A 11 de março de 1975, o Regimento de Artilharia Ligeira n.º 1 (RAL1), na Encarnação, em Lisboa), foi atacado por efetivos da Base Aérea 3 (BA3), em Tancos, numa operação militar telecomandada pelo general António Spínola. Depois de metralhado e aerobombardeado, o quartel foi cercado por militares do Regimento de Caçadores Paraquedistas (RCP), até o major Diniz de Almeida e o capitão Sebastião Martins acordarem num cessar-fogo, ao início da tarde.
A troca de tiros entre militares ocorreu apenas ali, mas houve, ao longo do dia outras movimentações, com outros protagonistas.
O primeiro trabalho académico sobre o processo revolucionário foi de José Medeiros Ferreira e refere a “tempestade do 11 de março” ou os “acontecimentos do 11 de março”, destacando as decisões posteriores. Porém, Josep Sanchéz Cervelló considera o acontecimento como o resultado do interesse do Partido Comunista Português (PCP) em “libertar-se de um setor político-militar que o impedia de prosseguir a revolução” e da impaciência da extrema-direita para “recuperar o protagonismo social” que perdera com a queda da ditadura. António Reis vinca a “estratégia de atuação dúplice do grupo spinolista”, que admitia o recurso a um “golpe de força”, mas atribuindo ao setor kaulzista da Força Aérea a elaboração de um plano de golpe, espoletado na sequência de um episódio de contrainformação credibilizada pelos serviços secretos espanhóis e franceses.
Maria Inácia Rezola foca as dúvidas sobre a causa dos acontecimentos, mas frisando que é “consensual” a ideia de que aquelas operações militares visavam “um golpe de Estado”, com o objetivo de “recolocar António de Spínola no poder”. António José Telo dá como certo que foram postos a circular boatos para manipular o setor spinolista. Rui Ramos refere que Spínola se instalou na BA3 “com meia centena de oficiais”, de onde enviou “200 paraquedistas” para tomar o RAL1, tendo fracassado, porque ninguém desejava “combater, nem sair da ‘legalidade’”. Luís Nuno Rodrigues detalha a descrição da movimentação de Spínola e dos militares spinolistas, distinguindo-os dos setores mais à direita, mas frisando a sua hesitação entre a “via política e legalista” e o “golpe de força”, optando por enumerar as várias interpretações dos acontecimentos e das suas causas. E Francisco Bairrão Ruivo tem o 11 de março como “o culminar intempestivo de várias conspirações”, vincando a “névoa” que subsiste a seu respeito.
As interpretações oscilam, pois, entre manobra provocatória orquestrada pelo PCP (e seus aliados no MFA) e golpe militar liderado por Spínola com apoio da extrema-direita, ficando a dúvida de quem teve a iniciativa. Ora, segundo a leitura que pude fazer, ao tempo, concluí que a iniciativa coube à extrema-direita, o que se veio a confirmar por declarações de vários militares desse setor, aquando do início das comemorações do cinquentenário da revolução. E os antecedentes, na ótica dos mesmos, terão criado as condições para a precipitação do episódio contrarrevolucionário.
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A 4 de janeiro de 1975, em entrevista ao jornal Expresso,
António Spínola partilhou a inquietação pela contradição entre a radicalização
do processo e o imobilismo económico, denunciando “a demagogia de certas
correntes” e defendendo a criação de “um Estado democrático árbitro de um socialismo
em liberdade”. Embora remetido a posição discreta, desde a renúncia à Presidência
da República, a 30 de setembro, Spínola não estava ocioso, antes multiplicava
os contactos.Ao mesmo tempo, “acarinhava um movimento” destinado a extinguir a “Comissão Coordenadora do MFA [Movimento das Forças Armadas], de orientação marxista”, e a “reforçar o poder dos órgãos constitucionais, acabando com as estruturas paralelas de poder existentes nas Forças Armadas”. Dispunha, para tanto, de um estado-maior de oficiais de confiança, o qual se opunha à crescente influência da esquerda militar e que, nos últimos meses de 1974, criara uma estrutura político-militar composta por “vários grupos a conspirar”, para levar a cabo um “golpe palaciano”.
Planeado por um pequeno grupo, num apartamento de Alpoim Calvão, perto da Academia Militar, o golpe era simples: aproveitando a periodicidade semanal das reuniões do Conselho dos Vinte, o capitão António Ramos ordenaria a detenção dos seus elementos “comunistas e pró-comunistas”, forçando-os a renunciar às suas funções, para, em seguida, restabelecer a hierarquia formal no seio das Forças Armadas e devolver Spínola à Presidência da República, formando um governo sem comunistas, nem filocomunistas. Contava-se com a adesão do Batalhão de Comandos [BC] da Amadora, do RCP e da Escola Prática de Cavalaria [EPC] de Santarém para, respetivamente, controlar a RTP e as emissoras de rádio, neutralizar o RAL1 e anular qualquer resistência em Lisboa e arredores.
Programado para 20 de fevereiro, o golpe foi adiado, devido à alteração da escala dos oficiais que comandavam a guarda do Palácio de Belém, o que suspendeu a sua realização. Adicionalmente, o anúncio das eleições para a Assembleia Constituinte, a 10 de fevereiro, pelo general Costa Gomes, contribuiu para a hesitação de alguns operacionais que mantinham contactos com dirigentes do Partido Socialista (PS) e os mantinham a par das movimentações militares.
No início de março, os spinolistas venceram as eleições para os conselhos de armas de Cavalaria e de Artilharia, revelando a sua influência entre os oficiais do quadro permanente do Exército. A rede conspirativa alargara-se, entretanto, a um grupo de militares e civis liderado pelo general Tavares Monteiro (próximo de Kaulza de Arriaga), que se mantinha em contacto com o tenente da Armada Nuno Barbieri Cardoso (filho de Agostinho Barbieri Cardoso, ex-inspetor da Direção Geral de Segurança, exilado em Madrid) através do tenente Carlos d’Orey Rolo. O terreno parecia favorável a ação mais arrojada e, a 30 de janeiro, a embaixada dos Estados Unidos da América (EUA) foi contactada por “uma personalidade da direita portuguesa”, que solicitou apoio “para montar um golpe de Estado”. E, em meados de fevereiro, numa reunião clandestina, em Cascais, Tavares Monteiro comunicou a Francisco van Uden (ex-capitão miliciano e dirigente do Partido do Progresso) a preparação do golpe liderado por Spínola, pedindo-lhe ajuda para efetuar contactos no Norte do país e para assegurar a ligação com os serviços secretos espanhóis.
Estas movimentações eram percebidas junto da cúpula do MFA, que dispunha de um serviço de informações sob a supervisão do almirante Rosa Coutinho, reforçado pela Secção de Apoio da 2.ª Divisão do Estado-Maior Geral das Forças Armadas (EMGFA). A 17 de fevereiro, em reunião do Conselho dos Vinte, Rosa Coutinho anunciou a fundação em Madrid, por Francisco Van Uden e por outros exilados de extrema-direita, do Exército de Libertação de Portugal (ELP), sobre o qual haviam sido recolhidas informações pelo brigadeiro Eurico Corvacho, comandante da Região Militar do Norte (RMN), as quais incluíam reuniões realizadas em Verín, em Salamanca e em Madrid, envolvendo militantes do Partido do Progresso da zona do Porto. Em reunião, a 28 de fevereiro, Corvacho anunciou ao Conselho dos Vinte que setores afetos a Spínola e a elementos de extrema-direita, sediados em Espanha, preparavam um golpe militar. O major Vasco Lourenço revelou que se previa que o golpe fosse espoletado por um ataque aéreo ao RAL1, por efetivos da BA3, onde os spinolistas tinham influência. Tal previsão foi reforçada a 7 de março, quando o major Pedro Cardoso (da 2.ª Divisão do EMGFA) foi informado pelo major Hoschedorn (adido militar da Embaixada da República Federal Alemã) da preparação de um golpe, em Tancos.
As motivações e o horizonte dos diversos protagonistas envolvidos na conspiração foram enunciados, a posteriori, em termos variáveis e contraditórios. Os oficiais spinolistas acentuaram a natureza preventiva da movimentação: garantir a realização das eleições ou responder a eventual fraude eleitoral. Alpoim Calvão revelou intenção mais assertiva: afastar dos centros de decisão a Coordenadora do MFA e o PCP, reconduzindo o general Spínola à Presidência da República e reintegrando os elementos da Junta de Salvação Nacional saneados a 28 de setembro. E o grupo liderado por Tavares Monteiro e os exilados portugueses em Espanha estavam empenhados em suspender os processos de descolonização e de democratização.
A calendarização do golpe para 20 de fevereiro constituiria um propósito preventivo, já que as eleições para a Assembleia Constituinte estavam agendadas para 12 de abril, e a operação terá sido desencorajada por dirigentes do PS, obtidas garantias do general Costa Gomes, quanto à realização das eleições. Porém, um cenário de boatos, de desinformação e relatos contraditórios propiciou a sobreposição de diferentes planos e objetivos, que só o processo do golpe esclareceria.
Os acontecimentos foram acelerados, quando Barbieri Cardoso contactou Tavares Monteiro, na manhã de 8 de março, para lhe comunicar que “brigadas comunistas pretendiam efetuar prisões ou assassinatos”, nos dias seguintes. Realizou-se, ao fim da tarde, uma reunião onde foi anunciada uma lista de pessoas a abater pela extrema-esquerda. E, no dia seguinte, em Madrid, numa reunião, Fernando Santos e Castro mostrou a fotocópia de um documento, obtido através do gabinete do primeiro-ministro espanhol, Arias Navarro, com uma lista de empresários, militares e políticos de direita que seriam detidos e eliminados numa operação agendada para a noite de 12 de março, intitulada “Matança da Páscoa” e dirigida pelo PCP. Foi então decidido que Carlos Rolo voltaria a Lisboa, a transmitir aos conspiradores as informações “recebidas dos serviços secretos espanhóis, consideradas “dignas da maior credibilidade”.
Supostamente conseguidos e contabilizados muitos apoios, Spínola abandonou a sua residência, ao fim da tarde do dia 10 de março, disfarçado com barba postiça, tendo chegado à BA 3 pelas 23h30. Foi improvisado um centro de operações na residência do major Martins Rodrigues, tendo sido exigida a presença do comandante da BA3, a confirmar que a operação tinha o aval da cadeia hierárquica. Esse aval foi confirmado com base no alegado desejo do Conselho dos Vinte “de acabar com a indisciplina nas Forças Armadas”. E foi, então, delineado o plano das operações.
Apesar de nenhum dos oficiais envolvidos ter assumido a responsabilidade por este plano, ele parece corresponder aos cálculos delineados, horas antes, em casa de Sá Nogueira, e às planeadas movimentações, no âmbito do golpe palaciano previsto para fevereiro.
A 11 de março, a primeira parelha de aviões T6 descolou de Tancos, às 10h50, depois de todos os pilotos terem recebido instruções de Mira Godinho e ouvido a exortação de Spínola. Às 11h10, saiu a segunda parelha de T6 (sem armas) a sobrevoar Lisboa, tendo os nordatlas descolado pelas 11h30. O RAL 1 começou a ser bombardeado, pouco antes das 12h00, pela primeira parelha de T-6, falhando, porém, o desembarque dos dois grupos de combate, que foram detetados e alvejados pelos soldados que defendiam o quartel. Os T-6 regressaram à BA3, após terem sobrevoado e bombardeado as instalações do RAL1, durante cerca de 30 minutos, sofrendo alguns disparos da parte dos defensores. Um dos helicópteros foi igualmente alvejado, resultando daí um piloto e um paraquedista feridos. Do ataque aéreo resultou um morto e vários feridos, além de vários danos materiais. A ocupação quase imediata de três torreões de 10 andares, situados em frente ao quartel, conferiu vantagem estratégica significativa aos soldados do RAL1, permitindo-lhes dominar as imediações e estabelecer um dispositivo defensivo, antes da chegada dos paraquedistas que desembarcaram no Aeroporto, gerando uma situação de impasse.
Entretanto, começaram a concentrar-se civis na zona, respondendo aos apelos da Intersindical, da 5.ª Divisão e de comissões de trabalhadores e de moradores, tornando mais complicada a tarefa dos atacantes. Cercados pelos paraquedistas, os militares do RAL1 distribuíram armas a grupos de civis (mediante entrega do respetivo Bilhete de Identidade), enquanto um blindado foi enviado ao Depósito de Material de Guerra de Beirolas, regressando com armamento e munições para guarnecer os defensores. Pelas 13h00, foi obtido o cessar-fogo e, após curta negociação, foi decidido enviar o coronel Mourisca e o major Mensurado ao Comando Operacional do Continente (COPCON), para esclarecer a situação, pois ambos acreditavam estar a combater pelo MFA.
Pouco depois, sitiantes e sitiados começaram a confraternizar, tendo os paraquedistas recebido ordens de Rafael Durão para regressar a Tancos, pelas 14h45. Paralelamente, tiveram lugar diversas movimentações noutras unidades militares, tendo a vitória final sido assegurada pelas forças afetas ao poder instalado a 28 de setembro.
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Talvez tenha sido por isso que o 11 de março ficou, injustamente, na memória de muitos, como mero golpe da esquerda radical. Obviamente, o poder instalado acautelou o futuro com medidas políticas (extinção da Junta de Salvação Nacional e do Conselho de Estado; e criação do Conselho da Revolução) e económicas (com destaque para a nacionalização da banca, das seguradoras e, indiretamente, dos principais órgãos de comunicação social), tidas por necessárias ao processo.
A nível político-militar, até ao regular funcionamento dos órgãos de soberania, a criar pela Constituição, e do poder autárquico, a liderança do país estaria centralizada no Conselho da Revolução, liderado pelo Presidente da República, e no governo, em termos operativos; a nível económico, os setores nacionalizados estariam controlados, indiretamente, pelo Estado, graças à verificação da concorrência desleal e de que o “elevado volume de poupança privada retido pela banca e pelas seguradoras” vinha a ser aplicado, “não em benefício das classes trabalhadoras, mas com fins especulativos e em manifesto proveito dos grandes grupos económicos”.
Enfim, o 11 de março não é festejado pela direita, porque fracassou no objetivo, nem pela esquerda, porque não pode assumir a paternidade do golpe, mas apenas o reforço do poder. E as eleições para a Assembleia Constituinte realizaram-se, não a de 12 de abril, mas a 25.
2025.03.15 – Louro de Carvalho
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