quinta-feira, 6 de março de 2025

A Cimeira do Cairo para Gaza ficou aquém do desejável

Líderes de todo o mundo árabe reuniram-se no Cairo, capital do Egito, no dia 4 de março – com a presença do presidente do Conselho da União Europeia (UE), António Costa, e do secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres –, para uma “cimeira de emergência”, com o objetivo de criar uma posição árabe unificada, a contrariar a recente proposta presidente dos Estados Unidos (EUA), Donald Trump sobre o futuro da Faixa de Gaza, o qual visa “tomar conta” daquele território e deslocar os seus cerca de 2,1 milhões de habitantes para criar uma “Riviera do Médio Oriente”.
Assim, os líderes árabes acabaram por adotaram um plano para a reconstrução da Faixa de Gaza e o regresso da Autoridade Palestiniana (AP), apresentado como alternativa ao plano de Donald Trump de colocar o território sob controlo americano.
Os líderes dos países da Liga Árabe alertaram contra as tentativas “odiosas” de deslocar a população de Gaza; apelaram à união dos Palestinianos sob a égide da Organização de Libertação da Palestina (OLP), excluindo o Hamas, que não é membro daquela entidade; acordaram em criar um fundo para financiar a reconstrução daquele território, destruído por 15 meses de guerra entre Israel e o Hamas; e apelaram a uma contribuição internacional para acelerar o processo.
De acordo com o plano, a Faixa de Gaza será administrada, durante um período de transição, por um comité de tecnocratas palestinianos, antes de a AP retomar o controlo do território.
Apesar de excluído, o Hamas saudou o plano e a criação do comité para gerir o território após a guerra.
O Egito gizou um plano de 53 mil milhões de dólares (50 mil milhões de euros) em cinco anos, estimativa equivalente à da ONU, para reconstruir a Faixa de Gaza. A primeira fase da reconstrução, com a duração de seis meses, será consagrada à remoção dos escombros, à desminagem e ao alojamento provisório de mais de 1,5 milhões de pessoas. Seguir-se-ão duas fases de reconstrução: a primeira abrangerá as infraestruturas essenciais e o alojamento permanente; e a segunda, as que incluem um porto comercial e um aeroporto.
O presidente egípcio, Abdel Fattah al-Sissi, afirmou que o plano garantirá que os 2,4 milhões de habitantes de Gaza permaneçam nas suas terras, em resposta ao plano do presidente dos EUA de os expulsar para o Egito e para a Jordânia. Todavia, não criticou, diretamente, o plano de Donald Trump, que causou protesto internacional, no início de fevereiro, e disse que o presidente norte-americano era “capaz de alcançar a paz”, na região.
Segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros egípcio, Badr Abdelatty, o Cairo procurará o apoio dos países muçulmanos para o plano, numa cimeira de emergência da Organização de Cooperação Islâmica (OCI), agendada para 7 de março, em Jeddah, na Arábia Saudita, para que o projeto “se torne um plano árabe e islâmico”.
A cimeira realizou-se num contexto de impasse sobre a continuação do cessar-fogo em vigor desde 19 de janeiro, entre Israel, que exige a “desmilitarização total” de Gaza, e o Hamas, que insiste em permanecer no território, pois tomou o poder, no território, em 2007, depois de ter destituído a AP, liderada por Mahmoud Abbas, de 89 anos, que se disse, nesta cimeira, preparado para organizar eleições presidenciais e legislativas nos Territórios Palestinianos, em 2026, “desde que as condições estejam reunidas”.
António Guterres afirmou que a ONU “apoia firmemente” o plano árabe. Porém, o governo de Israel reitera que se reserva o direito de retomar os combates em qualquer altura para aniquilar o Hamas se este não depuser as armas, e lamentou que a cimeira, em que participaram também a União Africana (UA) e a UE, tenha optado pelo plano egípcio para a reconstrução de Gaza, sem avaliar a ideia de Donald Trump.
A primeira fase da trégua de 42 dias entre Israel e o Hamas terminou em 1 de março, depois do regresso de 33 reféns detidos em Gaza, em troca da libertação, por Israel, de cerca de 1800 detidos palestinianos. As duas partes estão em desacordo sobre a próxima fase do processo, cuja primeira consequência é o bloqueio imposto por Israel, a 2 de março, à entrada de ajuda humanitária na Faixa de Gaza sitiada. Porém, os Islamitas insistem na “necessidade de obrigar” Israel a aplicar a segunda fase do acordo de cessar-fogo, que deveria ter entrado em vigor no dia 2, e a “rejeitar qualquer projeto que vise a deslocação dos Palestinianos”.
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Depois de os líderes de todo o Médio Oriente e do Norte de África se terem reunido para discutir e assinar a proposta de “paz abrangente e justa”, em Gaza, sem deslocar os seus 2,1 milhões de habitantes, a imprensa da região elogiou a cimeira como “uma posição árabe unificada”. E os analistas da região elogiaram o sentimento, mas questionaram a viabilidade das propostas dos países árabes. “O Egito lança uma ‘tábua de salvação’ para a causa”, dizia a manchete do jornal estatal egípcio Al Ahram, enquanto um dos principais jornais jordanos considerava a proposta “uma visão clara e implementável para gerir Gaza”.
Fontes diplomáticas jordanas que estiveram presentes na cimeira de emergência afirmaram à Euronews que a reunião demonstrou “unidade” e “clara refutação dos planos de Donald Trump” de fazer de Gaza “a riviera do Médio Oriente”, removendo a população à força.
Os comentários iniciais dos funcionários jordanos refletiram as declarações do rei Abdullah II do país. “O resultado da nossa cimeira deve ser a tomada de medidas práticas para apoiar os nossos irmãos palestinianos, apoiar a sua firmeza na sua terra, aliviar o seu sofrimento e mobilizar os esforços internacionais para parar tudo o que impede a conquista da paz”, disse o monarca na conferência.
O diretor regional da Human Rights Watch, Lama Fakih, considera que a cimeira atingiu esse objetivo. “Algumas das coisas que procurávamos, no acordo, eram a confirmação de que haveria espaço para os Palestinianos e para Gaza terem autodeterminação e poderem agir”, explicou à Euronews, vincando é “uma proposta séria”, que “deve ser analisada quanto à sua substância”.
“Não é assim”, defende David Schenker, secretário de Estado Adjunto dos EUA para os Assuntos do Médio Oriente, no primeiro mandato de Donald Trump, ajudando a criar os Acordos de Abraão, normalizando as relações diplomáticas entre Israel e uma série de nações árabes. “O plano de reconstrução tem 100 páginas de pormenores sobre habitações e estruturas temporárias. Penso que isso é menos preocupante. O documento nem sequer menciona o Hamas”, disse à Euronews, a partir do seu gabinete, no The Washington Institute for Near East Policy.
O antigo diplomata sustenta que o plano não tem propostas concretas para manter a segurança em Gaza e na Cisjordânia. Por isso, pensa que o plano não tem qualquer hipótese para Israel e para o seu maior apoiante financeiro e militar. A única coisa que tem sobre segurança é a formação da polícia, que já aconteceu antes. Depois, fala de “forças de paz da ONU”, o que, Schenker julga “totalmente inaceitável”, tanto para Israel como para os EUA. Com efeito ambos consideram que as forças de manutenção da paz no Líbano “ajudaram e incentivaram” um dos inimigos regionais de Israel, o Hezbollah.
Depois de ter cortejado os eleitores árabes e muçulmanos em novembro, Trump reiterou o apoio a Israel e, no dia 4, avisou o Hamas, na sua plataforma Truth Social, que, se não libertasse todos os reféns restantes, “seria o fim” prometendo “acabar o trabalho”.
A questão do Hamas preocupa Hesham Alghannam, diretor-geral do Centro de Investigação em Segurança da Universidade Árabe de Naif, na Arábia Saudita, segundo o qual a ambiguidade do plano em questões cruciais, como papel do Hamas, prazos de implementação e mecanismos de execução, “compromete a sua praticabilidade”. Além disso, falta uma “estrutura de governação clara ou um quadro de segurança”.
David Schenker diz que as propostas de Donald Trump são irrealistas, mas qualquer plano está condenado ao fracasso sem o seu apoio. E sublinhou: “O líder árabe que vier a Washington e apresentar esta visão ao presidente vai receber o tratamento de Zelensky.”
Não obstante, a cimeira pareceu mostrar harmonia entre os membros da Liga Árabe – ou, pelo menos, entre os que estavam na sala. E os governos de toda a região emitiram declarações a reiterar o seu apoio à proposta egípcia, o que poderá ser suficiente para afastar, por enquanto, as ambições controversas de Trump. Todavia, à porta fechada, os funcionários jordanos mostraram-se preocupados com a falta de participação dos líderes dos principais países da região, ao passo que o rei jordano, segundo eles, se mostrou “pronto a estar presente em todas as oportunidades para resolver a crise”. De facto, foi o primeiro – e, até agora, único – líder árabe a encontrar-se com Trump, com quem falou sobre os planos para Gaza.
Porém, o líder argelino, Abdelmadjid Tebboune, retirou-se da cimeira do Cairo, pelos vistos, “profundamente perturbado”, após os membros do Conselho de Cooperação do Golfo se terem reunido com os líderes jordanos e egípcios, em Riade, a 21 de fevereiro, para uma minicimeira sobre Gaza. Com efeito, a Argélia tratar-se de “um processo monopolizado por um grupo restrito e limitado, como se o apoio à causa palestiniana se tornasse um direito exclusivo de alguns”.
Também os líderes de países a quem a Argélia apontou o dedo se mantiveram afastados. O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman, e o líder dos Emirados Árabes Unidos (EAU), Mohammed bin Zayed Al Nahyan, não estiveram presentes no Cairo.
Hesham Alghannam atribui o facto, em parte, ao dinheiro. Ambos os líderes estiveram no centro das discussões anteriores, sobretudo em Riade, e terão considerado a cimeira do Cairo redundante. Como sustentou, com a sua influência económica e política significativa, “podem preferir exercer influência em contextos mais pequenos e mais controlados”.
Schenker, por seu turno, considerou que estes países “já não são o multibanco do mundo árabe” e, com os preços do petróleo a descerem para 70 dólares, por barril, não se sentirão bem hoje.
Não obstante, apesar dos desacordos e da ambiguidade, Fakih e muitos outros veem a proposta, apoiada por unanimidade, como algo a partir do qual se pode trabalhar no futuro. “É um ponto de partida para a discussão”, concluiu Fakih, que a vê como “uma moeda de troca”.
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“O plano aprovado é uma alternativa credível, prática e realista para proposta que sugeria um exílio forçado dos Palestinianos”, proclamou, ao fim do dia da cimeira, Ahmed Aboul Gheit, secretário-geral da Liga Árabe.
De facto, o plano prevê a reconstrução faseada de Gaza e “preserva o estatuto legal de Gaza como parte de um futuro Estado palestiniano”, governada pela AP, mas não convence, pois, entre omissões e estratégias pouco realistas, não explica como o Hamas seria excluído.
Depois de Donald Trump ter proposto que os EUA controlassem Gaza, enviando os dois milhões de habitantes para a Jordânia e para o Egito e desenvolvendo, de raiz, uma “Riviera no Médio Oriente” no local, os olhos focaram-se no mundo árabe. 
O comunicado final da cimeira alerta que “todas as tentativas de mover, à força, os Palestinianos ou [de] anexar territórios palestinianos só mergulharão a região num conflito mais profundo”. A proposta reitera que a reconstrução de Gaza deve ser acompanhada em paralelo “com o lançamento de um processo político para o reconhecimento pleno do Estado da Palestina”. E os dirigentes árabes exprimiram o desejo de unificar as fações palestinianas sob a OLP, a força política dominante na Cisjordânia, mas rival do Hamas.
O plano parece não ter pernas para andar. “Foi uma espécie de anticlímax”, disse ao Expresso um diplomata turco, sob anonimato. A Turquia é um dos grandes defensores da causa palestiniana, tem tentado unificar as fações palestinianas e defende a solução de dois Estados soberanos, segundo as fronteiras acordadas em 1967. Porém, os países árabes não se chegaram à frente, para a aplicação, no terreno, do plano, segundo o qual a segurança de Gaza e da Cisjordânia será assegurada por missão internacional de capacetes-azuis da ONU. Em primeira fase, a ordem pública seria garantida por Palestinianos treinados no Egito ou na Jordânia.
Segundo Hassan Nafaa, professor de ciências políticas na Universidade do Cairo, em entrevista a um jornal do Médio Oriente, “a cimeira deveria passar a mensagem de que os Estados árabes estão unidos e solidários com Gaza” e propor um roteiro definitivo, incluindo normalização das relações com Israel, impedindo Israel e os EUA de insistirem no seu plano. Porém, no dizer do investigador, “alguns estados escolheram priorizar os seus interesses económicos e geopolíticos, em prejuízo dos Palestinianos”, tendo riscos esta passividade, “se a rua árabe julgar que os seus líderes são cúmplices na liquidação da causa palestiniana”.
O Hamas, que não participou na cimeira, gostou do plano, não é expectável que aceite abandonar o controlo político do território. As várias tentativas de reconciliar a AP e o Hamas não tiveram êxito. Antes da cimeira, um dos líderes do movimento, Sami Abu Zuhri, recusara “qualquer presença de forças de segurança estrangeiras, não palestinianas, no território”.
A proposta árabe revela também divisões e cautelas no mundo árabe. Vários estados desconfiam do Hamas e do seu modelo de islamismo popular revolucionário, afirmando que não irão financiar qualquer proposta, sem o desarmamento do Hamas. E a ausência de Mohammed bin Salman, príncipe herdeiro da casa de Saud, é relevante, pois, sem a liderança e o total envolvimento da Arábia Saudita, qualquer plano para Gaza está ferido.
Israel já condenou a proposta árabe, por, alegadamente, não resolver os problemas no terreno e depender da AP e da Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinianos (UNRWA”, que acusa de corrupção, de apoio ao terrorismo e de falha na resolução do problema.
Antes da cimeira, Trump suavizara a sua abordagem, dizendo que não “iria forçar o seu plano”. Reiterou que pensa que o seu plano funcionará: “É um bom plano, mas não o vou forçar. Vou recomendá-lo e esperar.” Porém, ameaçou acabar com a ajuda financeira ao Egito e à Jordânia, se não concordassem com o realojamento de Palestinianos. E é provável que volte à carga.
Enquanto diplomatas egípcios apresentam e discutem o plano em várias capitais e o levam à cimeira da OCI, que inclui, além de todos os países árabes, muitos outros estados muçulmanos não árabes, á quem considere que plano de Trump foi uma tática negocial, forçando outros a apresentarem propostas. O secretário de Estado americano, Marco Rubio, avisou, não sem razão: “Nenhum de todos estes países que dizem defender tanto os Palestinianos quer receber refugiados, nenhum tem um historial de fazer algo por Gaza.”
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Apesar das patentes fragilidades e discordâncias, o plano mostra que a causa da paz em Gaza não está na bruma do tempo e que o esforço valerá a pena.

2025.03.06 – Louro de Carvalho

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