Embora
a dissolução da Assembleia da República (AR) figure no sistema
predominantemente parlamentar do nosso regime democrático, não deixa de ser
norma excecional. E torna-se irónica a celebração, por uma AR dissolvida, do
cinquentenário das primeiras eleições livres (as eleições para a Assembleia
Constituinte, a 25 de abril de 1975) – de que resultou a AR, uma só câmara
parlamentar (tal como a Assembleia Constituinte), com representação proporcional
das diversas forças políticas com significativa implantação no eleitorado.
É
certo que o governo caiu com a aprovação de uma moção de confiança tida como
provocação do governo aos partidos da oposição, após a rejeição de duas moções
de censura. Todavia, o chefe de Estado poderia ter promovido que o 25 de Abril
deste ano fosse celebrado com uma AR em funções. Bastava ter protelado a
dissolução para 26 ou para 27 de abril, com eleições legislativas em julho, ou
para julho, com eleições em setembro. Os partidos políticos teriam mais tempo
para se reorganizarem, ajustando os seus programas e as listas de candidatos a
deputados.
Nós
não temos tempo tão curto para eleições, como dizem alguns. É claro que os
tempos eleitorais, em França, são curtíssimos, mas os resultados não são os
melhores.
No
entanto, o Presidente da República (PR) teve pressa em coonestar a atitude do
primeiro-ministro (PM). Assim, evitou que tivesse sequência um requerimento
potestativo do Partido Socialista (PS) para a constituição de uma comissão
parlamentar de inquérito (CPI) à relação do PM com a sua empresa familiar
Spinumviva (cuja participação vendeu à esposa com quem está casado no regime de
comunhão de adquiridos) e com clientes da mesma, tendo, alegadamente, recebido pagamento
de avença de, pelo menos, um dos clientes – CPI a que o chefe do governo, na
minha ótica, fez tudo para se escapulir. Até penso (e a minha opinião vale o
que vale) que, se a moção de confiança fosse aprovada e o PS insistisse na CPI,
o PM apresentaria o pedido de demissão, sem que o chefe de Estado o demovesse
do intento.
Aliás,
não é a primeira vez que o PR interrompe um processo em curso na AR. Em janeiro
de 2024, interrompeu o processo de revisão constitucional em curso, tida como
necessária por alguns especialistas, para a AR poder dotar o país de
instrumentos jurídicos, em caso de pandemia, e para dissipar qualquer dúvida de
constitucionalidade na legislação atinente aos metadados.
Nessa
altura, sobrepôs-se a tudo a doutrina formulada pelo chefe de Estado, aquando
da tomada de posse do governo com apoio de maioria parlamentar absoluta (de um
só partido), sustentando, sem claro suporte constitucional, que o eleitorado
votou na personalidade de António Costa primeiro-ministro. Ora, tal maioria
revelou-se alegadamente, cansada e agastada, mas o PR terá contribuído, ativa e
publicamente, para esse cansaço e para esse agastamento que denunciou.
Porém,
se houve desgaste, foi no governo e não na maioria parlamentar que o apoiava.
Tal
doutrina impediu que a demissão do governo de António Costa não desse lugar à
nomeação presidencial de um governo liderado por outra personalidade do PS,
levando, por exclusiva responsabilidade do chefe de Estado (como o próprio
declarou), à interrupção de projetos relevantes, como a referida revisão
constitucional, ou seja, à dissolução de uma AR com poderes constituintes.
O
PR, sem invocar a sua própria doutrina eleitoral, escudou-se no precedente
criado, em dezembro de 2004, por Jorge Sampaio, porém, esquecendo que a maioria
parlamentar que apoiava o governo de Santana Lopes não era de um só partido e
que o seu governo funcionava aos solavancos, embora não estivesse em
funcionamento irregular. E Jorge Sampaio nunca deu fundamentada razão de
política constitucional para uma dissolução parlamentar de uma AR com maioria
absoluta (que não acusava desgaste), deixando pairar a dúvida de que o terá
feito por motivos meramente partidários, ao invés do que fizera com a demissão
de durão Barroso, em julho de 2004, parece que escudado no prurido que novas
eleições, supostamente, causariam a chefes de Estado e de governo europeus, com
base na saída de um PM para a Comissão Europeia.
***
É
óbvio que, em 2025, Marcelo Rebelo de Sousa dificilmente desdiria da doutrina
que formulou em 2022, inoportunamente, mas sem contestação por parte das
principais figuras políticas, que deveriam ter suscitado o debate e explorado o
contraditório.
É
claro que o líder de grande partido “candidata-se” ao cargo de primeiro-ministro,
mas essa candidatura pode “borregar”, se o partido ou a coligação que lidera
perder as eleições ou se a composição da AR determinar uma maioria parlamentar
de que esse partido ou coligação não faça parte integrante. Já tivemos esse cenário,
que muitos acharam estranho, mas que se enquadra no nosso sistema
constitucional, tal como de outros países europeus.
Todavia,
seria bom que o PR desdissesse da sua doutrina, negociando com a Aliança
Democrática (AD) e, em especial, com o Partido Social Democrata (PSD) a escolha
de uma outra figura que assumisse a chefia do governo. Coerentemente, o PS
viabilizaria, como fez em abril de 2024, a investidura do novo governo. A CPI
avançaria durante os 90 dias previstos, saber-se-iam muitas verdades, embora o
eventual relatório final não fosse consensual. Seria serviço político limpo,
ficando para o Ministério Público (MP), eventual investigação e ação penal, se
fosse apurada matéria para isso.
Porém,
a intempestiva dissolução parlamentar, além de travar a CPI à atividade do
primeiro-ministro, condicionou as conclusões da CPI ao caso das gémeas, de forma
altamente discutível: rejeição arrasante da proposta de relatório preliminar da
relatora e apresentação de uma proposta alternativa de relatório final da parte
do PSD, com alterações sugeridas pelo PS, que mereceu aprovação maioritária,
mas cujas conclusões condizem pouco com o grosso das declarações prestadas na
CPI.
A
dissolução intempestiva da AR criou dúvidas sobre a lei da desagregação de mais
de três centenas de freguesias. Marcelo Rebelo de Sousa opôs-lhe o veto
político, aduzindo a sua não concordância pelo facto de entrar em vigor em ano
de eleições autárquicas. Porém, como a AR confirmou o diploma, sem quaisquer
alterações, por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, o PR
teve, nos termos constitucionais, a obrigação de o promulgar, como estabelece a
Constituição da República Portuguesa (CRP), artigo 136.º, n.º 2.
Não
obstante, como a dissolução apressada da AR implicou novas eleições de âmbito
nacional, discute-se se a Lei n.º 25-A/2025, de 13 de março,
que entrou em vigor, a 14 de março (o dia seguinte ao da sua publicação), pode
ser aplicada, dado que tais eleições, para garantir a indubitável aplicação da
lei, só poderiam ocorrer em setembro, para o que teria de a AR ser dissolvida
apenas em fins de junho ou em princípios de setembro. E até à posse do novo
governo (tendo sido decidida a opção por eleições legislativas antecipadas), o
atual manter-se-ia em gestão.
Na
verdade, a Lei n.º 39/2021, de 24 de junho (a lei-quadro), que define o regime
jurídico de criação, modificação e extinção de freguesias e revoga a Lei n.º
11-A/2013, de 28 de janeiro, que procede à reorganização administrativa do
território das freguesias, estabelece, no n.º 1 do seu artigo 15.º, que “não é
permitida a criação de freguesias durante o período de seis meses imediatamente
antecedente à data marcada para a realização de quaisquer eleições a nível
nacional”. E o n.º 4 do mesmo artigo estabelece que “a eleição dos titulares
dos órgãos das freguesias criadas ao abrigo da presente lei ocorre na data da
realização, a nível nacional, das eleições autárquicas seguintes”.
Todavia,
não é devido às eleições autárquicas (em setembro ou em outubro), também de
âmbito nacional (mas não implicando a aplicação da lei, que foi promulgada
antes da decisão da AR, embora o PR já tivesse equacionado a hipótese de
eleições a 11 ou a 18 de maio) que a lei não será aplicada. Na opinião de
alguns, a lei só terá aplicabilidade em 2026, depois das eleições
presidenciais, ao passo que, no entender de outros (incluo-me nestes), a lei
pode ser perfeitamente aplicada, neste ano, pois foi discutida, aprovada e promulgada,
apesar de após veto político de fundamentação discutível, antes da marcação de
eleições.
Nesta
situação de perplexidade, a Iniciativa Liberal (IL) solicitou à provedora de
Justiça que pedisse ao Tribunal Constitucional (TC) a declaração abstrata
da ilegalidade desta medida.
Na
verdade, não há, nesta lei, uma questão de constitucionalidade, pois a AR terá observado
todos os procedimentos exigidos pela lei-quadro. A questão que se levanta é se,
criadas, a posteriori, condições que
inibem a aplicação da lei em causa, deve prevalecer esta ou a lei-quadro.
Se
prevalecer Lei n.º 25-A/2025, de 13 de março, as eleições
autárquicas do outono já abrangerão as novas freguesias, correspondendo às
legítimas expectativas das mesmas, dotando-as dos respetivos órgãos autárquicos;
ao invés, se prevalecer a Lei n.º 39/2021, de 24 de junho, as novas freguesias
só disporão de órgãos próprios depois das eleições presidenciais de 2024, se a
AR não for, entretanto, dissolvida novamente, frustrando as expectativas das
novas freguesias (aliás, não se sabe se foram efetivamente recriadas).
Juristas eivados de purismo radical até dirão que
a lei promulgada e publicada, depois de conhecida a marcação de eleições de âmbito
nacional, será nula. Não o creio. Com efeito, se assim fosse, teria o PR ficado para o futuro
como o responsável deliberado desta “maldade”, o que não é de acreditar. O responsável
pela crise política é só o primeiro-ministro, que começou por negar qualquer
ilegalidade ou falha de ética na sua relação a empresa familiar em causa e foi debitando
informação insuficiente e a conta-gotas. Neste aspeto, ao PR só poderá apontar-se
a desviante doutrina eleitoral que formulou, em 2022, em que se manteve, em
2025, e a pressa com que tentou resolver a crise.
Os
Presidentes da República têm fugido, como o diabo da cruz, da aplicação do n.º
2 do artigo 195.º da CRP, que estipula: “O
Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se torne
necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições
democráticas, ouvido o Conselho de Estado.” Na verdade, como têm dificuldade
em julgar as instituições democráticas, em
termos do seu regular funcionamento, optam, a meu ver, de modo epidérmico, pela
dissolução parlamentar, prerrogativa de que entendem poder dispor discricionariamente,
salvo nas situações tipificadas na CRP (ver artigo 172.º). É uma prerrogativa
que devia ser mais condicionada, como, por exemplo, não poder haver dissolução,
quando está em curso um processo de revisão constitucional, uma lei, como a da
criação de freguesias, ou uma CPI. Além disso, o PR deveria ter mostrado haver
diligenciado em prol de uma outra solução governativa no quadro parlamentar
vigente, antes de reunir o Conselho de Estado.
A queda de um governo, por força de aprovação de moção
censura, por não aprovação de moção de confiança e por rejeição parlamentar do
seu programa, tem efeitos imediatos, mas não o abandono de funções (deve
manter-se em gestão até à posse do novo governo). Já o pedido de demissão do PM
carece de aceitação do PR, que pode atrasar essa aceitação, devendo, também
neste caso, o executivo manter-se em gestão até à posse do novo governo.
***
Umas
eleições legislativas poderiam ser em setembro e as autárquicas em outubro, como
aconteceu em 2009. Então, as legislativas realizaram-se a 27 de outubro e as autárquicas
a 11 de outubro. Contudo, ninguém se atrapalhou. Até as duas eleições poderiam
ser no mesmo dia. Os eleitores sabem distinguir o que querem. E a administração
pública e os partidos têm a obrigação de fazer a pedagogia eleitoral, e não só montar
a logística (e sanar irregularidades, que há sempre) e proceder à propaganda, respetivamente.
***
Por
fim, uma crítica à advertência do PR, por extemporânea, de que só dará posse a
um governo que tenha a garantia de fazer passar o seu programa na AR. O PR não
deve produzir asserções que possam condicionar o eleitorado. E os apoios ao
governo podem surgir em cima da hora.
Também
se critica a deliberação consensual da conferência de líderes na AR de se celebrar
o 25 de Abril nas instalações da AR dissolvida, um contrassenso. Talvez lhes
coubesse a iniciativa de alterar o PR para a inconveniência da dissolução antes
dessa importante data comemorativa, logo que o PM desafiou os partidos com
assento parlamentar. Como é que um órgão de soberania aceita serenamente a sua dissolução?
É certo que não se prejudica a subsistência do mandato dos deputados, nem da
Comissão Permanente (ver CRP, artigo 172.º, n.º 3), mas a AR não funciona.
***
2025.03.25 – Louro de Carvalho
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