“Honrado/a
como a porca de Murça” é um epíteto atribuído a pessoas “de má índole” e,
obviamente, de nenhuma ou pouca honradez, “capazes das piores patifarias”, como
refere Orlando Neves, em “Dicionário das Origens das Frases Feitas” (Lello –
Editores, 1992).
Para Orlando Neves, a explicação para o sentido do epíteto residirá numa lenda que “tem vindo de século para século”. Segundo contam Gomes Monteiro e Costa Leão, em “A Vida das Palavras”, uma porca “assolou, em pleno século VIII, a vila transmontana de Murça e seu termo, em que proliferavam, abundantemente, ursos e javalis”. Os senhores da vila, com o povo, fizeram tantas montarias que extinguiram tais feras ou as escorraçaram para longe, tendo apenas resistido uma enorme porca tão feroz e matreira que se tornara o terror dos povos. Todavia, no ano de 757, o senhor de Murça, mais hábil matreiro do que a porca, tomou a peito matá-la. Liberto de tão incómodo e perigoso hóspede, o povo erigiu o famosos monumento à porca e os habitantes comprometeram-se por si e pelos seus descendentes, a dar ao notável cavaleiro e aos seus herdeiros, até ao fim do Mundo, três arráteis de cera, anualmente, por cada fogo. E o pagamento deste fogo seria pago junto à estátua.
Para Orlando Neves, a explicação para o sentido do epíteto residirá numa lenda que “tem vindo de século para século”. Segundo contam Gomes Monteiro e Costa Leão, em “A Vida das Palavras”, uma porca “assolou, em pleno século VIII, a vila transmontana de Murça e seu termo, em que proliferavam, abundantemente, ursos e javalis”. Os senhores da vila, com o povo, fizeram tantas montarias que extinguiram tais feras ou as escorraçaram para longe, tendo apenas resistido uma enorme porca tão feroz e matreira que se tornara o terror dos povos. Todavia, no ano de 757, o senhor de Murça, mais hábil matreiro do que a porca, tomou a peito matá-la. Liberto de tão incómodo e perigoso hóspede, o povo erigiu o famosos monumento à porca e os habitantes comprometeram-se por si e pelos seus descendentes, a dar ao notável cavaleiro e aos seus herdeiros, até ao fim do Mundo, três arráteis de cera, anualmente, por cada fogo. E o pagamento deste fogo seria pago junto à estátua.
Sobre
o monumento, o Sistema de informação para o Património Arquitetónico (SIPA)
refere-o como uma peça de “arquitetura religiosa, proto-histórica”, situada em
Murça, no distrito de Vila Real. E descreve-o como “um berrão em pedra,
considerado pelos estudiosos como estátua votiva, o que leva a admitir a
existência de um culto zoolátrico, onde determinados animais eram sagrados, mas
a que foi feita a atribuição errada de fêmea, imortalizando-se com a designação
de Porca de Murça”.
A
6 de maio de 2016, a Câmara Municipal de Murça, promoveu a palestra “A Porca de
Murça: Contextualização histórica e social”, inserida nas comemorações do feriado
municipal, em que especialistas debateram o tema da porca e dos berrões. Com
efeito, a porca é berrão, macho.
A
este respeito, não resisto a contar que um dos meus professores de Direito Canónico
(às vezes o direito é torto e sinistro) referi que um noivo dizia à noiva que
gostava dela, porque ela era virgem, mas casaria com ela, ainda que fosse como
a porca de Murça. E o professor, que, afinal, não conhecia o monumento, aludia
a uma porca com muitos leitõezinhos agarrados às suas tetas. Ora, quando passei
por Murça, vi a estátua, mas a porca não tinha leitões, nem tetas.
No
anúncio da referida palestra, a Câmara Municipal de Murça já advertia que “A
Porca de Murça” é, desde há séculos, o símbolo incontestado do concelho e uma
das mais famosas (se não a mais) esculturas zoomórficas do país. Mais do que
qualquer outro monumento, é a chamada Porca de Murça que simboliza a vila. É
uma escultura granítica a representar um quadrúpede”, tendo o povo considerado
que se tratava de uma ursa que devastava a região e que foi necessário
eliminar. “Depois, passou a ser uma porca”, sublinha o anúncio. Porém, “os
atributos masculinos bem visíveis não enganam: é, na verdade, um berrão, do
mesmo género dos que se encontram, frequentemente, na zona oriental de
Trás-os-Montes, relacionados com um culto da fertilidade de povos pré-romanos”.
Seja como for, conclui o anúncio, “é, hoje, um monumento que se ergue,
orgulhoso sobre um plinto, no jardim da praça central, com os seus
impressionantes 2,8 metros (m) de medida no ventre, 1,10 m de altura e 1,85 m
de comprimento.
***
Na
palestra “A Porca de Murça: Contextualização histórica e social”, interveio Alexandra
Vieira, com o trabalho ou artigo “Os Berrões e as Lendas: a Porca de Murça”,
frisando que, ao longo do tempo as comunidades “tentaram explicar e interpretar
os diferentes tipos de vestígios arqueológicos descobertos nas ‘suas terras’,
levando ao surgimento de um conjunto de atitudes e de práticas associadas à
tradição oral e, em particular, à formação de lendas”. E, partindo da análise
da lenda da Porca de Murça, propôs-se “contribuir para o conhecimento do
imaginário associado aos berrões da Idade Ferro”.
Sustentando que uma das principiais finalidades do estudo da tradição oral pretende a “reconstrução ou construção do passado”, através de fontes orais, considera que a tradição oral é “a transmissão de saberes, feita oralmente pelo povo, de geração em geração,” que “podem ser os usos e costumes das comunidades, […] os contos populares, as lendas, os mitos e muitos outros textos que o povo guarda na memória”. No atinente à lenda, afirma que pode ser entendida como “narrativa curta de cariz regional/nacional, perpetuada, geralmente, pela memória popular” ou “relato, transmitido por tradição oral, de factos ou [de] acontecimentos encarados como tendo um fundo de verdade, pelo que são objeto de crença pelas comunidades a que respeitam”.
Sustentando que uma das principiais finalidades do estudo da tradição oral pretende a “reconstrução ou construção do passado”, através de fontes orais, considera que a tradição oral é “a transmissão de saberes, feita oralmente pelo povo, de geração em geração,” que “podem ser os usos e costumes das comunidades, […] os contos populares, as lendas, os mitos e muitos outros textos que o povo guarda na memória”. No atinente à lenda, afirma que pode ser entendida como “narrativa curta de cariz regional/nacional, perpetuada, geralmente, pela memória popular” ou “relato, transmitido por tradição oral, de factos ou [de] acontecimentos encarados como tendo um fundo de verdade, pelo que são objeto de crença pelas comunidades a que respeitam”.
Quanto
aos berrões, tal como os demais vestígios arqueológicos, diz que “podem ser
entendidos como dispositivos mnemónicos que estruturam a memória social das
comunidades locais, os seus costumes e práticas”.
Releva
que, na pesquisa sobre a tradição oral associada à Porca de Murça, detetou
informação díspar, mas que indica de que forma a “Porca” tem sido interpretada,
ao longo dos tempos, pelas comunidades e pelos historiadores.
Segundo
a articulista, a primeira referência é feita, em 1548, por João de Barros, a “um
grande boi feito de pedra muito antigo”, na vila de Murça, junto ao Rio
Tinhela, que cria grandes trutas e que é “terra de muito pão, vinho, azeite e mel”.
Este boi é como o que está na ponte de Salamanca. “Parece que estes bois ficaram
do tempo dos Gregos”, diz o texto.
No
século XVIII, o padre António Carvalho da Costa, na “Corografia Portugueza e
descripçam topográfica do famoso reyno de Portugal”, de 1706, fala de “pedra grande,
em forma de urso, cuja significação (dizem os seus moradores) há de ser a tão
antiga Casa dos Donatários desta vila, antes que os Mouros tivessem o
vencimento da batalha que ganharam a El Rei D. Rodrigo, nos campos de Guadalete,
no ano de 711”.
Mais
refere que os que escaparam se retiraram para a Galiza, para
as Astúrias e para as montanhas de Burgos; que os Mouros, em oito meses, se
tornara senhores de toda a Espanha; que, passados muitos anos, os progenitores
desta Casa recuperaram a vila e as outras duas desta comarca; que, segundo a
tradição, no tempo do rei D. Afonso I de Castela, no ano de 757, achando a
terra povoada de ursos, que destruíam as colmeia, fizeram deles montarias e os
mataram; que, em reconhecimento, os moradores, além dos foros de pão, de vinho e
de dinheiro, lhe pagam os três arráteis de cera, em satisfação do beneficio
recebido; e que, “depois, levantavam gente paga à sua custa para as guerras e
se lhes fazia seu assento ao pé deste urso, com que ganharam nove castelos, que
tem este termo, povoados e sustentados pelos Mouros naquele tempo”.
Em
1875, Pinho Leal, escreve um texto sobre “A porca de Murça”, no seu artigo
sobre Murça de Panoias, que acrescenta novos dados à versão do padre Carvalho
da Costa.
“No
meio da praça da vila e em frente da câmara, vê-se um mono de pedra, que tanto pode
ser um porco, como um urso, um hipopótamo ou um elefante. É a porca de Murça.
Segundo a lenda, era no século VIII, esta povoação e seu termo, assolados por
grande quantidade de ursos e javalis. “Os senhores da vila, secundados pelo
povo, tantas montarias fizeram que ou extinguiram tão daninhas feras ou as
escorraçaram para muito longe. Mas, entre esta multidão de quadrupedes, havia
uma porca (outros dizem uma ursa) que se tinha tornado o terror dos povos, pela
sua monstruosa corpulência, pela sua ferocidade, e por ser tão matreira, que
nunca podia ter sido morta pelos caçadores. Em 757, o senhor de Murça, cavaleiro
de grandes forças e não menor coragem, decidiu matar a porca, e tais manhas
empregou que o conseguiu, libertando a terra de tão incomodo hóspede. Em
memória desta façanha, construiu-se o tal monumento, alcunhado de porca de
Murça, e os habitantes da terra comprometeram-se, por si e por seus sucessores,
a darem ao senhor, em reconhecimento de tão grande benefício, a ele e aos seus
herdeiros, até ao fim do Mundo, cada fogo, três arráteis de cera, anualmente,
sendo pago este foro mesmo junto à porca”.
Também Alexandra Vieira cita o
Arquivo Português de Lendas (2016, online), cuja recolha é de 2002, com informação
de António Martins, 64 anos, de Murça.
De
acordo com essa narrativa, as gentes mais antigas de Murça, em tempos
imemoriais, andavam atormentadas, por causa de “uma ursa, feroz e esfomeada”,
que atacava a povoação em busca de alimento. Violentava as pessoas e chegava a
comer crianças, se as apanhasse. Revoltados com a morte de familiares e amigos,
“os habitantes resolveram enfrentar o medo e lutar contra o feroz animal”.
Reuniram-se os homens mais fortes da aldeia, “traçaram planos e foram à procura
da ursa”. Foi travada uma luta, tendo alguns ficado feridos. Mas “a ursa saiu
derrotada e morta” e “os habitantes regressaram às suas casas vitoriosos e
contentes”. Para que o feito não fosse esquecido, mandou-se erigir “a estátua
de uma ursa em pedra, que foi implantada na praça da povoação, e mudou-se-lhe o
nome para Murça, em homenagem à coragem dos heróis que salvaram a população” (cf.
Arquivo Português de Lendas, 2018).
Em
1548, no período o Renascimento europeu e de interesse pelas sociedades
clássicas, João de Barros associou a figura do berrão a um quadrupede, um boi,
que teria ficado nestas terras, desde tempos muitos antigos (“o tempo dos Gregos”,
por si sugerido).
O
filólogo José Leite de Vasconcelos defende que a versão da lenda relatada pelo padre
Carvalho da Costa “contém elementos literários, porque, na tradição oral, não
se encontram nomes de personagens historicamente definidos, nem datas exatas,
como aqui”.
Alexandra
Vieira adverte que a versão da lenda recolhida no Arquivo Português de Lendas,
apresenta dados mais vagos do que os textos do padre Carvalho da Costa e de
Pinho Leal, não fazendo referência a datas, nem a nomes de personagens
históricas. Assim, a lenda terá vindo a perder pormenores, entre a descrição de
1706 e a atualidade.
O
padre Carvalho da Costa faz referências à invasão árabe da Península Ibérica,
marcada pela derrota, a 11 de julho de 711, do rei visigodo, D. Rodrigo, frente
aos árabes, na Batalha de Guadalete, que marca o fim do Reino Visigodo e o
início do domínio árabe da Península Ibérica. A data de 757 refere-se ao
momento da morte do rei D. Afonso I, das Astúrias, que retoma a Reconquista
Cristã. Trata-se de momentos significativos na História da Península Ibérica e
das suas populações, que veem afetados os seus modos de vida e a sua
subsistência.
Segundo
o padre Carvalho Costa, a porca de Murça (ou a ursa) é caçada pelo “senhor”. Isto
é, há referência a uma casa nobre que, por livrar a população do perigo, teria o
seu poder legitimado sobre o território e sobre o pagamento de impostos. Esta
alusão permite associar a lenda à mitologia medieval que suporta o sistema
senhorial. A este respeito, Alfredo Erias Martínez, escudado na tradição antiga
(Alexandre Magno, imperador Adriano, Carlos Magno, etc.), que deu lugar a ampla
literatura cinegética, em toda a Europa, salienta que, além da guerra, a caça
foi uma prática que concorreu, igualmente, para a edificação de tal mitologia.
E enfatiza que o protagonista destas batidas “heroicas”, é, por excelência, o
cavaleiro.
Na
verdade, a caça de um animal feroz é um feito importante na estabilização das
condições de vida da população e na criação/consolidação do poder de casas (ou
linhagens). E Erias Martínez sustenta que “as genealogias de origem mítica e os
direitos heroicos de guerra ou de caça dos antepassados, reais ou ficcionais,
são fundamentais para a estruturação social da linhagem da nobreza”. Neste
sentido, o nobre cavaleiro surge como “novo herói cristão semidivinizado”,
sendo possível que animais altamente perigosos, como o javali, o urso e o lobo,
tivessem papel relevante nos ritos de iniciação dos guerreiros de povos
antigos, de tal modo que matar um destes animais lhes conferia o estatuto de
“guerreiro”.
Lembra
Erias Martínez que, nas cortes de Lisboa, em 1459, e nas de Évora, em 1460, há
a indicação que se podia caçar veados e outra fauna, com exceção de “ursos e
porcos”, cuja caça era restrita ao rei e à nobreza, para seu “desenfadamento”.
Nas Ordenações Afonsinas, “além de ursos, proibidos em todo o reino [...], de
javalis e perdizes, estava também impedida a caça às lebres, exceto com galgos”.
Isto explicaria o porquê de, nos textos do padre Carvalho da Costa e de Pinho
Leal, surgir a figura do Senhor de Murça, que teria liderado a caça ao
mostrengo, apelidado de ursa, num texto, e de porca, no outro. Por outro lado, o
imaginário popular perde as referências históricas e aos nobres, vincando a
coragem e a valentia dos homens mais fortes da aldeia. É bom exemplo da
História feita mais pelos populares do que pelos nobres.
Por
fim, Alexandra Vieira conclui que a Porca de Murça, tal como é conhecida, e
apesar de ser apelidada de “boi”, de “ursa” ou de “porca”, é a imponente
estátua de um berrão, um macho, em granito, atestado pelas saliências
testiculares. Mas não é caso único. A Porca da Vila de Bragança, a berroazinha
da Açoreira, em Moncorvo, e a berroa de Torre de D. Chama, em Mirandela, são
também interpretadas como fêmeas, apesar de serem representações de machos (ver
Revista Memória Rural, n.º 1, ano 2018).
***
Porém,
como adverte Orlando Neves, fica por explicar “a questão da ‘honradez’, ligada
à porca”. Em minha opinião, a honradez é entendida, popularmente, como fidelidade
à palavra dada, ao compromisso assumido e, no caso da mulher e da donzela, respetivamente,
a fidelidade matrimonial e a manutenção da integridade sexual para o matrimónio.
Por outro lado, é possível que a marcha do tempo tenha levado as pessoas à
rutura do compromisso com os herdeiros do Senhor de Murça, por desleixo ou por
rebeldia, o que dá outro sentido à honra como a da porca de Murça.
Contudo, Orlando Neves, citando Ladislau Batalha, diz que a honradez se relaciona com a estátua, não com a porca, mas com o monumento (pela imobilidade e pelo desgaste-sujidade provocado pelo tempo), em sentido irónico ou ainda pior.
Contudo, Orlando Neves, citando Ladislau Batalha, diz que a honradez se relaciona com a estátua, não com a porca, mas com o monumento (pela imobilidade e pelo desgaste-sujidade provocado pelo tempo), em sentido irónico ou ainda pior.
Paralelamente,
evoca o facto de, no século XIX, as campanhas eleitorais não serem muito
honradas, o que terá levado conotar a política com a “porca”, servindo de propaganda
política a estátua de Murça. Depois, se o Partido Histórico ficava no poder, os
apaniguados pintavam “de azul” a representação da porca; se era o Partido Progressista
que ficava no poder, a representação da estátua “aparecia pintada de vermelho”.
Assim, o monumento à porca passou a simbolizar o trocatintismo, a alternativa política,
a pululação dos/as vira-casacas – enfim, atitudes pouco coerentes ou pouco
honradas, nas suas colorações políticas e em outras, “mutáveis ao sabor das
conveniências”. E o século XXI está polvilhado de exemplos de trocatintismo!
2015.11.12
– Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário