domingo, 16 de novembro de 2025

TC dissipará dúvidas de inconstitucionalidade atinentes à nacionalidade

 

O diploma que altera a Lei da Nacionalidade e o que altera o Código Penal, criando a pena acessória de perda de nacionalidade para naturalizados que cometam crimes graves, ambos aprovados na Assembleia da República (AR), há duas semanas, pelos partidos da direita parlamentar, passarão pelo cadinho dos juízes do Tribunal Constitucional (TC), em modo de fiscalização preventiva, ou seja, antes da promulgação ou do eventual veto político do Presidente da República (PR).
Contudo, desta feita, a iniciativa não será do PR, como sucedeu com a Lei de Estrangeiros, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), mas do grupo parlamentar do Partido Socialista (PS), nos termos do n.º 4 do mesmo artigo da CRP, uma vez que se trata de uma lei orgânica, podendo o requerimento ao TC, além do PR, ser da lavra do primeiro-ministro (o que,  no caso não era expectável) ou de um quinto dos deputados à AR em efetividade de funções.
Recorrendo, pois, à prerrogativa constitucional do n.º 4 do artigo da CRP (requerimento por deputados), que, em 146 apreciações preventivas sujeitas ao TC, desde a sua fundação, em 1983, apenas foi usada duas vezes – ambas pelo Partido Social Democrata (PSD): uma, em 2005 (lei do referendo), e outra, em 2006 (lei das finanças regionais), não tendo os juízes não deram razão a nenhuma delas –, o grupo parlamentar do PS, o único partido da oposição, nesta matéria, que dispõe do número suficiente de deputados para o efeito, enviará os dois diplomas para os juízes do Palácio Ratton.
A quem estranha que o PS não tenha esperado pela decisão do PR o partido responde que, entre o PS e a Presidência da República, “há troca de informações, mas não se combinam políticas”.
Como foi referido, a razão que assiste ao PS é o facto de se tratar de leis orgânicas, entre as quais se contam as que versam a aquisição, a perda e a reaquisição da cidadania portuguesa. Por outro lado, no conjunto dos partidos que votaram contra os dois diplomas – o PS, o Partido Comunista Português (PCP), o Livre, o Bloco de Esquerda (BE) e o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) –, o PS, com 58 deputados, é o único cujo grupo parlamentar com o número suficiente de deputados para perfazer a exigência de um quinto (46), embora, no caso de insuficiência, pudesse negociar com deputados dos outros partidos em causa.
O requerimento do PS terá de entrar no TC até oito dias após a chegada dos dois diplomas à Presidência da República, que ocorreu no dia 11 de novembro – isto, por força do n.º 3 do artigo 278.º da CRP. A iniciativa socialista será, pois, formalizada na próxima semana e dela só constarão assinaturas de deputados do PS, isto é, não se associarão os outros partidos que votaram contra).
No caso da alteração ao Código Penal, o diploma estabelece que um tribunal pode determinar a perda da nacionalidade portuguesa atribuída a um nascido no estrangeiro, se este for “condenado em pena de prisão efetiva de duração igual ou superior a quatro anos”. É vasta a lista dos crimes elencados: contra a vida, contra a integridade física, contra a liberdade pessoal, contra a liberdade e autodeterminação sexual, associação criminosa, crimes contra a segurança do Estado, auxílio à imigração ilegal, terrorismo, detenção de arma proibida, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas.
O deputado do PS Filipe Neto Brandão arguiu, nas redes sociais, com a “manifesta inconstitucionalidade” do decreto. Aliás, foi com receio disso que esta parte foi autonomizada pelo PSD em decreto próprio, apesar de, originalmente, ter chegado à AR numa única proposta de lei do governo, no caso, a revisão da Lei da Nacionalidade. Segundo o deputado socialista, não podem “existir distinções” entre os cidadãos que são portugueses por terem nascido em Portugal e os que são portugueses por terem sido naturalizados.
Neste âmbito, o PS está acompanhado, doutrinalmente, por constitucionalistas de renome, como Jorge Miranda e Vital Moreira. Argumentam com a violação do princípio da igualdade, estabelecido n.º 1 da artigo 13.º da CRP, e com o estabelecido no artigo 26.º da CRP, designadamente, o n.º 1 (reconhece a todos direito à cidadania) e o n.º 4 (a privação da cidadania não pode ter por fundamento “motivos políticos).Jorge Miranda diz que um cidadão português é sempre cidadão português.
Vital Moreira, no blogue “Causa nossa”, sustenta que o direito à nacionalidade “goza de proteção constitucional qualificada” e que, embora a CRP não exclua, em termos absolutos, a privação da nacionalidade (n.º 4 da CRP), só poderá ter lugar nos termos constitucionais, isto é, “respeitados os princípios da necessidade e da proporcionalidade, na restrição de tais direitos (artigo 18.º da CRP) e o princípio constitucional da igualdade e não discriminação (artigo 13.º), violados pela referida privação da nacionalidade”. Ora, como a nacionalidade é pressuposto de outros direitos, a sua privação é “uma sanção extremamente grave, em que a vítima passa à situação de estrangeiro”, podendo ser “expulso e extraditado do País, afastado do seu trabalho, da sua família e das suas relações”. É, no dizer de Vital Moreira, “uma pena de morte civil e política, pelo que não surpreende que nunca tenha sido inscrita no Código Penal e que, até agora, a nacionalidade só pudesse perder-se por renúncia, e só admitida no caso de pessoas com outra nacionalidade”.
Assim, além de não poder ter fundamento em motivos políticos, como impõe a CRP, pena de tal gravidade superlativa “só deve ser equacionada, quando tal seja requerido pela proteção de um valor constitucional superior (por exemplo, crime de traição à pátria), e nunca como instrumento oportunista de política penal”. Além disso, prossegue Vital Moreira, “ao abrigo do crucial princípio constitucional da igualdade, os cidadãos nacionais são todos iguais, independentemente do modo de aquisição da nacionalidade, pelo que a origem da nacionalidade não pode sequer constar do cartão de cidadão”. A única exceção é o cargo de PR, que só está aberto a cidadãos nacionais de origem, mas, por definição, “as normas excecionais só valem para os casos nelas contemplados”. Assim, o constitucionalista Vital Moreira conclui: “A privação da nacionalidade não pode ser um instrumento discriminatório de revisão retroativa da aquisição de nacionalidade, que só pode ser definitiva e irreversível.”
Já no caso da Lei da Nacionalidade, o PS, ao invés do candidato presidencial Luís Marques Mendes, identificou uma série de casos práticos que podem ilustrar a insegurança jurídica criada pela nova lei. Isto, sem pôr em causa a discriminação positiva a favor de cidadãos originários de países da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da União Europeia (UE) – que necessitam de sete anos de residência e não de dez, como os restantes.
Por exemplo, um cidadão do Reino Unido (extra UE) a residir em Portugal, há quatro anos e meio, quando a lei entrar em vigor, esperará mais seis anos, até adquirir a nacionalidade portuguesa. Um cidadão ucraniano que, na véspera da entrada em vigor da nova lei, cumpre o prazo de residência, em Portugal, para poder requerer a nacionalidade portuguesa, mas não terá nenhuma possibilidade de o fazer, porque não ficou previsto nenhum período de transição para o apresentar. Terá de esperar mais cinco anos. E pode acontecer que, só quanto estiver a entrar no 2.º ciclo do ensino básico, com 10/11 anos, uma criança nascida em Portugal filha de um imigrante (mesmo que com visto de residência legal em Portugal, pelo menos, há cinco anos) consiga ser considerado um cidadão português, mesmo nunca tendo vivido noutro país que não Portugal. Ora, a lei ainda em vigor atribui nacionalidade portuguesa à nascença a filhos de imigrantes.
Em pareceres por escrito envia­dos à comissão parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, o Conselho Superior de Magistratura (CSM), a Ordem dos Advogados (OA) e vários constitucionalistas, entre eles, Jorge Miranda, apontaram inconstitucionalidades na nova Lei da Nacionalidade. Tirar um artigo da lei e inscrevê-la, por lei, no Código Penal não lhe retira a inconstitucionalidade. Só um legislador hipócrita pode fazer-nos acreditar nisso. 
Sob fogo tem estado, sobretudo, o articulado que acrescenta ao Código Penal a sanção de perda da nacionalidade portuguesa. Jorge Miranda, que assinou um parecer com Rui Tavares Lanceiro, considerou que se “introduz uma diferenciação entre portugueses, com base no título de aquisição da nacionalidade, algo que gera a potencia­lidade da violação do princípio da universalidade”, sendo que também “suscita questões, relativamente ao princípio da igualdade, nomeadamente, porque um dos fatores enunciados é o território de origem”.

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O chefe de Estado afirmou, a 13 de novembro, que, face ao pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade da Lei da Nacionalidade feito pelo PS, vai esperar que o TC se pronuncie, para, depois, eventualmente, “ponderar politicamente a lei”.
Em resposta a perguntas dos jornalistas, à saída de uma iniciativa do Comité Olímpico de Portugal, num restaurante de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa referiu que tinha acabado de saber que o grupo parlamentar do PS ia pedir a fiscalização preventiva do decreto da AR que altera a Lei da Nacionalidade. “Se [o Tribunal Constitucional] entender que é inconstitucional, o Presidente da República é obrigado a vetar. Se não entender que é inconstitucional, o Presidente da República aí tem um prazo para, eventualmente, ponderar politicamente a lei”, declarou o chefe de Estado.
Interrogado se não tenciona também pedir ao TC a fiscalização preventiva do decreto da AR ou do outro que prevê a perda da nacionalidade, como pena acessória, o PR respondeu, de forma evasiva, que, tendo chegado de Angola, “não tinha apreciado nem um nem outro dos diplomas” e que o que sabia foi “pela comunicação social.
O decreto que revê a Lei da Nacionalidade, entre outras alterações, aumenta os prazos para os estrangeiros que residem legalmente em Portugal adquirirem a nacionalidade portuguesa e restringe a sua atribuição a quem nasce em Portugal. O decreto que altera o Código Penal para criar a pena acessória de perda de nacionalidade pode aplicar-se a quem é nacional de outro Estado e seja condenado com pena de prisão efetiva de quatro anos ou mais, nos dez anos posteriores à aquisição da nacionalidade portuguesa. Estes dois decretos foram aprovados com a mesma votação, por mais dois terços dos deputados, uma maioria que permite a sua eventual confirmação mesmo que venham a ser declaradas inconstitucionalidades pelo TC.

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Em artigo de opinião intitulado “Uma lei sem sentido veta-se!”, publicado no Expresso online, a 11 de novembro, Henrique Monteiro disse que “gostaria de apelar ao veto de uma lei já aprovada e que não tem pés nem cabeça”. E, em concreto, no atinente à perda de nacionalidade, por parte de quem comete crimes graves, escreveu: “Quanto mais penso na Lei da Nacionalidade, mais me convenço de que o Presidente da República a tem de enviar para o Tribunal Constitucional, e mais acredito que o TC tem o dever de reprovar uma das suas normas por inconstitucional.”
A quem “argumenta com países onde essa prática existe, sem ser posta em causa”, o colunista contrapõe que Portugal não é igual a esses países, nem no ordenamento jurídico básico, muito menos no plano constitucional”. E, pela positiva, aduz que “a ideia de igualdade perante a lei deve ser aplicada a todos os portugueses – parafraseando uma expressão do Papa Francisco que se tornou viral, ‘todos, todos, todos’ – independentemente da sua origem”.
Verificando que o português de origem, se cometer um crime ominoso, não pode ver retirada a sua nacionalidade, ao passo que o português naturalizado pode, Henrique Monteiro considera que tratamos “de uma forma desigual o que é igual”, pois a mesma nacionalidade é fator e condição de igualdade. Aliás, recorda que os cuidados postos na atribuição da nacionalidade visam prevenir que “quem entra possa ser alguém capaz de cometer crimes ou qualquer espécie de danos no país que o acolhe”. Contudo, é sempre possível alguém fazer “algo de condenável”. Não obstante, na opinião do colunista, “alguém que quis e se esforçou por ser um de nós, um português, não pode deixar de o ser, porque nenhum de nós pode deixar de ser o que é depois de o ser”. Por isso, esperava que o PR enviasse ao TC esta norma e que este a invalidasse.
Ao mesmo tempo, julga desejável diminuir os prazos para a obtenção da nacionalidade e que os filhos de imigrantes legais nascidos em Portugal obtenham, imediatamente, a nacionalidade portuguesa.

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Os partidos do governo e o Chega criticam o PS por enviar a Lei da Nacionalidade ao TC, com base em divergências políticas. E o Chega acusa-o de traição, pela tentativa de “voltar a atrasar uma lei”, o que “é traição ao povo português”, pois, de forma burocrática, está “a atrasar uma lei fundamental para o futuro de Portugal”.
Já os partidos do governo admitem que há divergências políticas, mas que estas não são uma inconstitucionalidade. Por outro lado, dizem que o PS esquece que, embora a CRP permaneça, o país mudou. E um deputado do partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) sublinha que “houve o cuidado” de separar os dois decretos, porque “o que levantou mais dúvidas foi a questão da sanção acessória”, prevista na alteração ao Código Penal.
Ora, o exercício das prerrogativas constitucionais por titulares de órgão de soberania, nos estritos termos da CRP, não podem ser classificados de traição. Quando muito, o crime ocorreria em caso de incumprimento da lei ou de incitação ao seu não cumprimento. E, neste momento, ainda não há lei. Pior ainda seria legislar contra a manifesta vontade do povo e/ou dos pareceres de avalizados peritos na matéria e à revelia das entidades que trabalham em prol do universo dos visados pela lei. E, nesse âmbito o dedo aponta-se aos partidos que viabilizaram os decretos em referência.  
As divergências políticas não são neutras: revelam ideologias, valores éticos, questões jurídicas e, em muitos casos (como neste), dúvidas ou certezas de inconstitucionalidade, no atinente a valores que dizem respeito à dignidade da pessoa humana.
Além disso, uma norma não deixa de ser inconstitucional por sair duma lei para outra. Neste aspeto, a manobra dos partidos do governo é ou hipocrisia ou gozo político.
Por fim, é de questionar o facto de o governo, segundo jornal “Público” de 13 novembro, ter pagado a JSVS, Consulting, 19500 euros por serviços de consultoria jurídica, no âmbito da revisão da Lei da Nacionalidade. Ora, questionado pelo “Público”, o Ministério da Presidência referiu tratar-se “de uma prestação de serviços contratada a um docente universitário e jurista qualificado na matéria em causa altamente técnica, de elevada complexidade e de grande importância jurídica e social”. Pelos vistos, o docente é Jorge Pereira da Silva, da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa. Assim, é de questionar o papel dos juristas do Presidência do Conselho de Ministros ou para quê tantos ministros e secretários de Estado?

2025.11.15 – Louro de Carvalho

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