terça-feira, 4 de março de 2025

Não há quem tire consequências políticas da crise instalada

 
Não haja ilusões. Ao invés do que assegura um dos protocandidatos à Presidência da República, a crise política está instalada e não é verdade que não venha a existir, mas não se pode acusar o país de um alfobre de irresponsáveis.
A situação que envolve o primeiro-ministro (PM), para lá dos eventuais ilícitos que a Procuradoria-Geral da República (PGR) deva mandar investigar, através de procurador-geral adjunto no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o foro competente, e de possíveis atos de procuradoria ilícita que a bastonária da Ordem dos Advogados (OA), Fernanda Pinheiro, mandou averiguar, é uma questão política que ultrapassa a responsabilidade pessoal do PM e das suas relações com empresas que criou, geriu, em que participou e que alienou, bem como a daquelas a quem as mesmas prestaram serviços jurídicos ou de outra consultoria técnica e tecnológica.
A questão é política, porque afeta a governança do país, em termos de credibilidade, de isenção e de eficácia. Foi o próprio chefe do governo que a avolumou, ao desvalorizar o profissionalismo de órgãos de comunicação social que denunciaram as putativas irregularidades, bem como a capacidade de combate político dos partidos da oposição. Provavelmente, a questão teria morrido na praia, se Luís Montenegro tivesse, desde logo, assumido eventuais erros cometidos, emendasse a mão e pedisse desculpas públicas.
Pelo contrário, a opinião pública e os partidos com assento parlamentar foram mimados com asserções de honestidade, de sinceridade, de cumprimento da lei e dos princípios éticos, a par de muitas omissões, de explicações insuficientes, inexatas e, algumas, sem interesse.
A este respeito, António Costa, em sua crónica de 3 de março, no ECO online, sob o título “O Pântano (outra vez)”, afirma que “Luís Montenegro acumulou o vencimento de primeiro-ministro e [de] líder do poder executivo do Estado com os rendimentos de empresas privadas” – impensável num político e jurista tão experiente, e que “a responsabilidade por uma crise é apenas sua”. Em seu entender, o que está em causa, mais do que o PM haver tomado alguma decisão que beneficiou empresa que pagou (e ainda) paga avenças a uma empresa que também era e é sua, é “o facto de receber essas avenças”. É isto que faz a diferença entre o conhecimento que havia aquando da apresentação da moção de censura pelo partido Chega, que não foi aprovada, e o conhecimento que foi tornado público, depois, e que deu azo, a 1 de março, à solene comunicação do chefe do governo ao país, na solidária presença dos membros do Conselho de Ministros, que tinham sido convocados, extraordinariamente, para uma sessão que decorrera momentos antes.   
A conta-gotas, o chefe do governo “foi revelando o que jurava não revelar”. Teria de dizer, da Spinumviva, os clientes que tinha tido, os trabalhados que fazia e quem os fazia. Porém, o que muda tudo, na ótica do colunista do ECO, é ter a sociedade continuado a “receber avenças, que só se explicam por causa de Luís Montenegro”. Assim, “a venda da empresa aos filhos, na prática, é o reconhecimento disso mesmo”. E explica, em Inglês: “Um proprietário beneficiário final é o indivíduo que, em última análise, se beneficia de uma empresa ou ativo, ou que tem o controlo efetivo final sobre ele.”
Nestes termos, o PM não sai politicamente da situação com facilidade.
A extinção da empresa ou a passagem do capital para os filhos é um mecanismo jurídico, que não resolve o lado político. O PM tinha – o que se esperava, quando fez saber que iria falar ao país – “apenas um caminho decente, a apresentação de uma moção de confiança”, como sustenta António Costa, e a demissão do governo, como consequência, se ela fosse aprovada.
Porém, depois de confessar um rol de inocências, de méritos seus, da família e das empresas que geriu e que serviu, de queixumes, de propaganda governativa – por exemplo, há 59 mil casas públicas em construção (exagero), a dívida externa é de 60% do produto interno bruto (PIB), o que não é certo (a dívida externa bruta é de 147,7% do PIB; e a dívida pública é de 95% do PIB) –, passou a responsabilidade aos partidos da oposição, no sentido de interpretarem a vontade popular. Isto é, para o governo cair, terão os partidos da oposição, nomeadamente, o Partido Socialista (PS) de apresentar uma moção de censura. Caso não o façam, o governo poderá, então, apresentar uma moção de confiança.  
Ora, no dizer do colunista referido, o PM desafiou “a oposição a uma moção de censura, como se o seu resultado fosse igual a uma moção de confiança”, ou seja, está só à espera do dia em que, “depois de uma demissão do governo, pode culpar terceiros por eleições que ninguém quer”.
O Partido Comunista Português (PCP), ao anunciar a sua apresentação de uma moção de censura e de ter urgido o agendamento da sua discussão e votação parlamentar, fez o jeito ao governo, que não cai, porque o PS resolveu votar contra qualquer moção de censura, mas, contraditoriamente, está disponível para votar contra uma moção de confiança que o governo apresente.
É certo que há uma diferença: a moção de confiança é iniciativa do governo, que não a quer tomar, para não ser acusado de responsável por novas eleições, que deseja, mas que diz não querer, em nome da estabilidade, passando, assim a responsabilidade para a oposição; a moção de censura é iniciativa de um ou mais partidos, o que vitimiza o governo, ficando a oposição responsável por eventuais eleições, o que o PS não quer.          
Porém, no estado em que estão as coisas, a responsabilidade da crise é, unicamente, do primeiro-ministro, não dos ministros (de nenhum ministro), nem da oposição. Não obstante, o aparato de que se rodeou o chefe do governo, na dita comunicação ao país, pode fazer passar para a opinião pública a perceção de que os culpados da crise são os jornalistas e os partidos da oposição.       
António Costa sustenta que o secretário-geral do PS “não sai bem disto, também”. O homem frontal mostrou receio de eleições. Questiona a integridade e a idoneidade do PM, ao receber um salário, do Estado e de privados, mas não retira as consequências políticas.
Neste campo, está como o PM, como a ministra da Saúde e como a ministra da Administração Interna. E o colunista do ECO lamenta: “Sabe-se que, mesmo vencendo eleições, [Pedro Nuno Santos] teria dificuldade para governar, mas há coisas mais importantes. Simplesmente, porque venceu a tática. Perdeu o governo e o país. A moção de censura do PCP não vai passar. O pântano, esse, vai ficar.”
***
Depois de algumas críticas de dentro do PS, nomeadamente do eurodeputado Francisco Assis, sustentando que o partido deve apresentar uma moção de censura, o secretário-geral anunciou que, depois de se avistar com o Presidente da República (PR), o PS vai apresentar, na Assembleia da República (AR) um requerimento potestativo para a criação de uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) à atividade do primeiro-ministro, não descartando a subsequente apresentação de moção de censura ao governo. E, talvez para dar uma lição de correção política, é que fala, previamente, com Marcelo Rebelo de Sousa, o que o PM não fez, antes da sua comunicação ao país, supostamente, deixando amuado o PR.  
Por mim, entendo que o PM deveria ter apresentado o pedido de demissão ao PR e, como não o fez, o PS deveria apresentar moção de censura ao governo, enjeitando a responsabilidade pela crise, que o PM tentou passar para a AR e, em especial, para a oposição. Ora, Pedro Nuno Santos, além de líder do maior partido da oposição, é considerado o líder da oposição.
***
O Jornal de Notícias (JN), de 3 de março, deu voz, sobre a matéria, a João Cardoso Rosas, professor de Filosofia Política, e a Paula Espírito Santo, professora de Ciência Política.
O primeiro entende que o problema político não se resolveu com a transferência da Spninumviva para os filhos, pois não há nenhuma explicação convincente e essa transferência só revela que a situação anterior não era aceitável. Sustenta que o PS deveria apresentar uma moção de censura, por uma questão de princípio, e que só o não faz por uma questão de tática política. E considera que o governo da Aliança Democrática (AD) sai mal da situação, pois, estando o PM sob suspeita, é fácil inferir que outros membros do governo também o estejam ou venham a estar.
Devo lembrar que os jornais falaram em várias dezenas de empresas com ligações de participação e de serviços a membros do atual governo.                  
Por seu turno, Paula Espírito Santo aponta que a referida empresa é de filhos que vivem com o PM e que têm economia doméstica. Além disso, foi por influência do pai que “a empresa constituiu a carteira de clientes”, tendo sido dele “a iniciativa principal de todo o negócio”.
Sobre a apresentação de moções que implicam a queda do governo, a professora de Ciência Política considera que “o que está em causa é até que ponto os partidos consideram a situação legítima e eticamente correta”. Ora, uma moção de confiança (e eu penso que também uma moção de censura – só muda a iniciativa) “vai implicar que haja clareza na forma como o PS e os outros partidos da oposição se identificam com a conduta do governo e do primeiro-ministro”.
Quanto às repercussões da crise no governo da AD, Paula Espírito Santo sustenta que tudo depende de o PM querer ou não “ampliar a situação para os restantes membros do Executivo”.
Penso que a crise é da responsabilidade do PM. Contudo, há a solidariedade de cada membro do governo com o governo e com o PM. E ela foi publicamente demonstrada a 1 de março.
***
Também a 3 de março, no Expresso online, o jornalista João Pedro Henriques, em artigo de opinião, sob o título “Como vamos de perceções, Dr. Montenegro?”, assinala as “trapalhadas” em o PM “se meteu, por causa dos seus negócios”, a partir de reais ou de supostas conversas de café, em ambiente acalorado, “entre alguns dos membros do povo ali presentes”.
Sabendo que o PM “é um dos principais apreciadores nacionais de perceções”, dá nota de algumas das boas, por exemplo: “Pois, ele passou aquilo para a mulher e agora para os filhos. Continua tudo em família. […] Pelos vistos, não lhe chega só o ordenado de primeiro-ministro!
A assegurar que nada ali fora inventado, referiu que da discussão fez parte “aquela circunstância de uma das empresas de quem a sua família recebe uma avença atualmente estar, também atualmente, à espera de uma decisão do seu governo, sobre a renovação de uma concessão de jogo (o grupo Solverde)”.
Em contraponto, salienta que Pedro Nuno Santos, também foi objeto de crítica. Os populares “não conseguiram alcançar a sofisticada genialidade tática e estratégica do líder socialista, quando este anunciou, com trinta segundos de intervalo”, as seguintes decisões: “1. Manda o governo abaixo (se este apresentar uma moção de confiança); 2. mantém o governo em funções (inviabilizando a moção de censura que o PCP, entretanto, já entregou).”
Sustenta que as “várias considerações” que ouviu “foram, todas fatais e definitivas” e que nenhuma delas foi “particularmente primorosa” para a imagem do chefe do governo. E advertiu que “isto, no povo, não é como nos tribunais: das suas palavras não há recurso”.
Depois, frisou que “a ideia instalada” ou a “perceção” é de que o PM “é beneficiário, através da sua família mais próxima (mulher e filhos e, agora, só filhos), de uma remuneração mensal extra de uma empresa interessada numa decisão do governo a que o primeiro-ministro preside”.
O PM garantiu que não tomará parte em decisões que venham a beneficiar qualquer das empresas em causa. Porém, esquece que todas as decisões dos membros do governo são tomadas em nome do governo que ele lidera, quando não forem deliberações do Conselho de Ministros a que ele preside. E, ainda que delegue a presidência num dos ministros de topo, a responsabilidade política é sua e é indelegável (não se delegam responsabilidades políticas, apenas competências).  
Admite o colunista que poderá custar a Luís Montenegro “ver-se livre da sua empresa”, porém “ninguém o obrigou a ser primeiro-ministro”. E, citando Poiares Maduro, lembrou que a exclusividade imposta, na lei, ao PM “não visou impor a ideia de que o cargo só pode ser exercido sob a forma de sacerdócio, com dedicação total, quase como se tratasse de uma vocação religiosa”, mas que um PM “não pode ter outra fonte de rendimentos que não a auferida pelo cargo que exerce (tirando direitos autorais)”.
Trata-se do artigo 6.º da Lei n.º 52/2019, de 31 de julho, que “aprova o regime do exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos”.
Por fim, quanto a perceções, sublinha que “não valem, só quando nos dão jeito, sendo para descartar, quando não dão”. Portanto, “se forem falsas, combatem-se; se forem verdadeiras, aceitam-se”. E adverte que, se o PM não reconhecer isto, poderá contar com o dito: “Quem pelas perceções mata pelas perceções morre”. É a paráfrase do aforismo popular: “Quem com ferros mata com ferros morre.”
***
Repito-me: o governo, assumindo, solidariamente com o PM, a responsabilidade pela crise, deveria apresentar uma moção de confiança. Como não o fez, o PS deveria apresentar uma moção de censura, não aceitando a transferência da responsabilidade para si e para a AR.
A clarificação política faz-se em nome de princípios políticos, não por conveniências táticas. Deixar-se o governo ou a oposição fritar em lume brando não reforça politicamente ninguém.
Quer a moção de confiança quer a moção de censura fariam cair o governo. Porém, era um teste à capacidade de o PR saber e quere negociar, em nome da estabilidade, com os partidos uma solução governativa no atual quadro parlamentar. Ou, então, não renunciando à sua abstrusa doutrina de que a eleição recai na figura do PM (não no partido ou coligação que a venceu), aceitaria ficar na História como o PR mais dissolvente, em democracia representativa civilista.

2025.03.04 – Louro de Carvalho


Sem comentários:

Enviar um comentário