No início do caminho quaresmal, a liturgia do I domingo da Quaresma no Ano C insta-nos a repensar as certezas, opções e valores. Esta época de conversão, de renovação, de “metanoia” é o momento favorável para nos reaproximarmos de Deus. É em Deus – e não noutras propostas, embora encantadoras – que está a fonte da vida verdadeira.
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A primeira
leitura (Dt 26,4-10) contém a confissão de fé dos Israelitas, ao trazerem
a Deus as primícias dos frutos da terra. Reconhecendo a ação libertadora de
Deus, afirmavam a fé e a confiança no poder e no amor de Deus; e, vendo que
tudo o que tinham provinha da generosidade e da solicitude de Deus, percebiam
que só Ele é fonte de vida em abundância.O Livro do Deuteronómio será o livro da Lei ou livro da Aliança descoberto no Templo de Jerusalém cerca de 622 a.C., no XVIII ano do reinado de Josias, e que serviu de motor à reforma levada a cabo por este rei, no sentido de reconduzir o Povo à fé em Javé. No livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte, mas refugiados no Sul – expõem os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num local de culto (Jerusalém); Deus amou e elegeu Israel e fez com ele uma Aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, uma família unida que tem Deus como a sua referência.
O trecho em apreço faz parte do segundo discurso de Moisés e integra o código deuteronómico, um conjunto de leis e costumes diversos, a que se somam exortações para convencer o Povo a viver de acordo com as indicações de Deus.
Na festa das primícias, a entrega a Javé dos primeiros frutos da terra era acompanhada de uma confissão de fé, na qual o crente reconhecia a ação libertadora de Deus em prol do seu povo.
O credo que o israelita proclamava recapitulava a ação de Deus na História do povo. Reconhecia o passado humilde dos antepassados, pastores nómadas, sem riqueza, sem pátria e sem terra (“meu pai era um arameu errante”). Recordava, depois, a experiência dramática do Egito, onde o grupo dos filhos de Jacob viveu como estrangeiro e conheceu a vida de sofrimento e de exploração. Maltratado, oprimido pelos Egípcios e sem futuro, o povo clamou ao Senhor e pediu-Lhe ajuda. Deus dispôs-se a intervir, preparou e guiou o projeto libertador, fazendo tudo para salvar o povo condenado à morte. E, depois de o povo ter saído da terra da escravidão, Deus continuou a acompanhá-lo: conduziu-o pelo caminho da liberdade, ofereceu-lhe uma terra boa e fecunda (“uma terra onde corre leite e mel”) onde Israel, sob o generoso olhar de Deus, encontrou vida em abundância. Os primeiros frutos da terra, trazidos, em cada ano, para serem oferecidos a Javé, evocavam tudo isso. Assim, tudo o que Israel alcançou, a contrastar com o passado de privação e de sofrimento, é fruto da ação, generosa, solícita e amorosa de Deus, e não dos méritos ou da força de um povo forte e empreendedor.
Ao enumerar as memórias das intervenções históricas de Deus em favor do seu povo (eleição dos patriarcas, êxodo do Egito, o dom da terra, boa e fecunda, onde o povo encontrou morada), o israelita fiel explicava porque viera oferecer a Deus os primeiros frutos da terra: era uma forma de mostrar a sua gratidão a Deus, de reconhecer que tudo o que tinha era dom de Deus, de celebrar a generosidade de Deus. Assim, a evocação da ação libertadora e vivificadora de Deus tinha um objetivo pedagógico. Lembrando ao povo os dons de Deus, libertava-o da tentação da idolatria, vincava que todos os dons eram fruto da generosidade de Deus e impedia o crente de se instalar na autossuficiência e no egoísmo. Aquela liturgia ajudava o crente a ver em Deus a sua grande referência e a reconhecer que só no amor e na ação de Deus se encontra a vida plena.
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O Evangelho
(Lc 4,1-13) apresenta-nos uma catequese
sobre as opções de Jesus. Recusou as propostas e os valores que punham em causa
o desígnio de Deus. Para Jesus, os valores de Deus têm primazia sobre os bens
materiais, a sede de poder, a embriaguez do êxito fácil. Aos discípulos Jesus
pede que sigam um caminho semelhante.Nos Sinóticos, a cena das tentações de Jesus está encaixada entre o batismo e o início da pregação do Reino de Deus. Contudo, em Lucas, antes das pregações, vem uma genealogia de Jesus. Se no batismo foi desvelada a identidade de Jesus (“tu és o meu filho muito amado; em ti pus todo o meu agrado”), a genealogia mostra que Jesus vinha da família do rei David, em que o povo de Deus depositara a esperança de libertação. A figura de Jesus gerava, pois, muitas expetativas.
A cena das tentações é, fundamentalmente, uma página de catequese. É provável que Jesus, após o batismo no Jordão, se tenha internado no deserto de Judá e passado alguns dias a meditar sobre a missão que Deus Lhe confiara. Nesse retiro, Jesus confrontou-Se com uma luta interior em torno das opções fundamentais. É natural que, mais tarde, Jesus tenha falado com os discípulos sobre o que sentiu, quando teve de escolher, a fim de que eles percebessem que, ante o Reino de Deus, eles tinham de fazer opções. Esse diálogo deve ter causado impressão nos discípulos. O facto de o relato das tentações de Jesus ser conhecido desde o início nas comunidades cristãs mostra isso.
O deserto é tido como o lugar da prova, onde os Israelitas experimentaram a tentação do abandono de Deus e do seu projeto de libertação; e é o lugar do encontro com Deus e da descoberta do seu rosto, o espaço onde o Povo fez a experiência da fragilidade e da pequenez, o que o levou a aprender a confiar na bondade e no amor de Deus.
As tentações de Jesus não são contadas do mesmo modo nos Sinópticos. Marcos refere que Jesus “foi tentado”, sem entrar em pormenores; já Mateus e Lucas descrevem as tentações de Jesus em termos análogos, embora a segunda e a terceira apareçam em ordem diferente, nos dois. Lucas, preocupado em mostrar Jerusalém como lugar central na história da salvação, fez que o desafio entre Jesus e o diabo tivesse o seu epílogo em Jerusalém.
Lucas conta que, depois do batismo no Jordão, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto. Os quarenta dias que Jesus passou nesse lugar de prova, estão conexos com os quarenta anos que os Hebreus passaram no deserto, depois de serem libertados do Egito e onde tiveram de optar entre Deus e o mal, entre a liberdade e a escravidão. É importante a indicação de que Jesus é conduzido pelo Espírito de Deus, esse Espírito que desceu sobre Ele no momento em que foi batizado será o mesmo que o sustentará ao longo da sua missão e que lhe dará a força para fazer escolhas acertadas, na linha do desígnio de Deus.
O tempo que passou no deserto, a refletir sobre a missão que o esperava, foi, para Jesus, tempo de prova, de decisão, talvez de purificação das razões que o moviam. A figura do diabo corporiza, nesse contexto de escolhas, os caminhos errados que estão à disposição de Jesus. O cenário é montado à volta de um diálogo em que Jesus e o diabo debatem as diversas possibilidades que se apresentam, em luta dialética a partir de citações bíblicas.
No primeiro momento, Jesus é desafiado a optar pelos bens materiais, a usar a condição divina para satisfazer as necessidades básicas: “se és Filho de Deus, manda a esta pedra que se transforme em pão”. Jesus contesta que “nem só de pão vive o homem” e que o caminho do Pai não passa pela acumulação de bens. A resposta cita Dt 8,3, sugerindo que o seu alimento – a sua prioridade e interesse fundamental – é a Palavra e a vontade do Pai.
No segundo momento, Jesus é convidado a escolher o caminho do domínio e de prepotência, à laia dos grandes da Terra. Porém, Jesus está cônscio de que o apetite pelo poder é diabólico, pois contradiz os esquemas de Deus. E, citando Dt 6,13, afirma que, no seu plano, o único absoluto é Deus; o poder, que corrompe e escraviza, não é, para Ele, uma opção.
O terceiro momento é colocado por Lucas no pináculo do templo de Jerusalém, no canto sudoeste do edifício, onde os frequentadores do santuário desfrutam de magnífica vista sobre o vale do Cedron. O desafio a Jesus, citando o Sl 91,11-12 é o de usar a sua proximidade com Deus para provocar exibição de poder que mostre a Jerusalém a dimensão de Jesus. Seria forçar Deus a gesto espetacular que levasse as multidões a admirar e a aclamar Jesus. Jesus responde, citando Dt 6,16, que manda “não tentar” o Senhor Deus, ou seja, não utilizar os dons de Deus ou a bondade de Deus com fim egoísta e interesseiro. Jesus nega-se a provocar milagres, para legitimar a sua pessoa ou o seu poder junto das multidões.
Lucas acha que a questão das opções não está definitivamente resolvida, por parte de Jesus. Por isso, acrescenta que o diabo “retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo”. Jesus terá, pois, de renovar, a cada passo, a opção pelo projeto do Pai. Fica assente, porém, qual é o caminho que Jesus, desde o início, segue. Venceu o combate contra o mal. Não vive para acumular bens, para dominar sobre pessoas, para exibir em seu proveito a grandeza de Deus; propõe-se servir o desígnio de Deus, sem se desviar um milímetro da vontade do Pai.
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A segunda
leitura (Rm 10,8-13) sustenta que a salvação vem por Jesus.
Quem crê em Jesus e surfa a onda de vida que Ele traz, será salvo. Os que
acolhem Jesus tornam-se membros de uma família onde “não há diferença entre
judeu e grego”. Paulo escreve aos cristãos de Roma, quando está prestes a
terminar a terceira viagem missionária e prepara o retorno à Palestina, para
entregar os donativos recolhidos em diversas igrejas do Oriente, destinados a
ajudar os cristãos de Jerusalém. Sente que terminou a sua missão no Oriente,
pois as igrejas que fundou estão organizadas e podem avançar sozinhas. Dirigindo-se
aos cristãos de Roma, aproveita para estabelecer laços com eles e para lhes
apresentar os problemas que o ocupavam (nomeadamente, a unidade, problema na
comunidade de Roma, afetada por mau relacionamento entre judeo-cristãos e
pagano-cristãos). A Carta aos Romanos é serena e lúcida exposição da teologia
paulina.Na primeira parte, Paulo faz notar que o Evangelho é a força que congrega e salva todo o crente. Embora o pecado seja realidade universal, a “justiça de Deus” dá vida a todos e é em Cristo que essa vida se comunica ao homem e o transforma. Batizados em Cristo, os cristãos morrem para o pecado e nascem para a vida nova. Conduzidos pelo Espírito, tornam-se filhos de Deus; libertos do pecado e da morte, produzem frutos de santificação e caminham para a Vida eterna. Na segunda parte, Paulo, fala de forma prática, do modo de viver o Evangelho.
O trecho em referência integra uma reflexão de Paulo sobre o desígnio de Deus a respeito de Israel. A opção de Israel não é irreversível: basta-lhe corrigi-la e aceitar Jesus.
O apóstolo tinha aludido, pouco antes, ao orgulho e à autossuficiência dos Judeus, que pensavam assegurar a salvação pelas obras. A salvação, nesta ótica, dependia do homem e da sua vontade. Paulo sustenta que a salvação não é conquista do homem, mas dom de Deus. É Deus que, na sua bondade e na sua gratuitidade, “justifica” o homem.
A convicção de que não precisavam de Deus para alcançar a salvação levou Israel a rejeitar Cristo e a oferta de salvação que Ele, por mandato do Pai, trouxe. A proposta de Jesus parecia-lhes desnecessária. Escondidos nas suas certezas, deram-se ao luxo de a desprezar. Os pagãos, ao invés, acolheram a salvação que Jesus trouxe. Creram em Jesus e “alcançaram a justiça pela fé”. Porém, a salvação não foi retirada aos Judeus. Basta acolher Jesus como o Senhor e aceitar a sua condição de ressuscitado (“se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e se creres no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo”) para reencontrar o caminho.
Todos os que estiverem disponíveis para acolher Jesus formarão uma família, um povo (“não há diferença entre judeu e grego: todos têm o mesmo Senhor, rico para com todos os que O invocam”). O decisivo é acolher a salvação de Deus, por Jesus, e aderir à comunidade de irmãos.
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Na homilia
papal, lida pelo cardeal Michael Czerny, na Santa Missa Basílica de São Pedro, no âmbito do
Jubileu do Mundo do Voluntariado, há tiradas evangélicas e pastorais
interessantes:Considerando as caraterísticas da tentação de Jesus, encontraremos ajuda para a conversão.
No seu início, a tentação de Jesus é voluntária: vai para o deserto, pela disponibilidade filial ao Espírito do Pai, a cuja orientação responde de pronto. Nós, ao invés, sofremos a tentação: o mal precede a nossa liberdade, corrompe-a como sombra interior e como ameaça constante. Ao pedirmos a Deus que não nos abandone na tentação, recordamos que Ele atendeu esta prece através de Jesus, o Verbo que Se fez carne “para permanecer sempre connosco”. O Senhor está perto e cuida de nós, especialmente, “quando o tentador levanta a sua voz”. Este é “o pai da mentira, corrupto e corruptor”, porque “conhece a palavra de Deus, mas não a compreende”. Aliás, distorce-a: “como fez no tempo de Adão, no Jardim do Éden”.
É singular o modo com que Jesus é tentado, ou seja, na relação com Deus, seu Pai. O diabo (em Grego, “diábolos”) é o que separa, o divisor, enquanto Jesus é O que une Deus e o homem, o mediador. Perverso como é, o diabo tenta destruir esta união, fazendo de Jesus um privilegiado: “Se és Filho de Deus, diz a esta pedra que se transforme em pão”. Desde o pináculo do Templo, desfia: “Se és Filho de Deus, atira-te daqui abaixo”. Perante estas tentações, Jesus decide como ser filho e a sua escolha “revela como quer viver a sua relação filial com o Pai”. E “esta relação única e exclusiva com Deus, de quem é Filho Unigénito, torna-se uma relação que envolve todos, sem excluir ninguém”. A relação com o Pai é “o dom que Jesus comunica ao Mundo”, para a nossa salvação, não usurpação de que se possa valer para alcançar sucesso.
Já nós somos tentados na relação com Deus, de forma oposta. O diabo sussurra-nos que Deus não é o nosso Pai e que nos abandonou. Pretende convencer-nos de que não há pão para os famintos, nem os anjos vêm em nosso auxílio na desgraça. Ao invés, “o Mundo está nas mãos de forças malignas, que esmagam os povos com a arrogância dos seus planos e a violência da guerra”. Ora, enquanto “o diabo nos quer fazer crer que o Senhor está longe de nós, levando-nos ao desespero, Deus aproxima-se ainda mais, dando a sua vida pela redenção do Mundo”.
Quanto ao resultado das tentações, Jesus vence o mal, afasta o diabo, que voltará a tentá-lo “no tempo oportuno”. Recordá-lo-emos, quando, no Gólgota, ouvirmos dizerem a Jesus: “Se és Filho de Deus, desce da cruz.”. No deserto, o tentador é derrotado, mas a vitória de Cristo será definitiva só “na sua Páscoa de morte e de ressurreição”.
O resultado da nossa provação é diferente. Face à tentação, por vezes caímos: somos pecadores. Contudo, “a derrota não é definitiva, pois Deus levanta-nos de cada queda com o seu perdão, que é infinitamente grande em amor”. A nossa provação não termina com um fracasso, porque em Cristo somos redimidos do mal. Atravessando com Ele o deserto, é Jesus que nos abre a rota da libertação e da redenção. Seguindo-O com fé, de errantes passamos a peregrinos.
Porque, ao longo do caminho, necessitamos da boa vontade que o Espírito Santo sempre fomenta, é com alegria que o Papa saúda todos os voluntários presentes em Roma para a sua peregrinação jubilar. A exemplo de Jesus, servem o próximo, sem se servirem dele. “Nas ruas e nas casas, ao lado dos doentes, dos que sofrem, dos encarcerados, com os jovens e os idosos”, a sua dedicação “infunde esperança em toda a sociedade”. E “tantos pequenos gestos de serviço gratuito fazem florescer rebentos de uma nova Humanidade”, com que Deus sonhou e sonha.
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Tentação
não é pecado. Jesus foi tentado, mas não pecou, pois soube resistir. Tentação
não é pecado, mas pode levar ao pecado, se não houver capacidade de resistência.
O tentador não se compadece com explicações alongadas ou evasivas e não desarma.
A resposta eficaz é o “não” rotundo e seco, repetido sempre que necessário.A tentação é prova e, como tal, é o espaço da liberdade pelo bem ou pelo mal. O ser humano peca, porque não sabe ou não quer resistir à sedução e ao egoísmo.
Por isso, importa que um deserto, como a Quaresma, se torne o silêncio da escuta. É preciso dar ouvidos e coração à Palavra Deus e calar a boca ao diabo ou a quem faça as suas vezes. É na escuta da divina Palavra que se alicerça o processo de conversão. Este, entre os cristãos, não é a mudança de religião, mas a reflexão em torno da vida, fazendo o levantamento de tudo o que está mal, do que está menos bem e se ganha audácia para corrigir e, se necessário, para refazer a vida. Ao mesmo tempo, impõe-se a ação de graças pelo bem conseguido e o auxílio divino em ordem à progressão no caminho da salvação.
2025.03.10 – Louro de Carvalho
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