O
diploma que altera a Lei da Nacionalidade e o que altera o Código Penal,
criando a pena acessória de perda de nacionalidade para naturalizados que
cometam crimes graves, ambos aprovados na Assembleia da República (AR), há duas
semanas, pelos partidos da direita parlamentar, passarão pelo cadinho dos juízes
do Tribunal Constitucional (TC), em modo de fiscalização preventiva, ou seja,
antes da promulgação ou do eventual veto político do Presidente da República
(PR).
Contudo, desta feita, a iniciativa não será do PR, como sucedeu com a Lei de Estrangeiros, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), mas do grupo parlamentar do Partido Socialista (PS), nos termos do n.º 4 do mesmo artigo da CRP, uma vez que se trata de uma lei orgânica, podendo o requerimento ao TC, além do PR, ser da lavra do primeiro-ministro (o que, no caso não era expectável) ou de um quinto dos deputados à AR em efetividade de funções.
Contudo, desta feita, a iniciativa não será do PR, como sucedeu com a Lei de Estrangeiros, nos termos do n.º 1 do artigo 278.º, da Constituição da República Portuguesa (CRP), mas do grupo parlamentar do Partido Socialista (PS), nos termos do n.º 4 do mesmo artigo da CRP, uma vez que se trata de uma lei orgânica, podendo o requerimento ao TC, além do PR, ser da lavra do primeiro-ministro (o que, no caso não era expectável) ou de um quinto dos deputados à AR em efetividade de funções.
Recorrendo,
pois, à prerrogativa constitucional do n.º 4 do artigo da CRP (requerimento por
deputados), que, em 146 apreciações preventivas sujeitas ao TC, desde a sua
fundação, em 1983, apenas foi usada duas vezes – ambas pelo Partido Social
Democrata (PSD): uma, em 2005 (lei do referendo), e outra, em 2006 (lei das
finanças regionais), não tendo os juízes não deram razão a nenhuma delas –, o
grupo parlamentar do PS, o único partido da oposição, nesta matéria, que dispõe
do número suficiente de deputados para o efeito, enviará os dois diplomas para
os juízes do Palácio Ratton.
A
quem estranha que o PS não tenha esperado pela decisão do PR o partido responde
que, entre o PS e a Presidência da República, “há troca de informações, mas não
se combinam políticas”.
Como
foi referido, a razão que assiste ao PS é o facto de se tratar de leis
orgânicas, entre as quais se contam as que versam a aquisição, a perda e a reaquisição
da cidadania portuguesa. Por outro lado, no conjunto dos partidos que votaram
contra os dois diplomas – o PS, o Partido Comunista Português (PCP), o Livre, o
Bloco de Esquerda (BE) e o partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) –, o PS, com
58 deputados, é o único cujo grupo parlamentar com o número suficiente de deputados
para perfazer a exigência de um quinto (46), embora, no caso de insuficiência,
pudesse negociar com deputados dos outros partidos em causa.
O
requerimento do PS terá de entrar no TC até oito dias após a chegada dos dois
diplomas à Presidência da República, que ocorreu no dia 11 de novembro – isto,
por força do n.º 3 do artigo 278.º da CRP. A iniciativa socialista será, pois,
formalizada na próxima semana e dela só constarão assinaturas de deputados do
PS, isto é, não se associarão os outros partidos que votaram contra).
No
caso da alteração ao Código Penal, o diploma estabelece que um tribunal pode
determinar a perda da nacionalidade portuguesa atribuída a um nascido no
estrangeiro, se este for “condenado em pena de prisão efetiva de duração igual
ou superior a quatro anos”. É vasta a lista dos crimes elencados: contra a
vida, contra a integridade física, contra a liberdade pessoal, contra a
liberdade e autodeterminação sexual, associação criminosa, crimes contra a
segurança do Estado, auxílio à imigração ilegal, terrorismo, detenção de arma
proibida, tráfico de armas, tráfico de estupefacientes ou de substâncias
psicotrópicas.
O
deputado do PS Filipe Neto Brandão arguiu, nas redes sociais, com a “manifesta
inconstitucionalidade” do decreto. Aliás, foi com receio disso que esta parte
foi autonomizada pelo PSD em decreto próprio, apesar de, originalmente, ter
chegado à AR numa única proposta de lei do governo, no caso, a revisão da Lei
da Nacionalidade. Segundo o deputado socialista, não podem “existir distinções”
entre os cidadãos que são portugueses por terem nascido em Portugal e os que
são portugueses por terem sido naturalizados.
Neste
âmbito, o PS está acompanhado, doutrinalmente, por constitucionalistas de
renome, como Jorge Miranda e Vital Moreira. Argumentam com a violação do
princípio da igualdade, estabelecido n.º 1 da artigo 13.º da CRP, e com o
estabelecido no artigo 26.º da CRP, designadamente, o n.º 1 (reconhece a todos
direito à cidadania) e o n.º 4 (a privação da cidadania não pode ter por
fundamento “motivos políticos).Jorge
Miranda diz que um cidadão português é sempre cidadão português.
Vital
Moreira, no blogue “Causa nossa”, sustenta que o direito à nacionalidade “goza
de proteção constitucional qualificada” e que, embora a CRP não exclua, em
termos absolutos, a privação da nacionalidade (n.º 4 da CRP), só poderá ter
lugar nos termos constitucionais, isto é, “respeitados os princípios da
necessidade e da proporcionalidade, na restrição de tais direitos (artigo 18.º
da CRP) e o princípio constitucional da igualdade e não discriminação (artigo
13.º), violados pela referida privação da nacionalidade”. Ora, como
a nacionalidade é pressuposto de outros direitos, a sua privação é “uma
sanção extremamente grave, em que a vítima passa à situação de estrangeiro”,
podendo ser “expulso e extraditado do País, afastado do seu trabalho, da sua
família e das suas relações”. É, no dizer de Vital Moreira, “uma pena de morte
civil e política, pelo que não surpreende que nunca tenha sido inscrita no
Código Penal e que, até agora, a nacionalidade só pudesse perder-se por
renúncia, e só admitida no caso de pessoas com outra nacionalidade”.
Assim,
além de não poder ter fundamento em motivos políticos, como impõe a CRP, pena
de tal gravidade superlativa “só deve ser equacionada, quando tal seja
requerido pela proteção de um valor constitucional superior (por exemplo, crime
de traição à pátria), e nunca como instrumento oportunista de política penal”.
Além disso, prossegue Vital Moreira, “ao abrigo do crucial
princípio constitucional da igualdade, os cidadãos nacionais são todos
iguais, independentemente do modo de aquisição da nacionalidade, pelo que a
origem da nacionalidade não pode sequer constar do cartão de cidadão”. A única
exceção é o cargo de PR, que só está aberto a cidadãos nacionais de origem,
mas, por definição, “as normas excecionais só valem para os casos nelas
contemplados”. Assim, o constitucionalista Vital Moreira conclui: “A
privação da nacionalidade não pode ser um instrumento discriminatório de
revisão retroativa da aquisição de nacionalidade, que só pode ser definitiva e
irreversível.”
Já
no caso da Lei da Nacionalidade, o PS, ao invés do candidato presidencial Luís Marques
Mendes, identificou uma série de casos práticos que podem ilustrar a
insegurança jurídica criada pela nova lei. Isto, sem pôr em causa a
discriminação positiva a favor de cidadãos originários de países da Comunidade
de Países de Língua Portuguesa (CPLP) e da União Europeia (UE) – que necessitam
de sete anos de residência e não de dez, como os restantes.
Por
exemplo, um cidadão do Reino Unido (extra UE) a residir em Portugal, há quatro
anos e meio, quando a lei entrar em vigor, esperará mais seis anos, até
adquirir a nacionalidade portuguesa. Um cidadão ucraniano que, na véspera da
entrada em vigor da nova lei, cumpre o prazo de residência, em Portugal, para
poder requerer a nacionalidade portuguesa, mas não terá nenhuma possibilidade
de o fazer, porque não ficou previsto nenhum período de transição para o
apresentar. Terá de esperar mais cinco anos. E pode acontecer que, só quanto
estiver a entrar no 2.º ciclo do ensino básico, com 10/11 anos, uma criança
nascida em Portugal filha de um imigrante (mesmo que com visto de residência
legal em Portugal, pelo menos, há cinco anos) consiga ser considerado um
cidadão português, mesmo nunca tendo vivido noutro país que não Portugal. Ora,
a lei ainda em vigor atribui nacionalidade portuguesa à nascença a filhos de
imigrantes.
Em
pareceres por escrito enviados à comissão parlamentar de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, o Conselho Superior de
Magistratura (CSM), a Ordem dos Advogados (OA) e vários constitucionalistas,
entre eles, Jorge Miranda, apontaram inconstitucionalidades na nova Lei da
Nacionalidade. Tirar um artigo da lei e inscrevê-la, por lei, no Código Penal
não lhe retira a inconstitucionalidade. Só um legislador hipócrita pode
fazer-nos acreditar nisso.
Sob
fogo tem estado, sobretudo, o articulado que acrescenta ao Código Penal a
sanção de perda da nacionalidade portuguesa. Jorge Miranda, que assinou um
parecer com Rui Tavares Lanceiro, considerou que se “introduz uma diferenciação
entre portugueses, com base no título de aquisição da nacionalidade, algo que
gera a potencialidade da violação do princípio da universalidade”, sendo que
também “suscita questões, relativamente ao princípio da igualdade, nomeadamente,
porque um dos fatores enunciados é o território de origem”.
***
O
chefe de Estado afirmou, a 13 de novembro, que, face ao pedido de fiscalização
preventiva da constitucionalidade da Lei da Nacionalidade feito pelo PS, vai
esperar que o TC se pronuncie, para, depois, eventualmente, “ponderar
politicamente a lei”.
Em resposta a perguntas dos jornalistas, à saída de uma iniciativa do Comité Olímpico de Portugal, num restaurante de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa referiu que tinha acabado de saber que o grupo parlamentar do PS ia pedir a fiscalização preventiva do decreto da AR que altera a Lei da Nacionalidade. “Se [o Tribunal Constitucional] entender que é inconstitucional, o Presidente da República é obrigado a vetar. Se não entender que é inconstitucional, o Presidente da República aí tem um prazo para, eventualmente, ponderar politicamente a lei”, declarou o chefe de Estado.
Em resposta a perguntas dos jornalistas, à saída de uma iniciativa do Comité Olímpico de Portugal, num restaurante de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa referiu que tinha acabado de saber que o grupo parlamentar do PS ia pedir a fiscalização preventiva do decreto da AR que altera a Lei da Nacionalidade. “Se [o Tribunal Constitucional] entender que é inconstitucional, o Presidente da República é obrigado a vetar. Se não entender que é inconstitucional, o Presidente da República aí tem um prazo para, eventualmente, ponderar politicamente a lei”, declarou o chefe de Estado.
Interrogado
se não tenciona também pedir ao TC a fiscalização preventiva do decreto da AR
ou do outro que prevê a perda da nacionalidade, como pena acessória, o PR respondeu,
de forma evasiva, que, tendo chegado de Angola, “não tinha apreciado nem um nem
outro dos diplomas” e que o que sabia foi “pela comunicação social.
O
decreto que revê a Lei da Nacionalidade, entre outras alterações, aumenta
os prazos para os estrangeiros que residem legalmente em Portugal adquirirem a
nacionalidade portuguesa e restringe a sua atribuição a quem nasce em Portugal.
O decreto que altera o Código Penal para criar a pena acessória de perda de
nacionalidade pode aplicar-se a quem é nacional de outro Estado e seja
condenado com pena de prisão efetiva de quatro anos ou mais, nos dez anos
posteriores à aquisição da nacionalidade portuguesa. Estes dois decretos foram
aprovados com a mesma votação, por mais dois terços dos deputados, uma
maioria que permite a sua eventual confirmação mesmo que venham a ser
declaradas inconstitucionalidades pelo TC.
***
Em
artigo de opinião intitulado “Uma lei sem sentido veta-se!”, publicado no Expresso
online, a 11 de novembro, Henrique Monteiro disse que “gostaria de apelar
ao veto de uma lei já aprovada e que não tem pés nem cabeça”. E, em concreto,
no atinente à perda de nacionalidade, por parte de quem comete crimes graves,
escreveu: “Quanto mais penso na Lei da Nacionalidade, mais me convenço de que o
Presidente da República a tem de enviar para o Tribunal Constitucional, e
mais acredito que o TC tem o dever de reprovar uma das suas normas por
inconstitucional.”
A quem “argumenta com países onde essa prática existe, sem ser posta em causa”, o colunista contrapõe que Portugal não é igual a esses países, nem no ordenamento jurídico básico, muito menos no plano constitucional”. E, pela positiva, aduz que “a ideia de igualdade perante a lei deve ser aplicada a todos os portugueses – parafraseando uma expressão do Papa Francisco que se tornou viral, ‘todos, todos, todos’ – independentemente da sua origem”.
A quem “argumenta com países onde essa prática existe, sem ser posta em causa”, o colunista contrapõe que Portugal não é igual a esses países, nem no ordenamento jurídico básico, muito menos no plano constitucional”. E, pela positiva, aduz que “a ideia de igualdade perante a lei deve ser aplicada a todos os portugueses – parafraseando uma expressão do Papa Francisco que se tornou viral, ‘todos, todos, todos’ – independentemente da sua origem”.
Verificando
que o português de origem, se cometer um crime ominoso, não pode ver retirada a
sua nacionalidade, ao passo que o português naturalizado pode, Henrique
Monteiro considera que tratamos “de uma forma desigual o que é igual”, pois a mesma
nacionalidade é fator e condição de igualdade. Aliás, recorda que os cuidados postos
na atribuição da nacionalidade visam prevenir que “quem entra possa ser alguém
capaz de cometer crimes ou qualquer espécie de danos no país que o acolhe”. Contudo,
é sempre possível alguém fazer “algo de condenável”. Não obstante, na opinião do
colunista, “alguém que quis e se esforçou por ser um de nós, um português, não
pode deixar de o ser, porque nenhum de nós pode deixar de ser o que é depois de
o ser”. Por isso, esperava que o PR enviasse ao TC esta norma e que este a
invalidasse.
Ao
mesmo tempo, julga desejável diminuir os prazos para a obtenção da
nacionalidade e que os filhos de imigrantes legais nascidos em Portugal obtenham,
imediatamente, a nacionalidade portuguesa.
***
Os
partidos do governo e o Chega criticam o PS por enviar a Lei da Nacionalidade
ao TC, com base em divergências políticas. E o Chega acusa-o de traição, pela
tentativa de “voltar a atrasar uma lei”, o que “é traição ao povo português”, pois,
de forma burocrática, está “a atrasar uma lei fundamental para o futuro de
Portugal”.
Já os partidos do governo admitem que há divergências políticas, mas que estas não são uma inconstitucionalidade. Por outro lado, dizem que o PS esquece que, embora a CRP permaneça, o país mudou. E um deputado do partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) sublinha que “houve o cuidado” de separar os dois decretos, porque “o que levantou mais dúvidas foi a questão da sanção acessória”, prevista na alteração ao Código Penal.
Já os partidos do governo admitem que há divergências políticas, mas que estas não são uma inconstitucionalidade. Por outro lado, dizem que o PS esquece que, embora a CRP permaneça, o país mudou. E um deputado do partido do Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP) sublinha que “houve o cuidado” de separar os dois decretos, porque “o que levantou mais dúvidas foi a questão da sanção acessória”, prevista na alteração ao Código Penal.
Ora,
o exercício das prerrogativas constitucionais por titulares de órgão de
soberania, nos estritos termos da CRP, não podem ser classificados de traição.
Quando muito, o crime ocorreria em caso de incumprimento da lei ou de incitação
ao seu não cumprimento. E, neste momento, ainda não há lei. Pior ainda seria
legislar contra a manifesta vontade do povo e/ou dos pareceres de avalizados
peritos na matéria e à revelia das entidades que trabalham em prol do universo
dos visados pela lei. E, nesse âmbito o dedo aponta-se aos partidos que
viabilizaram os decretos em referência.
As
divergências políticas não são neutras: revelam ideologias, valores éticos, questões
jurídicas e, em muitos casos (como neste), dúvidas ou certezas de inconstitucionalidade,
no atinente a valores que dizem respeito à dignidade da pessoa humana.
Além
disso, uma norma não deixa de ser inconstitucional por sair duma lei para
outra. Neste aspeto, a manobra dos partidos do governo é ou hipocrisia ou gozo
político.
Por
fim, é de questionar o facto de o governo, segundo jornal “Público” de 13
novembro, ter pagado a JSVS, Consulting, 19500 euros por serviços de
consultoria jurídica, no âmbito da revisão da Lei da Nacionalidade. Ora, questionado
pelo “Público”, o Ministério da Presidência referiu tratar-se “de uma prestação
de serviços contratada a um docente universitário e jurista qualificado na
matéria em causa altamente técnica, de elevada complexidade e de grande
importância jurídica e social”. Pelos vistos, o docente é Jorge Pereira da
Silva, da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa. Assim, é de questionar
o papel dos juristas do Presidência do Conselho de Ministros ou para quê tantos
ministros e secretários de Estado?
2025.11.15 – Louro de Carvalho
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