terça-feira, 25 de março de 2025

O 25 de Abril, em 2025, é celebrado por um Parlamento dissolvido

 

Embora a dissolução da Assembleia da República (AR) figure no sistema predominantemente parlamentar do nosso regime democrático, não deixa de ser norma excecional. E torna-se irónica a celebração, por uma AR dissolvida, do cinquentenário das primeiras eleições livres (as eleições para a Assembleia Constituinte, a 25 de abril de 1975) – de que resultou a AR, uma só câmara parlamentar (tal como a Assembleia Constituinte), com representação proporcional das diversas forças políticas com significativa implantação no eleitorado.

É certo que o governo caiu com a aprovação de uma moção de confiança tida como provocação do governo aos partidos da oposição, após a rejeição de duas moções de censura. Todavia, o chefe de Estado poderia ter promovido que o 25 de Abril deste ano fosse celebrado com uma AR em funções. Bastava ter protelado a dissolução para 26 ou para 27 de abril, com eleições legislativas em julho, ou para julho, com eleições em setembro. Os partidos políticos teriam mais tempo para se reorganizarem, ajustando os seus programas e as listas de candidatos a deputados.

Nós não temos tempo tão curto para eleições, como dizem alguns. É claro que os tempos eleitorais, em França, são curtíssimos, mas os resultados não são os melhores.

No entanto, o Presidente da República (PR) teve pressa em coonestar a atitude do primeiro-ministro (PM). Assim, evitou que tivesse sequência um requerimento potestativo do Partido Socialista (PS) para a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) à relação do PM com a sua empresa familiar Spinumviva (cuja participação vendeu à esposa com quem está casado no regime de comunhão de adquiridos) e com clientes da mesma, tendo, alegadamente, recebido pagamento de avença de, pelo menos, um dos clientes – CPI a que o chefe do governo, na minha ótica, fez tudo para se escapulir. Até penso (e a minha opinião vale o que vale) que, se a moção de confiança fosse aprovada e o PS insistisse na CPI, o PM apresentaria o pedido de demissão, sem que o chefe de Estado o demovesse do intento.   

Aliás, não é a primeira vez que o PR interrompe um processo em curso na AR. Em janeiro de 2024, interrompeu o processo de revisão constitucional em curso, tida como necessária por alguns especialistas, para a AR poder dotar o país de instrumentos jurídicos, em caso de pandemia, e para dissipar qualquer dúvida de constitucionalidade na legislação atinente aos metadados.

Nessa altura, sobrepôs-se a tudo a doutrina formulada pelo chefe de Estado, aquando da tomada de posse do governo com apoio de maioria parlamentar absoluta (de um só partido), sustentando, sem claro suporte constitucional, que o eleitorado votou na personalidade de António Costa primeiro-ministro. Ora, tal maioria revelou-se alegadamente, cansada e agastada, mas o PR terá contribuído, ativa e publicamente, para esse cansaço e para esse agastamento que denunciou.

Porém, se houve desgaste, foi no governo e não na maioria parlamentar que o apoiava.

Tal doutrina impediu que a demissão do governo de António Costa não desse lugar à nomeação presidencial de um governo liderado por outra personalidade do PS, levando, por exclusiva responsabilidade do chefe de Estado (como o próprio declarou), à interrupção de projetos relevantes, como a referida revisão constitucional, ou seja, à dissolução de uma AR com poderes constituintes.

O PR, sem invocar a sua própria doutrina eleitoral, escudou-se no precedente criado, em dezembro de 2004, por Jorge Sampaio, porém, esquecendo que a maioria parlamentar que apoiava o governo de Santana Lopes não era de um só partido e que o seu governo funcionava aos solavancos, embora não estivesse em funcionamento irregular. E Jorge Sampaio nunca deu fundamentada razão de política constitucional para uma dissolução parlamentar de uma AR com maioria absoluta (que não acusava desgaste), deixando pairar a dúvida de que o terá feito por motivos meramente partidários, ao invés do que fizera com a demissão de durão Barroso, em julho de 2004, parece que escudado no prurido que novas eleições, supostamente, causariam a chefes de Estado e de governo europeus, com base na saída de um PM para a Comissão Europeia.  

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É óbvio que, em 2025, Marcelo Rebelo de Sousa dificilmente desdiria da doutrina que formulou em 2022, inoportunamente, mas sem contestação por parte das principais figuras políticas, que deveriam ter suscitado o debate e explorado o contraditório.

É claro que o líder de grande partido “candidata-se” ao cargo de primeiro-ministro, mas essa candidatura pode “borregar”, se o partido ou a coligação que lidera perder as eleições ou se a composição da AR determinar uma maioria parlamentar de que esse partido ou coligação não faça parte integrante. Já tivemos esse cenário, que muitos acharam estranho, mas que se enquadra no nosso sistema constitucional, tal como de outros países europeus.

Todavia, seria bom que o PR desdissesse da sua doutrina, negociando com a Aliança Democrática (AD) e, em especial, com o Partido Social Democrata (PSD) a escolha de uma outra figura que assumisse a chefia do governo. Coerentemente, o PS viabilizaria, como fez em abril de 2024, a investidura do novo governo. A CPI avançaria durante os 90 dias previstos, saber-se-iam muitas verdades, embora o eventual relatório final não fosse consensual. Seria serviço político limpo, ficando para o Ministério Público (MP), eventual investigação e ação penal, se fosse apurada matéria para isso.

Porém, a intempestiva dissolução parlamentar, além de travar a CPI à atividade do primeiro-ministro, condicionou as conclusões da CPI ao caso das gémeas, de forma altamente discutível: rejeição arrasante da proposta de relatório preliminar da relatora e apresentação de uma proposta alternativa de relatório final da parte do PSD, com alterações sugeridas pelo PS, que mereceu aprovação maioritária, mas cujas conclusões condizem pouco com o grosso das declarações prestadas na CPI.

A dissolução intempestiva da AR criou dúvidas sobre a lei da desagregação de mais de três centenas de freguesias. Marcelo Rebelo de Sousa opôs-lhe o veto político, aduzindo a sua não concordância pelo facto de entrar em vigor em ano de eleições autárquicas. Porém, como a AR confirmou o diploma, sem quaisquer alterações, por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, o PR teve, nos termos constitucionais, a obrigação de o promulgar, como estabelece a Constituição da República Portuguesa (CRP), artigo 136.º, n.º 2. 

Não obstante, como a dissolução apressada da AR implicou novas eleições de âmbito nacional, discute-se se a Lei n.º 25-A/2025, de 13 de março, que entrou em vigor, a 14 de março (o dia seguinte ao da sua publicação), pode ser aplicada, dado que tais eleições, para garantir a indubitável aplicação da lei, só poderiam ocorrer em setembro, para o que teria de a AR ser dissolvida apenas em fins de junho ou em princípios de setembro. E até à posse do novo governo (tendo sido decidida a opção por eleições legislativas antecipadas), o atual manter-se-ia em gestão.

Na verdade, a Lei n.º 39/2021, de 24 de junho (a lei-quadro), que define o regime jurídico de criação, modificação e extinção de freguesias e revoga a Lei n.º 11-A/2013, de 28 de janeiro, que procede à reorganização administrativa do território das freguesias, estabelece, no n.º 1 do seu artigo 15.º, que “não é permitida a criação de freguesias durante o período de seis meses imediatamente antecedente à data marcada para a realização de quaisquer eleições a nível nacional”. E o n.º 4 do mesmo artigo estabelece que “a eleição dos titulares dos órgãos das freguesias criadas ao abrigo da presente lei ocorre na data da realização, a nível nacional, das eleições autárquicas seguintes”.

Todavia, não é devido às eleições autárquicas (em setembro ou em outubro), também de âmbito nacional (mas não implicando a aplicação da lei, que foi promulgada antes da decisão da AR, embora o PR já tivesse equacionado a hipótese de eleições a 11 ou a 18 de maio) que a lei não será aplicada. Na opinião de alguns, a lei só terá aplicabilidade em 2026, depois das eleições presidenciais, ao passo que, no entender de outros (incluo-me nestes), a lei pode ser perfeitamente aplicada, neste ano, pois foi discutida, aprovada e promulgada, apesar de após veto político de fundamentação discutível, antes da marcação de eleições.

Nesta situação de perplexidade, a Iniciativa Liberal (IL) solicitou à provedora de Justiça que pedisse ao Tribunal Constitucional (TC) a declaração abstrata da ilegalidade desta medida.

Na verdade, não há, nesta lei, uma questão de constitucionalidade, pois a AR terá observado todos os procedimentos exigidos pela lei-quadro. A questão que se levanta é se, criadas, a posteriori, condições que inibem a aplicação da lei em causa, deve prevalecer esta ou a lei-quadro.

Se prevalecer Lei n.º 25-A/2025, de 13 de março, as eleições autárquicas do outono já abrangerão as novas freguesias, correspondendo às legítimas expectativas das mesmas, dotando-as dos respetivos órgãos autárquicos; ao invés, se prevalecer a Lei n.º 39/2021, de 24 de junho, as novas freguesias só disporão de órgãos próprios depois das eleições presidenciais de 2024, se a AR não for, entretanto, dissolvida novamente, frustrando as expectativas das novas freguesias (aliás, não se sabe se foram efetivamente recriadas).

Juristas eivados de purismo radical até dirão que a lei promulgada e publicada, depois de conhecida a marcação de eleições de âmbito nacional, será nula. Não o creio. Com efeito, se assim fosse, teria o PR ficado para o futuro como o responsável deliberado desta “maldade”, o que não é de acreditar. O responsável pela crise política é só o primeiro-ministro, que começou por negar qualquer ilegalidade ou falha de ética na sua relação a empresa familiar em causa e foi debitando informação insuficiente e a conta-gotas. Neste aspeto, ao PR só poderá apontar-se a desviante doutrina eleitoral que formulou, em 2022, em que se manteve, em 2025, e a pressa com que tentou resolver a crise.

Os Presidentes da República têm fugido, como o diabo da cruz, da aplicação do n.º 2 do artigo 195.º da CRP, que estipula: “O Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado.” Na verdade, como têm dificuldade em julgar as instituições democráticas, em termos do seu regular funcionamento, optam, a meu ver, de modo epidérmico, pela dissolução parlamentar, prerrogativa de que entendem poder dispor discricionariamente, salvo nas situações tipificadas na CRP (ver artigo 172.º). É uma prerrogativa que devia ser mais condicionada, como, por exemplo, não poder haver dissolução, quando está em curso um processo de revisão constitucional, uma lei, como a da criação de freguesias, ou uma CPI. Além disso, o PR deveria ter mostrado haver diligenciado em prol de uma outra solução governativa no quadro parlamentar vigente, antes de reunir o Conselho de Estado.

A queda de um governo, por força de aprovação de moção censura, por não aprovação de moção de confiança e por rejeição parlamentar do seu programa, tem efeitos imediatos, mas não o abandono de funções (deve manter-se em gestão até à posse do novo governo). Já o pedido de demissão do PM carece de aceitação do PR, que pode atrasar essa aceitação, devendo, também neste caso, o executivo manter-se em gestão até à posse do novo governo.             

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Umas eleições legislativas poderiam ser em setembro e as autárquicas em outubro, como aconteceu em 2009. Então, as legislativas realizaram-se a 27 de outubro e as autárquicas a 11 de outubro. Contudo, ninguém se atrapalhou. Até as duas eleições poderiam ser no mesmo dia. Os eleitores sabem distinguir o que querem. E a administração pública e os partidos têm a obrigação de fazer a pedagogia eleitoral, e não só montar a logística (e sanar irregularidades, que há sempre) e proceder à propaganda, respetivamente.

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Por fim, uma crítica à advertência do PR, por extemporânea, de que só dará posse a um governo que tenha a garantia de fazer passar o seu programa na AR. O PR não deve produzir asserções que possam condicionar o eleitorado. E os apoios ao governo podem surgir em cima da hora.

Também se critica a deliberação consensual da conferência de líderes na AR de se celebrar o 25 de Abril nas instalações da AR dissolvida, um contrassenso. Talvez lhes coubesse a iniciativa de alterar o PR para a inconveniência da dissolução antes dessa importante data comemorativa, logo que o PM desafiou os partidos com assento parlamentar. Como é que um órgão de soberania aceita serenamente a sua dissolução? É certo que não se prejudica a subsistência do mandato dos deputados, nem da Comissão Permanente (ver CRP, artigo 172.º, n.º 3), mas a AR não funciona.

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2025.03.25 – Louro de Carvalho

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