segunda-feira, 31 de março de 2025

A Quaresma é um apelo à opção pela vida que Deus quer para nós

 
A liturgia do 4.º domingo da Quaresma, no Ano C, através da parábola do Pai misericordioso, ensina como se recupera a vida de liberdade que se perdeu.
primeira leitura (Js 5,9a.10-12) mostra-nos o Povo de Deus a começar vida nova na terra de Canaã, postergando a escravidão do Egito e a desolação do deserto. Na Terra Prometida, Israel pode construir um futuro de liberdade e de felicidade. É essa experiência que somos instados a fazer, em todo o ano, mas, em especial, em tempo de Quaresma.
O Livro de Josué é uma reflexão sobre a História do Povo de Deus no período que vai desde a entrada em Canaã até à morte de Josué (por meados do século XII a.C.).
Em geral, a preocupação da “escola deuteronomista” é mais de índole teológica do que histórica. Por exemplo, a conquista da Terra é apresentada como campanha fulgurante e fácil em que as doze tribos a uma só voz, sob a liderança de Josué, se apoderaram facilmente de toda a Terra. Mas, historicamente, as coisas não aconteceram assim. O Livro dos Juízes, muito mais realista, fala de conquista lenta, difícil e incompleta, que não foi obra de um povo unido à volta de um chefe único, mas de tribos que fizeram a guerra isoladamente. Os autores do Livro de Josué estão interessados em afirmar o poder de Javé, posto ao serviço do seu Povo. Foi Deus – e não a capacidade militar das tribos – que ofereceu a Israel a Terra Prometida, devendo Israel, por sua vez, responder a esse dom, mantendo-se fiel à Aliança e aos mandamentos.
Cumprido o ritual da circuncisão, o povo celebrou a Páscoa, “no dia catorze do mês” de Nisan, em Guilgal. O cronista acrescenta que, nesse dia, o povo comeu os primeiros frutos da nova terra: “pães ázimos e espigas assadas”. O maná, alimento que Deus tinha dado ao povo, na etapa do deserto, cessou. Doravante, os filhos de Israel alimentar-se-ão dos frutos da terra de Canaã.
Para os Hebreus que, sob as ordens de Josué, atravessaram o Jordão, a entrada na Terra Prometida é o final feliz da longa viagem da escravidão para a liberdade. Para trás ficou o Egito, a terra da exploração e do sofrimento onde o povo vivia sem horizontes e sem esperança, e o deserto, terra de privação e de desolação, onde só o cuidado de Deus deu ao povo forças para sobreviver.
O gesto de Josué de ordenar a circuncisão de todos os “que nasceram no deserto, durante a viagem, depois do êxodo”, significa o ponto final no “opróbrio do Egito”, na era velha marcada pelo sofrimento e pela mentalidade de servidão de que o povo, nem depois de atravessar o mar Vermelho, se conseguira libertar. Porém, a gente que entrou na Terra Prometida é uma outra geração, um povo renovado, com olhar livre sobre o seu futuro e sobre as suas possibilidades. A circuncisão, sinal da Aliança de Deus com Abraão e da pertença ao povo eleito, é a reafirmação do compromisso do povo com o Deus que os conduziu a essa vida nova. A Páscoa, celebrada, pela primeira vez, na nova terra, é o ponto de partida para o caminho novo que agora começa e ao longo do qual o povo requer a presença e a assistência de Deus, para descobrir a rota a percorrer. O fim da “era do maná” e o aparecimento de outros alimentos, frutos da terra onde o povo se encontra, assinala outra forma de vida, o novo tempo, a nova História, a nova esperança.
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No Evangelho (Lc 15,1-3.11-32), a parábola do “pai misericordioso” ou do “pai que tinha dois filhos (é desviante a denominação de parábola do “filho pródigo”), mostra que Deus nunca nos fechará as portas: estará sempre à nossa espera de braços abertos, pronto para nos acolher e para nos reintegrar na família. “Voltar para Deus” é a opção certa para quem quiser dar sentido pleno à sua existência. Uma das “lições” do caminho para Jerusalém refere-se ao modo como Deus vê os homens e as mulheres que a sociedade marginaliza e condena. As “parábolas da misericórdia de Deus” dão conta da preocupação de Deus pelos filhos “perdidos” (cf Lc 15,1-32). Na ótica lucana, essas parábolas são a resposta de Jesus ao comentário escandalizado dos escribas e fariseus, que O querem experimentar: “Este homem acolhe os pecadores e come com eles” (Lc 15,2-3). Já os pecadores aproximavam-se para O ouvirem.
No grupo de gente pouco recomendável estavam os pecadores e os publicanos. O grupo dos pecadores incluía todos os que desobedeciam, notoriamente, à Lei e levavam vida desregrada: usurários, vigaristas, delinquentes, prostitutas, leprosos e publicanos. Os “publicanos” eram os cobradores de impostos, que colaboravam com os romanos na opressão do povo e tinham fama de roubar os pobres, cobrando mais do que o estipulado. As autoridades religiosas judaicas viam-nos como malditos e punham-nos à margem da salvação. Nenhuma pessoa de bem gostava de estar associada a essa gente. Ao invés, Jesus tinha amigos entre esses marginais e não tinha problema em sentar-se com eles à mesa. Não excluía ninguém e achava que todos eram bem-vindos à comunidade do Reino de Deus. A benevolência de Jesus para com aqueles que a moral, os bons costumes e a Lei condenavam, era inédita, escandalosa, vergonhosa, incompreensível.
A parábola do Evangelho desta dominga, exclusiva do Evangelho de Lucas, é uma das mais conhecidas. A tradução latina, “Vulgata”, notando o espaço que tem nela o filho mais novo – um jovem que dissipa os bens da família em vida dissoluta –, chama-lhe a “parábola do filho pródigo”; mas a maioria dos exegetas recentes, notando a centralidade do “pai” na parábola, chamam-lhe a “parábola do pai misericordioso”. Atendendo à ação das personagens, podemos designá-la como a “parábola do pai que tinha dois filhos”.
É uma história de família que tem os ingredientes habituais: discussão entre pais e filhos, esforço dos filhos para se libertarem da tutela paterna, conflito por causa de heranças, tensões que fazem perigar a unidade familiar, ciúmes e ressentimentos entre membros da família.
Nesta família, são relevantes três pessoas: o pai, o filho mais velho e o filho mais novo. O filho mais novo só pensa em ser livre, em gozar a vida, em afastar-se da vida certinha e regrada da casa do pai. Decide, então, pedir ao pai que lhe dê a parte da herança que lhe cabe, um pedido pouco comum, de acordo com as leis e práticas da época, pois “o pai ainda está vivo”. Não deve ter sido fácil, para o pai, lidar com o pedido do filho mais novo. Todavia, o pai procede à divisão dos bens, entregando ao filho mais novo o terço dos bens familiares (o mais velho, na qualidade de primogénito, teria direito ao resto dos bens paternos). Assim, o pai respeita a liberdade do filho e deixa-o seguir o caminho que ele elegeu. A liberdade é um dom, um direito, um dever e um risco.
O jovem afasta-se da casa familiar e vai para longe. Sem pormenores, é-nos dito que o jovem levou uma vida reprovável e não demorou a delapidar todos os seus bens, tendo ficado num beco sem saída. Para sobreviver, põe-se ao serviço de um estrangeiro, como guardador de porcos, (animais impuros). A degradação não poderia ter sido maior. Sem liberdade, nem dignidade, leva uma vida infra-humana. Nem sequer pode alimentar-se com o alimento dos porcos. Não se podia descer mais baixo.
Aqui, o narrador analisa os sentimentos do jovem. Desfeitas as ilusões, está cônscio de que fez má opção, ao deixar a casa do pai. Está bem pior do que os jornaleiros que trabalham para o pai, já que estes, pelo menos, têm o necessário para viver. Disposto a engolir o orgulho, abre a possibilidade de voltar ao encontro do pai e a pedir-lhe que o aceite, não como filho, mas como jornaleiro. Não sabe como o pai reagirá, mas não tem nada a perder. Resolve, pois, voltar.
Todos os ouvintes da parábola esperavam um reencontro difícil com um pai magoado e revoltado. Uma coisa parecia clara: o rapaz jamais poderia voltar a ocupar, na família, o lugar que tinha antes. Aquele filho tinha escolhido, por iniciativa própria, deixar de ser filho.
O jovem estava ainda longe, quando o pai o “viu”. Não é uma indicação casual: o narrador quer dizer que o pai vivia a olhar para o caminho por onde o filho tinha desaparecido, à espera de o ver regressar, epidermicamente, para lhe fechar a porta, para lhe fazer o sermão. Ao invés, o pai, ao ver o filho ao longe, sentiu revolver-se-lhe o coração. O verbo grego “splagknídzomai”, traduzido habitualmente como “compadecer-se”, indica a comoção interior que sentimos quando vemos alguém a quem amamos muito. Aliás, o nome “splágknon”, da família deste verbo, significa “seio materno”, barriga da mãe. E o verbo serve para expressar o amor da mãe pelo filho que trouxe no ventre. O pai, ao ver o filho que regressa, sente uma “comoção interior”, “sente revolver-se-lhe o coração”, como a mãe ao abraçar o filho que ama ternamente. É um estremecimento que resulta do amor. Neste quadro, não há lugar a censuras, a amuos, a zangas, a palavras amargas. Quando se ama desta maneira, tudo o resto desaparece. Não é por acaso que chamos pai e mãe a Deus.
O pai abraça o filho reencontrado e “cobre-o de beijos”. A sua forma de agir, mais do que um comportamento de pai, é um comportamento de mãe. Não há qualquer prevenção contra o filho ingrato: no coração apenas há amor. E, quando o filho tenta explicar-se, o pai nem o deixou acabar o discurso (na casa paterna, ninguém deixa de ser filho). Quem ama assim, não carece de explicações, nem de pedidos de desculpa.
A cena completa-se com o pai a restabelecer o filho na sua dignidade de filho e de irmão: vestiu-o com a melhor roupa que havia em casa; pôs-lhe no dedo um anel – o anel com o selo familiar restituía ao jovem o título de filho –; fê-lo calçar as sandálias, para que o jovem caminhe como um homem livre e não como escravo. E o filho retoma o seu lugar como membro de pleno direito da família que tinha renegado, ao abandoná-la. A festa que se seguiu – matou-se e comeu-se o vitelo gordo, que se guardava para as grandes ocasiões – é a expressão da imensa alegria que inunda o coração do pai, por ter, de novo, ao seu lado o filho reencontrado, que fez bem, quando resolveu partir e ir ter com o pai.
Se é difícil um pródigo resolver voltar, é comum reagir como o filho ou o irmão mais velho, o que permanecera sempre ao lado do pai. Ficou revoltado com a partida do irmão e com a traição à família. E, ao invés do pai, não voltara a olhar para o caminho por onde o irmão tinha desaparecido, à espera de o ver voltar a casa. Para ele, o irmão mais novo tinha feito a sua escolha e tinha deixado de pertencer à família. Era como se tivesse morrido.
Quando, voltando do trabalho, percebe que há festa e que a razão da festa é o regresso daquele irmão que tinha deixado pela lama o bom nome da família, o mais velho amua e recusa entrar em casa. Sente-se revoltado pela injustiça gritante. A leviandade é mais bem paga do que a vida honrada e correta que ele sempre levou. Movido pela inveja, não concorda com a fraqueza do pai e não quer, com a sua presença, caucionar a irresponsabilidade do irmão. O filho mais velho é um jovem certinho e bem-comportado, mas o seu coração não tem amor pelo irmão, nem pelo pai. Funciona segundo rígidos critérios de justiça, de severas obrigações, de retribuição lógica, não segundo critérios de amor. Cumpre regras, mas não ama. Serve um patrão, não ama o pai
O pai – em cujo coração há um amor sem medida pelos filhos – não estranha a revolta do filho mais velho para com o irmão, mas vem falar com ele e, com todo o carinho (chama-lhe “téknon”, “meu querido filho”), procura explicar-lhe a forma como vê as coisas: não podia receber o filho irmão de outro modo, pois continua a ser seu filho, um filho muito amado; está muito feliz por ele ter voltado a casa, onde terá sempre lugar; ama muito os filhos e, aconteça o que acontecer, eles terão sempre lugar em casa; o que mais deseja como o pai é ver todos os seus filhos sentados à mesa familiar, partilhando, fraternalmente, a alegria e a felicidade, numa festa sem fim.  
Não se diz se o filho mais velho aceitou e compreendeu os sentimentos do pai. Talvez o narrador tenha deixado o final em aberto para que dêmos a resposta ao pai que ama demasiado.
O pai cheio de amor é Deus, que arrisca dar-nos a liberdade, que respeita; os filhos somos nós. A parábola do pai misericordioso é um extraordinário poema ao amor de Deus pelos seus filhos, por nós. Muitas vezes, nós somos o irmão mais velho: até exageramos a enumerar os erros dos mais novos, para legitimarmos a exclusão. O pródigo levara vida dissoluta, mas o mais velho aponta: “Frequentou mulheres de má vida.” Na conversa com o pai, diz “esse teu filho” (pretensão de afastamento), ao que o pai responde com “este teu irmão” (desejo de proximidade).
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Na segunda leitura (2Cor 5,17-21), Paulo de Tarso, recorrendo ao conceito de “reconciliação”, lembra-nos que Cristo derrotou o egoísmo e o pecado e sanou a separação entre Deus e os homens.
Quem aceita ligar-se a Cristo e caminhar atrás d’Ele, está reconciliado com Deus.
Os detratores do apóstolo (pregadores procedentes das comunidades cristãs palestinenses, a certa altura chegados a Corinto) sustentam que este não tem autoridade para anunciar o Evangelho, pois nem sequer conviveu com Jesus, enquanto Ele andou pela Galileia e pela Judeia a anunciar o Reino de Deus. No entanto, Paulo encontrou-se com Cristo ressuscitado na estrada de Damasco e, a partir daí, deu toda a sua vida a Cristo. O amor de Cristo absorve-o completamente. Paulo quer anunciar a toda a gente que “Cristo morreu por todos, a fim de que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou”. Ele vive para Cristo e para dar testemunho de Cristo.
Paulo diz isso claramente aos Coríntios. Tudo o que tem feito – desvalorizado por aqueles que o atacam – tem por objetivo ajudar os Coríntios a encontrarem-se com Cristo. Ele sabe que, “se alguém está em Cristo, é uma nova criatura”; e o apóstolo quer muito que os Coríntios estejam em Cristo e possam tornar-se Homens novos.
Por trás de tudo isto, está a iniciativa de Deus. Deus não se conformava ao ver os seres humanos escolherem, dia após dia, caminhos de pecado; não se resignava a ver os homens imersos na velha realidade, que não levava a lado nenhum; por isso, enviou-lhes o seu Filho Jesus. Cristo, cumprindo o mandato que recebera do Pai, pela sua ação, pelo seu amor até ao extremo, pela sua entrega na cruz, mudou a situação dos homens. Entregou a própria vida para nos mostrar o amor de Deus; e convidou os homens a reaproximarem-se de Deus. Eliminando a autossuficiência e o egoísmo que impediam que os homens se aproximassem de Deus, Cristo acabou com a situação de rutura entre os homens e Deus.
Para descrever o que Cristo fez para reaproximar os homens de Deus, Paulo usa a palavra “reconciliação” (cinco vezes repetida nos vv. 18-20). Havia a situação de rutura entre o homem e Deus, mas, através de Cristo, a situação foi reparada e superada. O passado de separação entre Deus e o homem existiu, mas já não existe mais. A ação de Cristo fez com que o homem se reaproximasse de Deus; e Deus, no seu amor, não quis atirar-lhe à cara as escolhas erradas que o homem tinha feito. A vida velha ficou para trás; agora começou, para aqueles que aceitaram ligar-se a Cristo, a nova realidade, a vida nova, o tempo novo.
Paulo tornou-se junto dos Coríntios, “embaixador de Cristo” e arauto desta “reconciliação”. Foi esse o mandato que recebeu de Deus. Será esse o papel que Paulo desempenhará junto dos seus filhos de Corinto, digam o que disser quem o acusam de usurpar funções que não são dele.
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Paulo, vendo que Jesus assumiu o ser do pai misericordioso da parábola, fez-Se seu imitador e quer que nós também sejamos imitadores de Jesus Cristo.

2025.03.31 – Louro de Carvalho


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