos homens. Por isso, devemos empenhar-nos em ser agradáveis a Deus, na postura connosco próprios, em boa consciência, e na relação com os outros, na linha da solidariedade, da justiça e da caridade, como convém à nossa condição de irmãos. E esta postura, aliada à generosidade do nosso Deus, alimenta a esperança num futuro mais risonho e na vida eterna. Com efeito, como garantiu Jesus a Marta (cf Jo 11,21-27), Ele é a ressurreição e a vida; e quem acredita n’ Ele viverá. Por consequência, é-nos proposto que, tal como Marta, confessemos que Ele é o Messias, o Filho de Deus, que havia de vir ao Mundo. 
Num ato de memória por quem partiu antes de nós e nos interpela, rezamos e vivemos a Eucaristia partilhando o Corpo e Sangue do Senhor, alimento de quem peregrina na fé e na esperança enquadrado pela viva comunidade dos crentes (cf Jo 6,51-58), concretizando, no “hoje”, a visão de Isaías (cf Is 25,6a.7-9): o Senhor, em quem pusemos a confiança, serve a todos os povos um banquete de manjares suculentos. Por isso, o momento é de saudade, mas também de alegria, por causa da salvação. Com efeito, todos ressuscitaremos – ninguém ficará para trás –, como garante, na 1.ª Carta aos Tessalonicenses (cf 1Ts 4,13-18), Paulo, o apóstolo que pretende que nos confortemos, mutuamente, com estas palavras de fé.
Por fim, apraz-nos fazer votos por que os vivos do tempo presente nunca desdigam dos princípios e dos valores que nortearam os nossos antepassados, no cumprimento dos deveres para com Deus e para com o próximo, nas diversas circunstâncias da vida (no quotidiano e nos grandes momentos), pela Sociedade, pela Igreja e pela Família, servindo, com espírito de entrega, de confiança e com a dádiva da vida, se preciso for, e fazendo sempre jus aos princípios, aos valores e ao bem-estar de todos, sobretudo, dos que mais precisam, sem deixar ninguém para trás,  sem a espera de qualquer outra recompensa que não a do sentido do dever cumprido, como é imperativo de humanidade e de solidariedade. Sempre de pés na Terra e de olhos no Céu!

2025.11.02 – Louro de Carvalho

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