domingo, 30 de novembro de 2025

É preciso reconhecer e acolher Jesus na sua vinda ao Mundo

 

 

O 1.º domingo do Advento, no Ano A (ano cuja proclamação evangélica é mateana), marca o início de novo Ano Litúrgico, cuja primeira etapa é a época natalícia, antecedida de um tempo preparatório a que chamamos Advento, durante a qual proclamamos e meditamos textos bíblicos que abordam o caminho de espera pelo Messias ou Cristo, fazemos o exercício de reconhecimento e de acolhimento de Jesus que vem, agora, ao coração das pessoas que Nele creem e ao seio dos povos que o veem e sentem como Salvador e cultivamos a jubilosa esperança da sua última vinda.
Ao longo dos próximos dias, preparamos o caminho do Senhor para que Ele venha ao nosso encontro e nós O possamos reconhecer e acolher, quando Ele chegar.
A Palavra de Deus que escutaremos, nestes dias, ajudar-nos-á a balizar esse caminho. E a liturgia deste domingo apela à vigilância e à atenção, contra a modorra e contra o adormecimento. Seria dramático se, por comodismo, por desleixo, por indiferença, por distração, perdêssemos o ensejo de acolher Aquele que vem libertar o mundo e imprimir um dinamismo novo à História.

 

Na primeira leitura (Is 2,1-5), Isaías partilha connosco o sonho da paz universal e da comunhão fraterna de todos os povos e nações. Trata-se de promessa de Deus e as promessas de Deus não caem no chão. Aquele cujo nascimento celebraremos no final do advento, foi enviado por Deus ao nosso encontro, para concretizar essa promessa.
Na visão do profeta, o monte do Senhor (sobre o qual está construído o Templo de Jerusalém, onde Deus reside no meio do Seu povo) eleva-se e transforma-se no centro do Mundo, sobressaindo entre todos os montes, não por ser o mais alto, mas por ser a morada de Javé. De toda a parte, chegam caravanas de povos e de nações que confluem para a cidade santa e sobem a montanha, ao encontro do Senhor.
Quem convocou todas essas pessoas e que força as atrai são questões com resposta no cântico que acompanha a sua caminhada: “Vinde, subamos ao monte do Senhor, ao templo do Deus de Jacob. Ele ensinar-nos-á os seus caminhos e nós andaremos pelas suas veredas. De Sião há de vir a lei e de Jerusalém a palavra do Senhor.” Todos vêm atraídos por Javé e pela força da sua Palavra; querem conhecer o ensinamento – a Torah (Lei de Deus) – e ser instruídos nos caminhos de Deus. A Palavra salvadora e libertadora atrai e agarra todos os povos, lança-os num movimento único e universal, reúne-os à volta de Deus, o soberano universal.
À medida que todos se juntam à volta de Deus, escutam a Palavra e aprendem o caminho, vão-se desvanecendo as divisões, as hostilidades, os conflitos que dividem os povos. Efetivamente, todos aceitam a arbitragem justa e pacífica de Deus; compreendem que não são necessárias armas; as máquinas de guerra transformam-se em instrumentos de trabalho e servem para o cultivar da terra. Do encontro com Deus resulta a harmonia, o progresso, o entendimento entre os povos, a vida em abundância, a paz universal. É o reverso do quadro de Babel. Na História da torre de Babel (cf Gn 11,1-9), os homens escolheram o confronto com Deus, o orgulho e a autossuficiência, o que os levou à divisão, ao conflito, à confusão, à falta de entendimento, à dispersão. Agora, os homens escutam Deus e seguem os caminhos indicados por Ele. E, em resultado, celebra-se a reunião de todos os povos, o entendimento, a harmonia, o progresso, a paz universal.
A utopia sonhada por Isaías começa a realizar-se em Jesus. Ele é a Palavra viva de Deus, que Se fez carne e veio habitar no meio de nós, a fim de trazer a “paz aos homens” amados por Deus. Da escuta da Palavra, nasce a comunidade universal da salvação, animada pelo Espírito e aberta a todos os povos da Terra. Se esta “História de Salvação” tem a marca da iniciativa divina, o homem tem de responder, positivamente, à ação de Deus. O profeta alude a gentes de toda a parte, as quais, respondendo ao apelo de Deus, se põem a caminho em direção ao “monte do Senhor”.
Deus chama, mas quem escuta o seu chamamento tem de abandonar a vida cómoda em que se instalou e partir ao seu encontro, disposto a acolher a Palavra de Deus e a deixar-se transformar por ela. O caminho que temos pela frente, leva-nos ao encontro de Jesus. E importa que estejamos dispostos a deixar certezas, seguranças, espaços de conforto, velhos hábitos e preconceitos, para irmos ao encontro de Jesus. Temos de estar dispostos a acolher Jesus na vida, a escutar a sua Palavra, a aderir à proposta que Jesus nos faz, a dar espaço para Jesus, no coração e na vida.
Porém, mais de dois mil anos depois de Jesus, a utopia sonhada por Isaías, parece muito distante. A História continua manchada pela violência, pelo ódio e pelo sangue derramado; a Humanidade continua a recorrer à guerra e ao conflito para resolver os diferendos; a ambição dos grandes do Mundo continua a lançar as nações umas contra as outras; o diálogo entre as nações e os acordos de paz parecem contaminados por cinismo atroz; a injustiça e a exploração fazem crescer, a cada momento, o número de homens e mulheres condenados a uma vida sem sentido e sem esperança; milhões de homens e mulheres continuam a ser, diariamente, atirados para fora da História e abandonados nas bermas das estradas da Humanidade.
Como Jesus não falha, a culpa da situação trágica que assola a Terra é de quem se recusa a acolher as indicações que Ele nos dá. Impedimos e/ou atrapalhamos a chegada do Mundo de justiça, de fraternidade e de paz que Isaías anunciou.

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O Evangelho (Mt 24,37-44) traz-nos parte do discurso de Jesus diante dos discípulos, no Monte das Oliveiras, poucos dias antes da sua paixão e morte. A indicação é clara: vigiarem, estarem sempre preparados, não se distraírem com futilidades, viverem atentos aos desafios de Deus, não esquecerem a Boa nova, olharem, com amor e com misericórdia, os irmãos que caminham ao lado, empenharem-se, a cada instante, na construção de um Mundo mais justo, mais humano e mais feliz. Para os discípulos, desleixo, preguiça, indiferença, conformismo, não são opção. E há uma verdade que deve estar sempre no horizonte do discípulo: a segunda vinda do Senhor é certa, mas é incerto o dia e a hora. Tal convicção deve condicionar o estilo de vida dos discípulos.
Jesus recusa prever o dia e a hora em que tudo acontecerá (“quanto àquele dia e àquela hora, ninguém o sabe: nem os anjos do céu, nem o filho; só o Pai”). Aliás, mais importante do que saber o dia certo e a hora exata é estar preparado para o encontro com o Senhor que vem. Nesse sentido, Jesus recomenda a vigilância e a vivência com sentido de responsabilidade. E, para os discípulos terem plena consciência do que está em causa, Jesus recorre a três exemplos.
O primeiro é o quadro da Humanidade na época de Noé. Os homens viviam em alegre inconsciência, preocupados em aproveitar o momento e em gozar a vida o melhor possível (“nos dias que precederam o dilúvio, comiam e bebiam, casavam e davam-se em casamento”). Quando o dilúvio chegou, apanhou-os de surpresa. Só Noé e a família estavam preparados: entraram na arca que Noé construíra, salvaram as suas vidas e tornaram-se o germe de nova Humanidade. Se gozar a vida ao máximo é para o homem a prioridade fundamental, ele arrisca-se a passar ao lado do que é importante e a não desempenhar o seu papel. Não estará preparado para quando o Senhor vier ao seu encontro.
O segundo exemplo confronta-nos com situações da vida quotidiana, como o trabalho nos campos e a moagem do trigo para fazer o pão. Ambas pertencem ao quadro da vida de todos os dias. Embalados pelo ritmo trivial dos afazeres e dos compromissos diários, corremos o risco de estreitar os horizontes e de perder de vista o que dá sentido à nossa vida. Apesar da monotonia, da fadiga, da acomodação, temos de manter-nos vigilantes e atentos, para reconhecermos o Senhor que, de repente, Se nos apresenta. Por isso, é pertinente que nos interroguemos se será na faina habitual de todos os dias que Jesus nos encontrará, quando vier ao nosso encontro, e se estaremos preparados para Ele e para os desafios que nos traz
O terceiro exemplo refere o caso de um homem que, em vez de permanecer vigilante, adormece e deixa a sua casa desprotegida. Se um ladrão aparecer, a meio da noite, o dono da casa não o impedirá de se apossar dos bens ali guardados. “Adormecer”, descuidar a vigilância, pode levar a perder coisas importantes e, mesmo, falhar a vida.
A quem caminha na História e se defronta, diariamente, com vicissitudes, com contrariedades, com alegrias e com tristezas da vida, Jesus exorta a que viva atento, vigilante, preparados. Jesus não entra em pormenores e não explica em que consiste tal vigilância e tal preparação; mas os discípulos que O escutam sabem do que Ele fala: têm de viver cumprindo, a cada instante, com empenho e responsabilidade, a missão que Deus lhes confiou; têm de olhar permanentemente à volta para detetar, escutar e abraçar os desafios sempre novos que Deus lhes coloca no caminho.

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Na segunda leitura (Rm 13,11-14), Paulo avisa os cristãos de Roma – e os de todas as épocas e lugares – que o tempo passa e que se aproxima o dia da libertação definitiva. Portanto, é altura de abandonarmos as “obras das trevas” e de nos revestirmos das “armas da luz”. O Senhor Jesus vai chegar; temos de estar preparados para o encontro com Ele.
Roma, a capital do império, era, então, uma cidade com cerca de um milhão de habitantes, incluindo cerca de 50 mil judeus. Não se sabe, com pormenor, a origem da comunidade cristã de Roma. Provavelmente, o cristianismo chegou a Roma levado por judeus da Palestina convertidos a Cristo. Uma antiga tradição diz que foi Pedro quem anunciou o Evangelho em Roma, por volta do ano 42, e que, da sua pregação resultou florescente comunidade cristã. Contudo, Paulo, na carta que escreve aos cristãos de Roma, não faz qualquer referência a essa tradição. O que importa saber é que o apóstolo das gentes decide escrever aos cristãos de Roma, quando está prestes a terminar a terceira viagem missionária. Prepara-se para retornar à Palestina, onde entregará os donativos recolhidos em igrejas do Oriente, destinados a ajudar cristãos de Jerusalém.
Porém, sente que terminou a sua missão no Mediterrâneo oriental, pois as igrejas que fundou e acompanhou estão organizadas e podem caminhar sozinhas. Tem planos para se dirigir para Ocidente, inclusive, pensando em ir até à Espanha para aí anunciar o Evangelho.
Dirigindo-se aos cristãos de Roma, aproveita para estabelecer laços com eles e para lhes apresentar os principais problemas que o preocupam, entre os quais sobressai a questão da unidade (problema que a comunidade cristã de Roma, afetada por dificuldades de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos, conhecia bem). Sereno e lúcido, evitando polémicas, expõe-lhes as linhas mestras do Evangelho. Assim, a Carta aos Romanos é uma espécie de resumo da teologia paulina, no ano 57 ou 58.
Na primeira parte da Carta (cf Rm 1,18-11,36), Paulo adverte os cristãos divididos de que o Evangelho é a força que congrega e salva todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Embora o pecado seja realidade universal, que afeta todos os homens, a “justiça de Deus” dá vida a todos, sem distinção; e é em Cristo que essa vida se comunica e transforma o homem. Batizado em Cristo, o cristão morre para o pecado e nasce para a vida nova. É guiado pelo Espírito e torna-se filho de Deus; libertado do pecado e da morte, produz frutos de santificação e caminha para a Vida eterna.
Na segunda parte da carta, Paulo exorta, de forma prática, os cristãos a viverem de acordo com o Evangelho de Jesus. O trecho em apreço pertence a essa segunda parte.
Depois de exortar os cristãos que pertencem à comunidade de Roma ao amor mútuo, Paulo deixa-lhes uma recomendação sobre a forma de esperar o Senhor que vem.
Quando Jesus deixou o Mundo e reentrou na glória do Pai, começou a última fase da História da Salvação. É o tempo da Igreja, aquele em que os discípulos de Jesus, conduzidos pelo Espírito, caminham na História e testemunham a salvação de Deus. Esta fase chegará ao seu termo quando Cristo vier, de novo, no final dos tempos. E os discípulos de Jesus têm de saber como devem viver até lá e que atitude devem assumir, enquanto esperam a vinda do Senhor.
Assim, o apóstolo lembra que o tempo está a passar e que, em cada dia, os cristãos estão a aproximar-se do encontro definitivo com Deus (“a noite vai adiantada e o dia está próximo”). Paulo de Tarso pensava na vinda mais ou menos iminente de Jesus Cristo, a fim de concluir a História da Salvação, Porém, a ausência de especulações apocalípticas mostra que o interesse de Paulo não é o quando e o como, mas o significado e as consequências dessa vinda.
Na ótica paulina, o fundamental é que os discípulos não se deixem adormecer. “Adormecer”, no entendimento de Paulo, é instalar-se numa vida que esteja em contradição com os valores do Evangelho; é acomodar-se à mediocridade, radicar a existência em valores que não dão sentido pleno à vida. O apóstolo fala, concretamente, em “comezainas e excessos de bebida”, “devassidões, libertinagens, discórdias e ciúmes”. Isso é, segundo Paulo, “viver nas trevas”.
Ora, o cristão, ao fazer a opção por Jesus, abandonou as obras das trevas. O seu horizonte passou a ser outro, o de uma vida nova, liberta do egoísmo e do pecado. Revestiu-se de Cristo e, iluminado por Cristo, vive na fé, no amor, no serviço, no perdão, testemunhando a vida de Deus no meio dos irmãos. Identificado com Cristo, é um homem novo. Vive na luz. Mantém-se acordado, atento, vigilante, para não mergulhar, outra vez, nas trevas. Caminha ao encontro de Cristo, de olhos postos na vida que há de vir. Sabe para onde vai e não se deixa tentar por caminhos que não leva a lado nenhum. É assim que os crentes esperam o Senhor que vem.

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Por isso, é gratificante ouvir a comunidade dos crentes cantar com o salmista:

“Vamos com alegria para a casa do Senhor.”

“Alegrei-me quando me disseram: / ‘Vamos para a casa do Senhor’. / Detiveram-se os nossos passos / às tuas portas, Jerusalém.

“Para lá sobem as tribos, as tribos do Senhor, / segundo costume de Israel, para celebrar o nome do Senhor; ali estão os tribunais da justiça, / os tribunais da casa de David.

“Pedi a paz para Jerusalém: / ‘Vivam seguros quantos te amam. / Haja paz dentro dos teus muros, / tranquilidade em teus palácios’.

“Por amor de meus irmãos e amigos, / pedirei a paz para ti. / Por amor da casa do Senhor, / pedirei para ti todos os bens.”

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“Aleluia. Aleluia. Mostrai-nos, Senhor, a vossa misericórdia e dai-nos a vossa salvação.”

 2025.11.30 – Louro de Carvalho

Para o governo belga, empréstimo de indemnização à Ucrânia é errado

 

 

O primeiro-ministro belga, Bart de Wever, em carta, de quatro páginas, criticou os planos para um empréstimo de indemnização à Ucrânia, com palavras duras dirigida à presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, considerando-os perigosos e errados. Por isso, os dirigentes da União Europeia (UE) estão a aceitar a ideia de um plano B, ou seja, a necessidade recorrer a uma solução de financiamento de emergência, para manter a economia ucraniana à tona da água, depois de a Bélgica ter aumentado a fasquia para desbloquear um empréstimo de reparação que reforçaria as finanças de Kiev.
Na verdade, Bart de Wever, reiterou a sua oposição à proposta da UE de utilizar os ativos russos imobilizados e de conceder um empréstimo de reparação à Ucrânia, classificando a ideia de “fundamentalmente errada”. Em alternativa, sugeriu a contração de nova dívida, em vez de tocar nos ativos russos. “Por que razão nos aventuraríamos em águas jurídicas e financeiras desconhecidas, com todas as consequências possíveis, se isso pode ser evitado?”, escreveu o chefe do executivo belga, na referida carta.
No dizer do governante, em vez de utilizar os ativos russos, a UE deverá contrair, conjuntamente, um empréstimo de 45 mil milhões de euros, nos mercados, para cobrir as necessidades financeiras e militares de Kiev, para o próximo ano.
“Esta opção seria, de facto, mais barata do que outras opções, em particular a opção de um empréstimo de reparação, se todos os riscos forem tidos em conta”, observou, aduzindo que o empréstimo de reparação, sem precedentes, corre o risco de provocar o dano colateral de fazer descarrilar os esforços dos Estados Unidos da América (EUA) para conseguirem um acordo de paz entre a Ucrânia e a Rússia – uma visão que entra em conflito com outros líderes que veem os ativos como a maior alavanca do bloco.
Embora concorde com o argumento de que o contribuinte europeu não deve ser o único a pagar a fatura do apoio financeiro à Ucrânia, Bart de Wever fala em realidade jurídica brutal e aduz que, “em nenhum momento da História, os ativos soberanos imobilizados foram ‘reutilizados’ durante uma guerra em curso”. Além disso, ainda que haja cerca de 25 mil milhões de euros espalhados por bancos privados de outros estados-membros, que não divulgam o montante, maior parte dos ativos russos, cerca de 185 mil milhões de euros, está depositada na Euroclear, uma central de depósito de títulos com sede em Bruxelas. E, como sede da Euroclear, a Bélgica receia ser a primeira na linha da retaliação legal de Moscovo e ser responsabilizada pela totalidade do empréstimo, assim como por potenciais danos resultantes de contestações legais.
Esta posição da Bélgica não é nova. Foi declarada, pela primeira vez, numa cimeira de alto nível, em meados de outubro, com a exigência da mutualização total dos riscos, das garantias estanques de outros estados-membros e da máxima transparência para localizar os restantes ativos russos. “Se tirarem o dinheiro do meu país, se correr mal, não sou capaz e, certamente, não estou disposto, a pagar 140 mil milhões de euros numa semana”, disse Bart de Wever, após a dita cimeira.
Desde então, a Comissão Europeia tem estado em conversações com a Bélgica, para encontrar uma solução para as muitas questões jurídicas, financeiras e diplomáticas conexas com o empréstimo. No início de novembro, Ursula von der Leyen enviou uma carta aos líderes da UE, em que gizava três opções principais para apoiar as necessidades orçamentais e militares da Ucrânia: contribuições bilaterais de cada Estado, empréstimos comuns a nível da UE ou um empréstimo de reparação baseado nos ativos russos.
A maior parte dos países, incluindo a Alemanha, a Polónia, os países nórdicos e os países bálticos, apoiaram o empréstimo de reparação, porque este pouparia os seus tesouros de pagarem a conta, pelo menos, inicialmente, e concretizaria a ideia de “fazer a Rússia pagar”.
A 26 de novembro, Ursula von der Leyen reiterou que a via preferida seria a dos ativos russos imobilizados. “Para ser muito clara, não consigo imaginar um cenário em que sejam apenas os contribuintes europeus a pagar a fatura. Isso também não é aceitável. […] Outra coisa que tem de ficar clara é que qualquer decisão sobre este assunto tem de ser tomada de acordo com as regras das jurisdições responsáveis e respeitar o direito europeu e internacional, afirmou.
No dia 27, o chanceler alemão Friedrich Merz disse que a decisão sobre o empréstimo de reparação poderá ajudar a reforçar a voz da UE nas conversações de paz lideradas pelos EUA.
O plano original de 28 pontos incluía um modelo altamente controverso que utilizaria os ativos russos para benefício comercial de Washington e de Moscovo. Tal cláusula terá sido retirada após discussões entre os EUA e a Ucrânia, em Genebra, na Suíça.
A UE insistiu que qualquer disposição relacionada com os ativos russos sob a sua jurisdição exigiria o envolvimento total do bloco. Em contraponto, o presidente russo, Vladimir Putin, afirmou que tocar nos fundos equivaleria a um “roubo” e exigiria “contramedidas” da parte do seu governo.
Os 27 líderes da UE reunir-se-ão, em Bruxelas, a 18 e 19 de dezembro, para decidirem a necessária aprovação do novo programa da Ucrânia com o Fundo Monetário Internacional (FMI).
É de salientar que, na carta a Ursula von der Leyen, o chefe do executivo belga não fecha totalmente a porta aos empréstimos de indemnização, apesar das suas queixas, mas exige “garantias juridicamente vinculativas, incondicionais, irrevogáveis, a pedido, conjuntas e múltiplas”, para cobrir os 185 mil milhões de euros e os eventuais custos de arbitragem contra a Bélgica e contra a Euroclear.
“Alguns poderão pensar que se trata apenas de uma exposição teórica, mas eu estou a dizer que este perigo é, pelo contrário, real e suscetível de acontecer. […] As consequências de uma ação judicial bem-sucedida podem ser muito graves”, escreveu, utilizando a analogia do acidente de avião, cuja probabilidade é baixa, mas, se ocorre, “as consequências são desastrosas”.
Por outro lado, Bart de Wever adverte que o empréstimo pode ser entendido como “confisco ilegal” por nações e por investidores estrangeiros, mesmo que a proposta permita a Moscovo recuperar os ativos, se concordar em compensar os estragos causados pela sua guerra de agressão.
“Infelizmente, estes riscos não são académicos, são reais”, escreveu o governante belga, antecipando: “Se o regime for adotado, devemos esperar efeitos de arrastamento sobre os ativos soberanos detidos por outros Estados não pertencentes à UE, visto que essas nações podem questionar, fundamentalmente, a sua vontade de deter ativos na Europa.”

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O facto de a maior parte dos ativos russos está guardada na Euroclear, uma central de depósito de títulos em Bruxelas, faz com que a Bélgica seja o voto decisivo no debate.
Inicialmente, esperava-se que os líderes da UE conseguissem atenuar as reticências belgas e assinar o projeto empréstimo de indemnização à Ucrânia, sem precedentes, na sua próxima reunião, a 18 de dezembro. Porém, em reviravolta no processo, o primeiro-ministro belga escreveu uma carta mordaz a Ursula von der Leyen, criticando o empréstimo de reparação como “fundamentalmente errado” e repleto de armadilhas jurídicas e financeiras. “Nunca comprometerei a Bélgica a suportar sozinha os riscos e as exposições que decorreriam da opção de um empréstimo de reparação”, vincou.
Bart de Wever exige “garantias juridicamente vinculativas, incondicionais, irrevogáveis, a pedido, conjuntas e solidárias”, para cobrir os 185 mil milhões de euros dos ativos e todas as potenciais consequências, como custos de arbitragem, de juros, de perda de oportunidades de investimento e até a “quantificação do impacto financeiro no crédito do Banco Central da Rússia”. Além disso, pede cobertura total para as participações da Euroclear em “jurisdições favoráveis à Rússia”, que poderiam ser objeto de medidas de retaliação da parte do Kremlin.
Tão alta fasquia para as garantias, que são elemento crucial para desbloquear os empréstimos de reparação, torna exponencialmente mais difícil a aprovação do empréstimo de reparação. E é improvável que os outros líderes da UE consigam aparecer, na cimeira de dezembro, com garantias de vários milhares de milhões de euros que se baseiam, na sua maioria, em cálculo hipotético. Para alguns países, uma estrutura tão complexa exigiria o aval do seu parlamento.
A solução poderia consistir em a UE mobilizar dinheiro nos mercados, para conceder a Kiev uma subvenção não reembolsável que cobriria as suas necessidades financeiras e militares mais imediatas, em 2026. E isso daria aos dirigentes europeus mais tempo para ultrapassarem o impasse sobre o empréstimo proposto, uma tentativa ousada de canalizar para a Ucrânia os ativos imobilizados do Banco Central russo.
Os obstáculos estão a pesar nas mentes dos funcionários e dos diplomatas da UE, que tentam desfazer, o impasse antes que fique sem ajuda externa a Ucrânia, que espera nova injeção de ajuda, o mais tardar, no segundo trimestre de 2026. E, a aumentar a pressão, está um programa de 8,1 mil milhões de dólares que o FMI deverá conceder à Ucrânia. Para que o FMI tome a decisão final, precisa de compromissos firmes da parte dos aliados europeus a fim de garantir a estabilidade macroeconómica de Kiev. Todavia, a urgência fez aumentar, drasticamente, as probabilidades de se encontrar uma solução provisória para colmatar o défice. O financiamento provisório poderia ser apoiado por garantias nacionais ou pelo orçamento da UE, que proíbe, atualmente, a contração de empréstimos a país fora do bloco.
Para alterar as regras do orçamento, é necessária a unanimidade, o que será difícil, devido à oposição inflexível da Hungria a qualquer tipo de ajuda a Kiev. E o obstáculo permanecerá, se os líderes escolhessem a dívida conjunta com o acordo de longo prazo para apoiar a Ucrânia.
Bart de Wever, na carta à presidente da Comissão Europeia, além das vertentes do direito e da economia, abordou a questão no âmbito da política.
Nestes termos, advertiu que avançar, agora, com o empréstimo de reparação pode pôr em risco os esforços da Casa Branca para garantir um acordo de paz que ponha fim à guerra. E considerou que são se podem utilizar os ativos soberanos russos para vários fins ao mesmo tempo: “Ou são imobilizados com o objetivo de financiar a reconstrução da Ucrânia, ou são gastos, agora, para financiar os esforços de guerra ou o orçamento de base da Ucrânia”, explicitou.
Segundo o chefe de governo de Bruxelas, é “muito provável” que a Rússia não seja declarada a “parte perdedora” no conflito, podendo, nesse caso, ter direito a recuperar os seus bens soberanos atualmente sob sanções. Se isso acontecer, o empréstimo de indemnização será anulado e os contribuintes europeus terão de pagar a conta.
Este raciocínio confronta a posição defendida por outros dirigentes da UE, que consideram que os bens russos são a alavanca mais poderosa do bloco. “Temos de chegar, rapidamente, a um acordo adequado, o mais tardar até à cimeira dos líderes da UE, em dezembro, para reforçar a nossa posição negocial e enviar mais um sinal de solidariedade e apoio à Ucrânia”, instou o chanceler alemão Friedrich Merz, no dia 27, espelhando o pensamento de muitos outros.
Os desacordos surgem numa altura precária para os europeus, apanhados desprevenidos pelo plano de paz de 28 pontos (secretamente redigido por funcionários americanos e russos), que se esforçam por cerrar fileiras e projetar unidade política, tirando a UE da insignificância a que foi votada por Donald Trump (com quem firmou um acordo comercial de submissão) e por Vladimir Putin (para quem muitos países da UE, incluindo Portugal, estão muito longe).
O projeto original do plano de paz configurava, como dissemos, um modelo controverso que utilizaria os ativos russos para benefício comercial de Washington e Moscovo – cláusula que terá sido retirada após conversações de alto nível em Genebra, entre os EUA e a Ucrânia.
No entanto, o texto sublinhou o valor dos ativos russos. Para alguns, confirmou a necessidade de aprovar os empréstimos de indemnização. Para outros, fê-los pensar duas vezes.
Por seu turno, o presidente russo avisou que tocar nos fundos equivaleria ao “roubo de propriedade alheia”, pois, de acordo com a proposta do plano de paz, Moscovo seria autorizado a recuperar os bens imobilizados, se concordasse em compensar a Ucrânia pelos danos causados pela guerra. “O governo da Federação Russa, por minha ordem, está a desenvolver um pacote de medidas recíprocas para o caso de isso [o roubo] acontecer”, disse Putin durante um briefing.
Há, ainda, a considerar, a pedra introduzida na engrenagem dos empréstimos à Ucrânia: o escândalo de corrupção que precipitou, embora tardiamente, a demissão Andriy Yermak, o poderoso chefe de gabinete do presidente Volodymyr Zelenskyy e principal negociador do processo de paz. Isto, depois de alguns ministros se terem demitido, no âmbito desse escândalo.
É factual a corrupção nos diversos países e é escandalosa em tempo de crise, sendo, por maioria de razão, mais penosa, quando um país está em guerra. Neste contexto, Volodymyr Zelenskyy terá de endireitar a situação, que é muito má e que, se não houver uma linha de firme correção, será muito mais difícil a Europa aprovar uma nova ronda de financiamento.
No entanto, os diplomatas insistem que a ajuda à Ucrânia, um país na linha da frente da agressão russa, não deve ser associada ao escândalo. Não percebo porquê. De facto, os casos de corrupção devem ser prevenidos, combatidos e penalizados, em qualquer país. Assim, a Ucrânia, cujo governo pode não ter culpas na matéria, tem de mostrar que está a emendar a rota.
Por sua vez, a Comissão Europeia, que tem sido criticada, por não ter levado a sério as preocupações iniciais de Bart de Wever, está a revelar alguma ousadia. “São águas desconhecidas, pelo que é legítimo fazer perguntas e partilhar preocupações. […] Estamos a fazer tudo o que está ao nosso alcance para responder a essas preocupações de uma forma satisfatória, para que todos se sintam confiantes e confortáveis com qualquer solução que venha a ser apresentada, afirmou Paula Pinho, porta-voz da Comissão Europeia.
Questionada sobre se a Comissão passará por cima da Bélgica e avançará com o empréstimo de reparação com maioria qualificada, respondeu: “Ainda não chegámos a esse ponto.”
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Guerra, corrupção, dinheiro e elaboração de projeto de paz orientado para favorecer os grandes são os espinhos políticos, económicos e militares que atormentam a, cada vez mais, martirizada Ucrânia e que revelam as largas fauces do poderoso Ocidente e do poderoso Oriente, a par da fragilidade supina de uma UE cujo executivo já foi galardoado com o Prémio Nobel da Paz.  

2025.11.30 – Louro de Carvalho

sábado, 29 de novembro de 2025

A disparidade de investimento entre géneros prejudica a economia

 

O relatório “The Gender Investiment Gap” (“A disparidade de género”), da Comissão Europeia, revela que apenas cerca de uma em cada cinco empresas tecnológicas da Europa criadas entre 2020 e 2025 incluía, pelo menos, uma mulher fundadora. E, mesmo tendo em conta esta disparidade, as empresas com fundadoras mulheres também receberam menos investimento do que as empresas com fundadores homens.
Por seu turno, o estudo Frontier Economics 2025, de 2 de outubro, sob o título “Empreendedoras: a vantagem competitiva ainda não explorada da europa”, sustenta que maior participação das mulheres no setor do investimento poderia aumentar o produto interno bruto (PIB) da União Europeia (UE) em 600 mil milhões de euros, até 2040.
Os níveis mais elevados de diversidade de género registaram-se na Letónia, com 27%, na Itália, com 25,9%, e em Portugal, com 25,2%. Estas taxas representam a proporção de empresas com, pelo menos, uma mulher fundadora. Em contraponto, permanecem muito abaixo da média europeia (19,3%) países, como a Chéquia, com 9%, e a Hungria, com 14,4%.
A participação equitativa das mulheres empresárias poderia aumentar o PIB da UE em cerca de 600 mil milhões de euros, com países, como a Polónia, a registar um crescimento de 1,6% e os Países Baixos, até 5,5%, até 2040.
A disparidade de género no investimento refere-se às disparidades sistemáticas entre homens e mulheres, no acesso ao capital de risco e na participação na tomada de decisões de investimento.
Entre as pequenas e médias empresas (PME) europeias que solicitam empréstimos bancários, as detidas por mulheres registam taxas de aprovação de empréstimos cerca de 5% inferiores às das empresas detidas por homens. De acordo com o Banco Europeu de Investimento (BEI), isto acontece, mesmo depois de se controlar a idade, a dimensão e o setor.
As disparidades de género estendem-se à propriedade de capital e ao comportamento de investimento, pois os dados mostram que as mulheres investem menos em ativos de retalho.
Atualmente, as mulheres investidoras de retalho controlam cerca de 5,7 biliões de euros, na Europa, um valor que se prevê que aumente para 9,8 biliões de euros, até 2030. E, se as mulheres investissem em condições de paridade com os homens, a Europa poderia mobilizar mais dois a três biliões de euros em ativos privados investíveis.
O relatório da Comissão Europeia afirma: “Estas conclusões apontam para um défice económico, a nível da UE, na ordem das centenas de milhares de milhões de euros, por ano – capital que poderia estar a alimentar a inovação, o emprego e as transições ecológicas e digitais.”
O fosso de investimento entre homens e mulheres tem sido atribuído a diferenças na apetência pelo risco, entre homens e mulheres, bem como às expectativas da sociedade e à educação financeira. Historicamente, o espírito empresarial e o financiamento de risco têm sido domínios masculinos associados à assunção de riscos, à assertividade e ao individualismo.
Os órgãos de decisão no domínio do capital de risco e do capital privado são dominados pelos homens, o que reforça os padrões de investimento existentes. E as expectativas da sociedade, em relação às funções de prestação de cuidados e ao equilíbrio entre a vida profissional e familiar das mulheres continuam a influenciar o seu acesso a redes e capital empresariais.
Segundo o relatório da Comissão Europeia, mesmo em sociedades ditas igualitárias, como os países nórdicos, o pressuposto de que a igualdade entre homens e mulheres já foi alcançada “pode, por si só, funcionar como uma barreira, ocultando preconceitos estruturais existentes”. Em toda a Europa, as mulheres enfrentam uma “dupla exclusão” de género e geográfica.
O capital de risco europeu está baseado, principalmente, em centros em Londres, em Paris, em Berlim e em Estocolmo, o que deixa os fundadores da Europa Central, Oriental e do Sul estruturalmente em desvantagem.

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O relatório “The Gender Investiment Gap” representa um primeiro passo para a construção de uma base de evidências robusta e harmonizada sobre a disparidade de investimento entre géneros, na UE. Concentrou-se tanto em empresas lideradas por mulheres como em fundos de investimento liderados por mulheres no setor de tecnologia avançada. E, ao examinar como fatores estruturais, comportamentais e de mercado se combinam, para limitarem os investimentos em startups ou scaleups inovadoras lideradas ou colideradas por mulheres, ou em fundos de investimento liderados por mulheres, “contribui para a transição da Europa, rumo a uma economia mais inovadora, competitiva e inclusiva”.
É de recordar que start-ups são empresas emergentes com modelo de negócio inovador, escalável e repetível, que procuram crescer rapidamente e solucionar problemas de mercado, geralmente, utilizando a tecnologia como base. A sua principal caraterística é a incerteza inicial e a alta capacidade de adaptação para a enfrentar. Já as scaleups são empresas que já superaram a fase de startup e se encontram num estágio de crescimento acelerado e sustentável. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) define-as como aquelas que crescem à taxa média anual de, pelo menos, 20%, durante três anos consecutivos, com uma força de trabalho de, pelo menos, 10 pessoas. O seu sucesso baseia-se num modelo de negócio escalável, que permite o crescimento exponencial de forma eficiente e rentável. 
Compreender a disparidade de investimento entre homens e mulheres exige mais do que novos dados. Exige o esforço sistemático para conectar, para harmonizar e para interpretar as evidências dispersas pelo ecossistema de pesquisa e de inovação da Europa.
O relatório “The Gender Investiment Gap” reúne esses elementos, pela primeira vez, oferecendo uma avaliação unificada, crítica e voltada para o futuro, tanto de empresas lideradas por mulheres como de fundos de investimento liderados por mulheres. Fá-lo em várias frentes, incluindo: a visão holística do ecossistema e a agregação e a harmonização de dados. Assim, dá o primeiro panorama harmonizado, em toda a UE, da disparidade de investimento entre homens e mulheres, conectando os lados da demanda e da oferta do mercado, em empresas lideradas por mulheres que buscam capital e em fundos liderados por mulheres que o alocam. E reúne o lado da oferta e o lado da demanda (fundadores, startups e scaleups) numa única estrutura.
Por outro lado, agrega e verifica dados disponíveis de múltiplos detentores de dados que, até agora, não foram reunidos e comparados, produzindo uma base de evidências comum que apoie comparações em toda a UE e entre países.
Embora o seu núcleo esteja enraizado na recolha de dados secundários, introduz novas perceções primárias que agregam valor evidente à base de evidências: um conjunto de dados atualizado; evidências qualitativas recolhidas em workshops e em entrevistas nacionais, em mais de dez estados-membros, trazendo as perspetivas de fundadores, de sócios comanditários, de sócios gerais e de formuladores de políticas; um painel piloto protótipo que visualiza indicadores-chave e permite a comparação entre os estados-membros, desde a representação e o acesso a financiamento até ao desempenho de investimento e aos facilitadores contextuais; a avaliação neutra e crítica da qualidade dos dados; uma base para políticas e para monitorização futura; e um ponto de referência pan-europeu. Portanto, o estudo destaca-se, como um parâmetro abrangente e baseado em evidências para a Comissão Europeia, para os estados-membros e para os intervenientes do mercado. Conecta evidências fragmentadas, avalia a sua robustez e tradu-las em informações práticas – criando a primeira base verdadeiramente consolidada para monitorizar, comparar e, em última análise, eliminar a disparidade de investimento entre géneros na Europa. Ao fazê-lo, atualiza os números e reformula a forma como a disparidade é compreendida, medida e abordada, definindo a direção para a futura ação europeia orientada por dados, em matéria de igualdade de género, no capital de risco e na inovação.
Como conclusões, o relatório sustenta que “reduzir a disparidade de investimento entre homens e mulheres, na Europa, é essencial para alcançar as ambições da União, em matéria de inovação, de competitividade e de inclusão; que as mulheres e as equipas diversas enfrentam barreiras estruturais, em toda a cadeia de inovação, desde o acesso ao financiamento e às redes de fase inicial até à expansão para além-fronteiras; e que superar tais barreiras não é só questão de equidade, mas “fundamental para desbloquear todo o potencial de inovação da Europa e para garantir que o investimento público se traduza em crescimento sustentável e de alta qualidade”.
Por conseguinte, enuncia recomendações de complemento e de reforço das estratégias e das iniciativas emblemáticas existentes da UE, incluindo a Nova Agenda Europeia da Inovação, a Estratégia para a Igualdade de Género, o Espaço Europeu da Investigação (EEI), o Programa Europa Digital e o Plano de Ação da União dos Mercados de Capitais (UMC). Tais recomendações estão em linha com os esforços em curso no âmbito do Horizonte Europa, da iniciativa Startup e Scaleup da UE, da Iniciativa de Talentos em Tecnologia Avançada do Instituto Europeu da Inovação e da Tecnologia (EIT) e dos Vales Regionais da Inovação, que visam impulsionar a capacidade de inovação e a competitividade da Europa.
Para construir um ecossistema onde mulheres e fundadores de origens diversas possam aceder a financiamento, a dados e a redes em todas as etapas da jornada de inovação, a UE precisa de conectar o que já existe: evidências, instrumentos e instituições.
Por isso, as recomendações do relatório, que descrevem como transformar a inclusão de objetivo secundário em caraterística estrutural da arquitetura de financiamento da inovação na Europa, são: criar uma infraestrutura comum de dados sobre género, na UE; superar a dificuldade de financiamento entre a WomenTechEU e o EICAcelerador (EICA é European Innovation Council – Conselho Europeu de Inovação); promover uma cultura de avaliação de impacto; aproveitar o poder dos Parceiros Limitados (PL) da UE para apoiar fundos com perspetiva de género; mobilizar capital institucional e bancos nacionais de promoção, através de investimentos com perspetiva de género; e construir plataformas financiadas pela UE que conectem mulheres e mapeiem oportunidades de financiamento
Ao integrar a perspetiva de género no cerne da arquitetura de investimento, a UE liberta todo o seu talento inovador, reforça a resiliência económica e consolida a sua soberania tecnológica. A tarefa que se avizinha não é criar instrumentos, mas conectar e alinhar os existentes – integrando dados de género, de continuidade do financiamento e de diversidade de investidores num sistema coerente. Quando a Europa direciona o capital público de acordo com valores públicos – transparência, inclusão e inovação a longo prazo – os mercados privados acompanham. Eliminar a disparidade de género no investimento não é apenas a coisa certa a fazer; é essencial para a competitividade, a criatividade e a capacidade da Europa de liderar nas tecnologias que definirão a próxima década.

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Também o estudo Frontier Economics 2025 mostra que reduzir a disparidade de género no empreendedorismo representa uma oportunidade económica significativa. Assim, reduzir as barreiras ao empreendedorismo feminino aumentaria o número de empresas produtivas, elevaria a produtividade geral e geraria ganhos substanciais no valor adicionado bruto (VAB), em toda a Europa. Além disso, a pesquisa destaca os obstáculos persistentes enfrentados pelas mulheres empreendedoras e aponta para oportunidades claras de apoio mais direcionado. E, para concretizar esse potencial, requer-se um esforço político contínuo, alinhado com as estratégias da UE para a competitividade, para o mercado único e para as PME.
Assim, com base nos resultados, são propostas cinco prioridades políticas:
* Incorporar a inclusão de género nas estratégias de competitividade e nas PME, visto que são grandes os potenciais benefícios económicos obtidos com a paridade de género, no empreendedorismo. E, para esbater as barreiras que afetam as empreendedoras, a meta de atingir a paridade de género no empreendedorismo deve ser incorporada nas agendas de produtividade, de competitividade e de empreendedorismo da UE e nacionais.
* Melhorar o acesso ao financiamento, abordando as barreiras estruturais no cenário de financiamento. O acesso ao capital é barreira consistente para empresas fundadas por mulheres. De facto, 37% dessas empresas relatam dificuldade em aceder a investidores ou a capital de risco como barreira moderada ou significativa e 39% citam o acesso limitado a financiamento ou crédito como barreira significativa ou moderada. As possíveis ações incluem: esquemas de financiamento específicos; sinalização clara das opções de financiamento; esforço para aumentar a diversidade de género nos financiadores e nos decisores de investimento.
* Simplificar os processos regulatórios e reduzir a complexidade administrativa. Com efeito, empresas fundadas por mulheres são mais propensas do que as fundadas por homens a ter obstáculos regulatórios e institucionais antes do seu sucesso. 40% dessas empresas sentem falta de apoio governamental acessível como barreira moderada ou significativa e 37% sentem a complexidade dos procedimentos administrativos ou de registo e o tempo limitado ou a capacidade para solicitar financiamento como barreiras significativas ou moderadas.
* Apoiar a prontidão e a adoção digital entre empresas lideradas por mulheres. As mulheres empreendedoras são mais propensas a perceber desafios com as ferramentas digitais. Cerca de 25% das suas empresas relatam que a falta de conhecimento, de conscientização ou de confiança no uso de ferramentas digitais é barreira moderada ou significativa. Por isso, o apoio direcionado à digitalização (por exemplo, apoio à criação de lojas online ou à utilização de marketplaces online) ajudará a aumentar a percentagem de mulheres empreendedoras, levando, portanto, a aumentos significativos na produtividade e no VAB.
* Abordar as restrições sociais e de género. Os desafios de gerir um negócio juntamente com as responsabilidades familiares ou de cuidados são generalizados, nas empresas fundadas por mulheres. Essas empresas têm 36% mais probabilidades de reportar isto como barreira significativa ou moderada. Além disso, essas empresas têm 25% mais probabilidades de perceber outros preconceitos ou discriminação como barreira significativa ou moderada. Garantir apoio flexível, inclusivo e alinhado com as políticas de cuidados mais abrangentes mitigará estes desafios. Contudo, a procura baixa de medidas de apoio direcionadas, como o subsídio de creches, sugerem que estas restrições são mais sistémicas e que é necessária uma mudança social e política mais ampla, bem como apoio empresarial personalizado.

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Enfim, há muito caminho por andar na igualdade.

2025.11.29 – Louro de Carvalho

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Sondagens sobre eleições presidenciais podem baralhar o eleitorado

 

Foi publicada, a 27 de novembro, uma nova sondagem, a qual o almirante Gouveia e Melo lidera, quase empatado com André Ventura, não passando João Cotrim de Figueiredo dos 3% votos – dados bem distintos de outras publicadas em outubro e em novembro.
A sondagem foi realizada antes do início dos debates televisivos, que se iniciaram a 17 de novembro. E está ser fortemente contestada pelos outros candidatos, sobretudo, por Cotrim de Figueiredo, como se tratasse de brincadeira ou do intuito de baralhar os eleitores.
Ora, as sondagens refletem o estado aproximado da população num determinado momento, servindo de indicador para a opinião pública, neste caso, o eleitorado, e para os protagonistas do objeto da sondagem, no caso, os candidatos à Presidência da República, cujo ato eleitoral está agendado para 18 de janeiro de 2026.
É certo que, além do indicador referido e ao invés desse objetivo, as sondagens podem ter o efeito perverso de condicionar o voto dos eleitores ou até a sua comparência às urnas, porque já não vale a pena ou porque a eleição está ganha.  Não obstante, o importante não é a sondagem, mas o que os eleitores e/ou os candidatos façam com ela, como sucede com os debates, cujo mérito não está no ganho, mas na gestão que se faça da boa prestação ou na correção da prestação medíocre.
Do meu ponto de vista, a esta sondagem só lhe é apontável o ter vindo a destempo, ou seja, quando a pré-campanha eleitoral já está na rua e nos debates. Já no apeto técnico atinente ao estudos de opinião, não parece que se lhe possa apontar alguma falha, pelo que vale tanto como as demais.
Este relatório baseia-se numa sondagem coordenada por uma equipa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-UL) e do ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), tendo o trabalho de campo sido realizado pela GfK Metris, entre os dias 7 e 17 de novembro de 2025. O seu universo é constituído pelos indivíduos de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 18 anos e com capacidade eleitoral ativa, residentes em Portugal Continental.
Os respondentes foram selecionados através do método de quotas, com base numa matriz que cruza as variáveis sexo, idade (quatro grupos), instrução (três grupos), região (sete regiões NUTS II – Nomenclatura de Unidades Territoriais Estatísticas de nível II) e habitat/dimensão dos agregados populacionais (cinco grupos). A partir de uma matriz inicial de região e de habitat, foram selecionados, aleatoriamente, 99 pontos de amostragem, onde foram realizadas as entrevistas, de acordo com as quotas acima referidas.
A informação foi recolhida através de entrevista direta e pessoal, na residência dos inquiridos, em sistema CAPI – Computer-Assisted Personal Interviewing), uma técnica de entrevista presencial que usa computador ou dispositivo móvel (como um tablet) para conduzir a pesquisa e registar as respostas em tempo real –, e a intenção de voto em eleições legislativas recolhida através de simulação de voto em urna. Foram contactados 2980 lares elegíveis (com membros do agregado pertencentes ao universo) e obtidas 807 entrevistas válidas (com taxa de resposta de 27%, e com taxa de cooperação de 41%). O trabalho de campo foi realizado por 36 entrevistadores, que receberam formação adequada às especificidades do estudo.
Todos os resultados foram sujeitos a ponderação por pós-estratificação, de acordo com a frequência de prática religiosa e com a pertença a sindicatos ou a associações profissionais dos cidadãos portugueses com 18 ou mais anos residentes no Continente, a partir dos dados da vaga mais recente do European Social Survey (Ronda 11). E a margem de erro máxima associada à amostra aleatória simples de 807 inquiridos é de +/- 3,5%, com nível de confiança de 95%.

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Desta vez, a sondagem feita para o Expresso e para a SIC coloca o almirante Henrique Gouveia e Melo e André Ventura, presidente do Chega, com 18% de intenções de voto, cada, um pouco à frente dos 16% de Luís Marques Mendes, antigo presidente do PSD.
Depois, feita a distribuição dos indecisos e a exclusão dos abstencionistas, o almirante fica com 26% das intenções de voto, contra 25% do presidente do Chega. Marques Mendes, apoiado pelo Partido Social Democrata (PSD), continua a seguir, com 23%. António José Seguro, apoiado pelo Partido Socialista (PS) e seu antigo secretário-geral, aparece um pouco mais longe dos três primeiros: 10% (com 14% após distribuição de indecisos). João Cotrim de Figueiredo, ex-presidente da Iniciativa Liberal (IL), não passa dos 3% (e 5%, após a distribuição dos indecisos e a exclusão dos abstencionistas). António Filipe, do Partido Comunista Português (PCP) e antigo vice-presidente do Parlamento, fica-se pelos 2%; Catarina Martins, do Bloco de Esquerda (BE), fica em 1%. E Jorge Pinto, do Livre (L), e Joana Amaral Dias, da Alternativa Democrática Nacional (ADN), nem chegam a 1%, pelo que não aparecem neste estudo.
Quem “ganha” são os indecisos, que são 22% dos inquiridos. E este será um fator essencial para explicar os resultados distintos uns dos outros, comparando as quatro sondagens publicadas nos últimos dias.
Há uma semana, quem surgia à frente, na sondagem da Intercampus era Marques Mendes, e Gouveia e Melo estava em terceiro – e com percentagens bem diferentes. Nenhum passava dos 16%). Além disso, Cotrim aparecia à frente de António Seguro, com mais de 11%. Poucos dias antes, nas contas da Pitagórica, havia empate técnico a envolver o almirante, mas com Marques Mendes, e não com André Ventura – de quem estava próximo Cotrim de Figueiredo.
O candidato apoiado pela IL, que se quer colocar ao nível dos mais bem posicionados, não acredita nos seus 3% e já se queixou desta sondagem. “Que acham disto? Absolutamente inacreditável. Não será isto manipular a opinião dos portugueses? Ou enganaram-se sem querer, ou enganaram-se de propósito. Se se enganaram sem querer, é grave, porque é incompetência. Não seria impossível, porque esta empresa de sondagens sempre subestimou os meus resultados. A três semanas do ato eleitoral das europeias, deram-me menos de metade do resultado que, efetivamente, tive. Se é por erro de propósito, pior ainda. É para quê? É para gerar, aqui, um clima de favorecimento de voto útil do lado de uma candidatura?”, questiona, num vídeo publicado nas redes sociais.

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Se as eleições presidenciais fossem nestes dias, não haveria vencedor à primeira volta e seriam os candidatos André Ventura e Gouveia e Melo a passar à segunda volta. Isto, a menos de dois meses para as eleições presidenciais de 18 de janeiro. Na verdade, André Ventura e Henrique Gouveia e Melo surgem empatados, na sondagem do ICS-UL e do ISCTE-IUL, para a SIC e para o Expresso, ambos com 18% das intenções de voto. E são, apesar de tudo, seguidos de perto e dentro da margem de erro, por Luís Marques Mendes. Há, portanto, empate técnico, a três.
Em quarto lugar, mas a larga distância, está António José Seguro, com 10%. João Cotrim Figueiredo não vai além dos 3%, António Filipe obtém 2% e Catarina Martins só obtém 1%. E Jorge Pinto, candidato apoiado pelo Livre, e Joana Amaral Dias, não chegam a 1%, razão por que não aparecem discriminados. Dos outros candidatos nem se fala.
Neste estudo de opinião, 8% assumem a abstenção e 22% confessam-se indecisos. Sendo assim, como foi referido, distribuídos os indecisos e excluídos os abstencionistas, a vitória (resvés) é de Gouveia e Melo, com 26%. Porém, André Ventura está a seguir, com 25%, e Marques Mendes logo abaixo, com 23%. António José Seguro alcança os 14%, mais 9% do que Cotrim Figueiredo, com 5%. António Filipe e Catarina Martins ficam pelos 2%. Mais longe estão o ex-presidente da IL (5%), o antigo vice-presidente do Parlamento do PCP António Filipe (2%) e a bloquista Catarina Martins (2%).
O trabalho de campo da sondagem terminou, como dissemos, antes ainda de começarem os debates entre os candidatos, pelo que não reflete o impacto que estes possam ter na opinião dos inquiridos. Além disso, os resultados deste estudo de opinião esbarram com os dados de outras sondagens publicadas até agora. Por exemplo, a sondagem da Intercampus para o Correio da Manhã, publicada a 30 de outubro, deixava Henrique Gouveia e Melo fora da segunda volta das eleições presidenciais. Era a primeira vez que isso acontecia ao almirante, que ficou famoso pela sua liderança da task-force da vacinação contra a covid-19 e por algumas declarações e atitudes enquanto chefe do Estado-Maior da Armada (CEMA).
A sondagem da Intercampus colocava Luís Marques Mendes como vencedor e André Ventura no segundo lugar, passando ambos à segunda volta e deixando pelo caminho o antigo coordenador do programa de vacinação, até àquela data favorito das sondagens. O candidato apoiado pelo PSD teria 16,8%, seguido pelo líder do Chega com 15,8%. O almirante na reserva ficaria logo atrás de André Ventura, com 15,4%.
Na segunda volta, Marques Mendes derrotaria qualquer candidato, segundo aquela sondagem. Já Gouveia e Melo perderia contra Luís Marques Mendes, mas derrotaria André Ventura. O candidato apoiado pelo PS, António José Seguro, surgia em quarto lugar, com 12,3%, à frente do candidato da IL, João Cotrim de Figueiredo, com 8,4%. Catarina Martins (BE) teria 7,1% e António Filipe (PCP) 4,6%. Eram números que poderiam mudar, devido ao grande número de indecisos, já que mais de 19% dos inquiridos se inseria na categoria “não sabe/não responde”. Tudo isto apontava, previsivelmente, para as primeiras presidenciais, desde há 40 anos, a precisarem de segunda volta, para que haja uma decisão final. E essa previsão mantém-se, face aos resultados que os dados permitem concluir e face ao aumento de indecisos: de mais de 19% para 22%.  

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Na última vez que o estudo foi feito, a um ano das eleições, o cenário era diferente, com Gouveia e Melo a liderar destacado as intenções brutas de voto (25%). A queda é significativa, mas não indiferente ao facto de, então, haver muita incerteza sobre quem avançava. E o que mudou mais foi a caraterização do eleitorado do almirante: se, em janeiro, a fatia maior dos seus eleitores vinha do centro ou da direita, agora é à esquerda que ele obtém mais votos: 24% dos eleitores que se dizem de esquerda estão com o almirante na reserva (28% com António José Seguro), enquanto apenas 16% dos que se consideram de direita admitem apoiar essa candidatura. Porém, 20% dos eleitores de centro continuam fiéis ao ex-CEMA.
A análise do perfil dos inquiridos permite apurar outra perceção, que deve preocupar os partidos tradicionais: entre as camadas mais jovens (incluindo os jovens e os adultos até aos 44 anos), André Ventura é o escolhido pela grande maioria dos inquiridos: 34% dos mais jovens escolhe-o, enquanto 8% escolhe o almirante e 6% Marques Mendes ou António José Seguro, que não entram nesta faixa etária. Entre os adultos até aos 44 anos, André Ventura tem 25% dos votos, o almirante 15% e Marques Mendes 12%. Também aqui, sobressai o líder do Chega.
Com André Ventura na disputa, com altos níveis de lealdade partidária (87% dos simpatizantes do Chega votam nele, e apenas 2% votam no almirante), a candidatura independente e apartidária de Gouveia e Melo é alimentada, sobretudo, por eleitores do PSD e do PS. Marques Mendes continua a ter metade (50%) dos eleitores do PSD, com Gouveia e Melo a ficar com 24% desses; ao passo que António José Seguro tem dificuldades maiores, atraindo apenas 42% dos simpatizantes do PS, com Gouveia e Melo a conseguir 29% desse universo.
No resto, o perfil do eleitor de Marques Mendes assemelha-se mais ao perfil do eleitor de Gouveia e Melo: maior preponderância de mulheres, de pessoas mais velhas e que consideram ter vida confortável, em termos de rendimento; a diferença maior entre os dois é que Marques Mendes tem mais vantagem entre os que têm mais estudos, enquanto o almirante tem maior peso nos menos instruídos. Mais: Marques Mendes, António José Seguro e o almirante têm dificuldades em entrar nas camadas mais jovens do eleitorado, onde Ventura comanda.
Os eleitores de André Ventura são mais homens do que mulheres, com idades mais jovens, com nível de escolaridade intermédio e com baixo rendimento. Marques Mendes consegue atrair os que não têm simpatia partidária (13% dos inquiridos sem simpatias partidárias admitem votar nele, enquanto 18% admitem ir para o almirante e 11% para Ventura). Ao invés, António José Seguro tem apenas 4% dos inquiridos sem simpatia partidária.
Mais importante do que as sondagens e do que os debates é o que se diz sobre isso. Ou seja, o que mais importa é a perceção criada a partir da prestação de cada candidato. Porém, só a perceção que adira à realidade é que marca. E, sendo as eleições presidenciais bastante pessoalizadas, o período de debates ganha particular relevância, ao permitir aos candidatos darem-se a conhecer como pessoas, mostrarem como reagem em contexto de confronto, revelarem que ideia e valores têm e exprimirem que ideias e valores pretendem transmitir ao eleitorado.
Segundo a Universal McCann (UM), agência de meios do grupo IPG Mediabrands, o primeiro debate entre André Ventura e António José Seguro foi o mais visto da primeira semana de debates, com audiência de um milhão e 520 mil telespectadores, ao passo que o debate entre Gouveia e Melo e Cotrim de Figueiredo foi o menos visto da semana, com a audiência de 1,1 milhões de telespetadores. No meio, está o debate entre Gouveia e Melo e Catarina Martins, com a audiência de 1,3 milhões de telespetadores, e o debate entre Luís Marques Mendes e António Filipe, também com a audiência de 1,3 milhões.
Estas audiências massificadas fazem dos debates televisivos um momento-chave, apesar de a comunicação e a forma de fazer política tenham sofrido profundas alterações, com um consumo cada vez maior de informação pelas redes sociais, muito embora estas fragmentem audiências e acelerem ritmos. Por outro lado, os debates alimentam as redes sociais e são importantes para os eleitores pouco atentos ou indecisos, já que os outros têm preferências relativamente estáveis. Contudo, os debates funcionam como pontos de cristalização da intenção de voto.
No entanto, perversamente, a maior parte dos comentadores dos debates não deixa que o eleitor faça o seu juízo sobre o debate. Antecipando opinião sobre o debate e sobre o mérito-demérito dos intervenientes, chegando a produzir uma avaliação pontuada, condicionam o eleitor e tentam manipulá-lo, ao serviço da posição política do comentador.
Além disso, a folclórica floresta de candidatos (alguns nem têm oportunidade de fazer passar qualquer mensagem) dispersa votos e dá um cunho de menor seriedade ao escrutínio.   
Seja como for, além dos debates, que podem ser decisivos na estabilização do sentido de voto, também as primeiras semanas de janeiro – estrito período da campanha oficial –, farão a diferença, em especial, se houver dramatização na mobilização final, no caso de as sondagens continuarem a não ser conclusivas. Também aqui se confirma o acenso da direita radical.
Enfim, como diz a sabedoria popular, até ao lavar dos cestos, é a vindima.

2025.11.28 – Louro de Carvalho

quinta-feira, 27 de novembro de 2025

O dilema dos candidatos à Presidência da República

 

Começaram os debates televisivos entre os oito principais candidatos à Presidência a República e, embora os seus perfis sejam distintos – entre sentido de estado, prudência, combatividade, pragmatismo, independência ou não e experiência política ou outra – ressalta uma nota comum: sabem dizer que, em termos constitucionais, o Presidente da República (PR) não governa, não tem iniciativa, em matéria legislativa, pelo que não tem um programa, mas todos querem dizer alguma coisa ao país, sobre vários temas, ou seja, pretendem ter uma agenda política, em concomitância com os estritos poderes constitucionais. Enfim, um dilema!
Em termos da Constituição de República Portuguesa (CRP), o perfil do PR está perfeitamente definido. Com efeito, o seu artigo 120.º estabelece: “O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, comandante supremo das Forças Armadas.” Resta saber como é que o PR garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas. Alguns dizem que é o árbitro ou o polícia que aponta erros, mas não diz como se corrigem. Nesta perspetiva, o chefe de Estado não garante nada. E, como comandante supremo das Forças Armadas, por não ter funções operacionais, nem enquadrar tropas, restar-lhe-ia presidir a paradas militares, em dias solenes.
Alguns observadores, no entanto, esperam que os candidatos digam ao eleitorado como entendem o exercício, em concreto, dos poderes presidenciais, de acordo com a CRP. Isto, porque os cinco presidentes eleitos em democracia encontraram algumas formas diferentes de cumprimento da CRP que juraram cumprir e fazer cumprir (ver CRP, artigo 127.º, n.º 3).
Assim, promete-se o veto às alterações à legislação laboral, se se mantiverem conforme estão, ou      diz-se que só se fará um juízo político, sobre esta matéria, à medida que os diplomas cheguem à mesa presidencial, ou ainda que se vetam, no caso de mexerem, significativamente, com o núcleo essencial dos direitos dos trabalhadores. Porém, há quem defenda a necessidade de flexibilizar a economia e de lhe conferir produtividade e competitividade e tenha alguma simpatia pela nova legislação laboral, enquanto outros a rejeitam pelo que significa de retrocesso na valorização do trabalho. E outros insistem em que a produtividade e a competitividade não se conseguem com a delapidação dos salários e dos outros direitos dos trabalhadores, mas com a boa organização e com a correta gestão das empresas.  
Há quem garanta não dar posse a um eventual governo de extrema-direita que não respeite a CRP, como há quem entenda não dever substituir-se aos tribunais, no juízo da constitucionalidade e da legalidade de determinadas organizações, como há quem, nesse caso, exigiria um compromisso, por escrito, relativamente ao cumprimento da Constituição.  
Há quem esteja a fazer pressão sobre o governo para regulamentar a lei da eutanásia e há quem entenda que deve dissolver a Assembleia da República (AR), já não se o governo não cumprir as promessas eleitorais, mas se a AR se preparar, por entendimento dos partidos à direita, para rever a Constituição, de forma contrária ao espírito do atual texto constitucional, uma vez que esse não foi um dos temas discutidos na campanha eleitoral. Ora, isso, em minha opinião, deveria ser válido para outras matérias não abordadas em campanha, como a revisão da legislação laboral.  
Há, porém, um candidato cuja dinâmica discursiva é a da contestação sistemática às virtualidades do regime, em nome do combate à corrupção, do nacionalismo, da xenofobia e do racismo e contra a descolonização, o que agrada a uma franja considerável do eleitorado desiludida por os partidos da governação não terem resolvido muitos dos problemas que afetam as populações e terem deixado agravar outros.

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Nestes termos, André Ventura demarca-se pela frontalidade, desafiando o sistema numa lógica persistente de confronto, que funciona nos debates, agradando ao seu eleitorado e tentando desestabilizar o adversário. Alguma acusam-no de entrar em contradição, de dizer mentiras sobre o regime e de estar no lugar errado: querer ser chefe do governo e candidatar-se a PR, por não ter encontrado outra figura para o efeito, dentro do seu partido. Configura, pois, uma candidatura partidária stricto sensu, mas antissistema, tendo vivido e crescido no sistema.
António Filipe, o candidato experiente e que não esconde a filiação partidária, entra nos debates com inquestionável histórico de experiência política. Conhece as instituições democráticas, por dentro e por fora, e já mereceu, inclusivamente, a confiança da AR para presidir, temporariamente, aos seus trabalhos, na qualidade de deputado mais antigo. Tem um perfil de homem sério e bem-intencionado, uma raridade no panorama político. Todavia, é tido como ligado à ortodoxia do Partido Comunista Português (PCP). Ainda se fala da “cassete comunista”, cada vez mais substituída pela “cassete do partido Chega”.
António José Seguro é o candidato ponderado, mas sem rasgo político. Teve alguma dificuldade em se situar na esquerda política e lá acabou por dizer que é um homem da esquerda moderada. O seu maior trunfo é a segurança, que resulta da sua aparência de figura ponderada. Afirma-se como independente, embora orgulhoso do seu passado de líder do Partido Socialista (PS), que lhe ofereceu o apoio oficial. Não obstante, chegou a dizer que não vinha da política tradicional. Se é certo que nunca se sentiu amuado politicamente, também nunca se demarcou dos erros do PS.
Na ótica de alguns observadores, falta-lhe ambição e impulso político. E o facto de evitar assumir-se como homem da esquerda tradicional pode afastar parte do eleitorado, sobretudo, de muitos elementos do PS e dos que não veem, com bons olhos, o seu distanciamento partidário.
Não sabe usar o currículo de que dispõe e é pena.
Catarina Martins, antiga coordenadora do Bloco de Esquerda (BE), com inegável experiência política e dotada de discurso claro e fluente, tem relação forte com o eleitorado que a conhece. Não esconde a sua origem partidária e é determinada no veto às alterações à legislação laboral, à não conferição de posse a um governo liderado pelo Chega (argumento: se o eleitorado lhe confiar o seu voto, está a dizer que não quer uma governação desse partido) e no bloqueio a uma revisão constitucional com pressupostos de extrema-direita, recorrendo à dissolução antecipada da AR, com devolução da palavra ao eleitorado. Sobressai nela a empatia, a rapidez de resposta e o fulgor no debate, o que faz dela uma oponente incontornável.
A dificuldade em se desprender do BE torna-lhe a campanha difícil. Quer separar-se do partido, dizendo que a sua candidatura é a nível individual, mas é difícil passar essa mensagem de independência. Há quem sustente que a antiga coordenadora do BE, tal como o partido em si, perdido nas questões internas, se afastou das preocupações quotidianas da população, em especial, dos mais desfavorecidos.
O almirante Henrique Gouveia e Melo, o homem que não vem do sistema e que é pragmático, mas politicamente inábil, ostenta um capital de simpatia acumulado na liderança do plano de vacinação contra a covid-19. O seu pragmatismo traduz-se numa ética da responsabilidade voltada para os resultados. O candidato beneficia do estatuto de figura exterior ao sistema partidário, o que agrada aos eleitores desiludidos com os partidos e com os aparelhos partidários demasiado fechados para dentro. Porém, a suposta falta experiência política leva-o a posições autoritárias e a dificuldades, quando confrontado com “perguntas difíceis”, bem como a algumas contradições. Assim, acha que os partidos são essenciais à democracia, mas não os quer na sua candidatura, sem deixar de se avistar com figuras ligadas à dinâmica partidária.   
Nas tentativas de se posicionar ideologicamente (de centro, de centro esquerda, de centro direita), revela falta de conhecimento em Ciência Política e, confrontado por oponentes que o encostam à parede, revela falta de músculo político. Em termos estratégicos, passou da defesa incondicional do apoio europeu à Ucrânia para a atenção ao Atlântico e à critica ao valor percentual do orçamento da defesa estabelecido pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO).
João Cotrim de Figueiredo, o liberal pouco estável nos compromissos, destaca-se pela capacidade de criar empatia. A sua força está na convicção profunda do liberalismo e na energia que essa crença. Porém, a sua carreira revela tendência para mudanças frequentes de função, o que mostra dificuldade em manter-se num cargo, por longos períodos. Ora, o mandato da Presidência da República são cinco anos, o que não é possível de oscilação de cargos. Nunca temos tradição de renúncia presidencial, embora ela esteja prevista na CRP, mas o PR, como garante da estabilidade, deve assegurar que esta começa por si.
Jorge Pinto, o candidato desconhecido, pode surpreender. Efetivamente, a sua baixa notoriedade na cena pública é uma vantagem, no entender de alguns especialistas, por não ser portador de desgaste político. Por outro lado, provém de um partido (o que nunca negou) que não lhe deu visibilidade e que, durante anos, viveu, em exclusivo, à sombra do líder.
A evidente falta de experiência política poderia ser negativa no desempenho em debate, mas a apresentação de ideias inovadoras de que é portador têm constituído uma mais-valia no contexto desta campanha medíocre. Foi claro na demarcação de José Sócrates, quando, sendo militante do PS, rejeitou publicamente o seu apoio à recandidatura do secretário-geral. Por isso, não se crispou, como o almirante, quando um moderador de debate lhes falou de um apoio (efetivo, para o almirante, e hipotético, para Jorge Pinto) do antigo primeiro-ministro socialista que está a braços com a Justiça.
Luís Marques Mendes, o veterano respeitado, cuja candidatura tecida em mais de uma década de comentário televisivo, à laia de Marcelo Rebelo de Sousa (o original costuma ser melhor do que a cópia), vem carregado de experiência política e de uma dita independência, a toda a prova. Todavia, não recusa a sua condição de militante e de antigo líder do Partido Social Democrata (PSD). E a sua independência não passa de um certo distanciamento, em relação aos dirigentes e aos militantes por quem não simpatiza, bem como de algumas posições do atual governo.
No entanto, surge com bagagem difícil de igualar, conhece os escaninhos do poder, tem cultura política sólida e acumulou experiência mediática que lhe dá vantagem no terreno. A sua carreira política é longa e diversificada, mas conota-o com o atual Presidente da República (aliás, é conselheiro de Estado, por nomeação presidencial), apesar de se demarcar, não por crítica, mas por diferença, do marcelismo, nomeadamente, contestando a dissolução da AR de maioria absoluta e advogando que a palavra do PR deve ser contida e guardada para quando necessária.
Além disso, mesmo enquanto comentador, o que lhe deu muita visibilidade, teve posição bastante alinhada as posições do seu partido, embora, por vezes, se demarque cirurgicamente. Assim, corre o risco de ser entendido como na continuidade de um ciclo político de que muitos eleitores estão cansados, o que tem ocorrido no final dos segundos mandatos presidenciais.

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Sem margem de dúvida, sustento que o dilema de que falei não é um verdadeiro dilema. É certo que o PR não governa formalmente, mas atentas a separação e a interdependência dos poderes, em que é não é invasível o tempo de cada um, bem como a prerrogativa de propor ou de ouvir previamente, o PR tem papel de governação, e não apenas de polícia ou de árbitro. Tem, assim, também de funcionar, da sua parte, o sistema de contrapesos.
A são ser assim, para que serve a prerrogativa do veto presidencial a decretos da AR ou do governo, baseado em discordância política dos conteúdos declarativos e/ou processuais (ver artigo 136.º da CRP)? Para que serve a prerrogativa do pedido de fiscalização preventiva ou sucessiva da constitucionalidade de diplomas, aquando da existência de dúvidas da sua constitucionalidade ou da sua legalidade (ver artigos 278.º e 279.º da CRP)? Para que servem as mensagens que pode dirigir à AR e às Assembleias Legislativas das regiões autónomas (ver artigo 133.º, alínea d) da CRP)? Para que servem as conversas semanais com o primeiro-ministro que visam dar comprimento à sua obrigação de “informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país” (ver artigo 201.º, alínea c) da CRP)? E para que serve a prerrogativa de “presidir ao Conselho de Ministros, quando o primeiro-ministro lho solicitar (ver artigo 133.º, alínea i) da CRP)?
O que eram as presidências abertas de Mário Soares, as presidências temáticas e semanas temáticas de Jorge Sampaio ou os roteiros de Cavaco Silva ou as frequentes andanças de Marcelo Rebelo de Sousa, senão meios informais de governação? Estas formas de intervenção não configuram apenas atos de magistratura de influência. Antes são, do meu ponto de vista, formas de pressão legítima sobre o governo e sobre a AR para que resolvam os problemas da população.
Por isso, ou o PR encontra forma de levar à cena os problemas os temas que julga pertinentes para o país ou debatê-los, em campanha eleitoral, não passa de um entretenimento, ainda que valorativo. Neste sentido, parece-me positivo, ainda que insuficiente, que Marques Mendes, preocupado com a problemática da corrupção, intente fazer um Conselho de Estado para encontrar formas de erradicar a corrupção de todas as estruturas do país. Ao invés, penso desastrada a despiciência com que Gouveia e Melo lhe respondeu, dizendo que, ao fim de cem Conselhos de Estado, já haveria alguma ideia concreta para acabar com a corrupção. Isso configura desrespeito por um órgão constitucional. É certo que o Conselho de Estado é o órgão de consulta do PR, mas o atual inquilino de Belém conferiu-lhe competência temática, até com lições de peritos internacionais e ninguém lhe apontou, institucionalmente, exorbitância de poderes.
Finalmente, vejo, com simpatia, o propósito anunciado por Jorge Pinto de convocar, a partir de Belém, conselhos gerais ou fóruns para debate de temas importantes (com elementos recrutados, por sorteio, a partir dos cadernos eleitorais), nomeadamente, os que possam induzir acordos de regime ou ter relevante interesse nacional, com os respetivos relatórios, e de que os deputados à AR ou os membros do governo possam dispor, a fim de os poderem transformar, se acharem conveniente, em projetos de lei, em propostas de lei ou em projetos de decretos-leis.
Tratar-se-ia de audaz intervenção presidencial e de mais uma forma de democracia.

2025.11.27 – Louro de Carvalho