quinta-feira, 27 de março de 2025

Os planos dos EUA para anexar a Gronelândia são “reais”

 
“Temos que ficar com ela.” Foi assim que o presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Donald Trump, se referiu à Gronelândia, em entrevista ao podcaster “Vince Coglianese”, a 26 de março. A declaração representou uma escalada nas turbulentas relações entre os EUA e a ilha.
Nos últimos meses, Donald Trump fez diversas declarações sobre o território, que pertence à Dinamarca, mas possui governo autónomo e discute a possibilidade de independência. Segundo ele, a Groenlândia tem um papel estratégico para a segurança dos EUA e de outros países. “Precisamos da Groenlândia, para a segurança internacional. Precisamos dela”, afirmou, na entrevista, vincando: “Odeio colocar [a questão] desta forma, mas temos que ficar com ela.”
A declaração vem dias antes da visita do vice-presidente James Davis Vance à ilha, devendo visitar, no dia 28, a base militar americana na região, acompanhado da esposa, Usha Vance, do conselheiro de Segurança Nacional, Mike Waltz, e do secretário de Energia, Chris Wright.
Se as falas de Trump sobre tomar a ilha já vinham a gerar polémica, a visita de Vance ao território, sem convite oficial, foi mal recebida pelas autoridades da Gronelândia e da Dinamarca.
A primeira-ministra dinamarquesa, Mette Frederiksen, classificou a visita como “pressão inaceitável”. E o primeiro-ministro da Gronelândia, Mute Egede, classificou a iniciativa como “interferência estrangeira”  e recusou a encontrar-se com a delegação norte-americana.

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O presidente da Rússia, Vladimir Putin afirmou, a 27 de março, que os planos dos EUA para anexar a Gronelândia são “reais” e mostrou-se preocupado com a possibilidade de o Ocidente usar o Ártico como trampolim para futuros conflitos. “É um erro profundo pensar que isto é alguma conversa extravagante da nova administração americana. Não é nada disso”, afirmou o presidente russo, citado pela Agence France-Presse (AFP), num fórum do Ártico, na cidade de Murmansk, no Norte da Rússia, vincando: “Estamos a falar de planos reais do lado americano, no que diz respeito à Gronelândia. Estes planos têm raízes históricas de longa data.”
Segundo Vladimir Putin, embora a Rússia não esteja diretamente envolvida na questão da propriedade da Gronelândia, o Kremlin está preocupado com o facto de os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), em geral, “estarem cada vez mais a designar o extremo Norte como um trampolim para possíveis conflitos”.

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Por outro lado, o Kremlin sublinhou, a 26 de março, que também tem interesses estratégicos no Ártico, depois de Donald Trump ter ameaçado comprar a Gronelândia. Esta manifestação russa de interesse visa proteger tanto a própria Rússia como o seu grande aliado, a China. 
Há, pois, um novo jogador na dinâmica instalada entre os EUA e a Gronelândia: a Rússia. Depois de Donald Trump haver afirmado, com toda a clareza, querer comprar a maior ilha do Mundo – coberta de gelo em 80% e com a exígua população de cerca de 57 mil habitantes –, o Kremlin fez saber que, não só tem “interesses estratégicos” na região, como está a acompanhar os “desenvolvimentos dramáticos” em torno da Gronelândia.
A Rússia tem interesse, desde há muito tempo, e cada vez mais. É mesmo “o país que tem mais interesse no Ártico”, como sublinha o major-general Isidro de Morais Pereira, lembrando que é “um dos países ribeirinhos” do Ártico. E o major-general Agostinho Costa sustenta que “é o país que, no Ártico, tem a maior prevalência ou que é o mais relevante, basta olhar para o mapa”.
Na verdade, a Rússia, logo que o degelo do Ártico foi significativo, começou a sulcar as suas águas, para o que dispõe de cerca de uma cinquentena de navios quebra-gelos. E, a 27 de março, um novo navio quebra-gelo juntou-se à Atomflot, como assegurou Likhachov, à agência de notícias TASS, à margem do Fórum Internacional do Ártico, já referido.
O chefe da Rosatom (Companhia Estatal de Energia Nuclear) referiu que o navio “Yakutia”, tendo cumprido todos os testes necessários efetuados no último mês, zarpará de São Petersburgo, no princípio de abril, com a missão de se juntar aos outros navios, no período mais difícil, devido ao estado da cobertura de gelo.
O “Yakutia” é o quarto navio quebra-gelo do chamado “Projeto 2220” e foi fabricado pelo estaleiro Báltico de São Petersburgo, tendo a quilha sido colocada em maio de 2020. O navio foi lançado ao mar em novembro de 2022.
Assim, a Rússia passa a dispor de quatro novos navios quebra-gelos movidos a propulsão nuclear, além de outras quatro embarcações do mesmo género que já faziam parte da frota do Báltico. 
Agora, a Rússia possui a maior frota de quebra-gelos do Mundo, com 34 navios, a gasóleo, e oito, de propulsão nuclear. Além disso, estão a ser construídos, atualmente, mais dois quebra-gelos nucleares: o “Chukotka” e o “Leninegrado”, aos quais se deve juntar o “Estalinegrado”.
A frota russa de navios quebra-gelos está a tornar-se cada vez mais importante, devido às alterações climáticas, que favorecem o desenvolvimento da rota do Mar do Norte, um percurso alternativo transporte marítimo entre a Europa e a Ásia.
Um navio tem de percorrer 10600 quilómetros a Norte do porto russo de Murmansk até ao porto de Xangai, na República Popular da China, enquanto, se optar por atravessar o Suez, tem de percorrer 17700 quilómetros.
A travessia do Suez demora, em média, 35 dias, enquanto a rota naval promovida pela Rússia pelo Norte permite poupar entre 10 e 12 dias.
Portanto, não foi por acaso, que o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peslov, lembrou, a 26 de março, que o Ártico faz parte dos interesses nacionais estratégicos da Rússia e que está de olho nas movimentações à volta da Gronelândia. “Estamos a acompanhar de perto estes desenvolvimentos dramáticos – graças a Deus, ainda não foram além das declarações”, disse aos jornalistas.
O vincar da posição russa nesta fase deve-se, como explicam os especialistas ouvidos pela CNN Portugal, a motivos estratégicos e económicos, depois de Donald Trump, ainda presidente eleito dos EUA, ter manifestado vontade de comprar a Gronelândia. Com efeito, de acordo com o major-general Agostinho Costa, “a principal rota marítima no Ártico ainda é controlada pela Rússia”. E, como aponta o major-general Isidro de Morais Pereira, “a quantidade de gelo é cada vez menos, o que torna possível usar o Ártico para a navegação comercial, durante o ano”, encurtando “o trânsito dos navios que vêm, por exemplo, da China e do Japão para a Europa, [para o] Canadá e [para os] EUA.
Maior proximidade, maior rapidez e menores custos são as vantagens do uso das águas do Ártico para o comércio internacional, à medida que o gelo vai desaparecendo. “Os Russos e os Chineses preparam-se para tirar partido desta rota marítima do Ártico, que não só permite uma redução, no mínimo, em 10 dias entre os portos chineses e europeus, como é mais curto e mais rápido, mais barato”, explicita o major-general Agostinho Costa, para quem os interesses russos crescem, sobretudo, depois de os Norte-americanos terem encerrado as rotas comerciais terrestres, para “impedir que os produtos chineses chegassem à Europa”, após o início da guerra na Ucrânia, ficando os Americanos, agora, “a tratar da rota marítima, que envolve o Canadá e o Panamá”.
A Rússia não quer proteger-se só a si e aos seus interesses, mas também ao seu grande aliado, a China. Na verdade, as ameaças de Donald Trump não são apenas “uma manobra de diversão”, mas “um objetivo estratégico muito bem definido para bloquear ainda mais a China”, que é “um país enclausurado em termos estratégicos”.
A Rússia é um dos países que constitui o Conselho do Ártico, a par do Canadá, da Dinamarca, dos EUA, da Finlândia, da Islândia, da Noruega e da Suécia. A entrada da China nesta organização intergovernamental foi, inicialmente, impedida para, logo depois da invasão da Ucrânia, Moscovo e Pequim estreitarem os laços e passarem ambos a ser vistos como alvos pelos restantes países. “Isto são os EUA a tentar forçar a militarização do acesso ao Ártico”, assegura Tiago André Lopes, especialista em relações internacionais.
Porém, Moscovo quer impedir quaisquer avanços dos EUA sobre a Gronelândia, sobretudo, porque pretende manter o poder que tem na região. “A Rússia tem muito mais interesse na manutenção do status quo do que na transição da Gronelândia para os EUA”, observa o major-general Isidro de Morais Pereira, segundo o qual as declarações do Kremlin surgem para “marcar posição”: “A Rússia está a dar sinal de vida e a dizer que está lá e que tem interesse estratégico no Ártico”, sublinha, sustentando que a compra da região autónoma dinamarquesa daria aos EUA “um maior controlo sobre o Ártico”.
É de anotar que os EUA não são banhados pelas águas árticas, mas compraram o Alasca, que fica junto ao Ártico; detêm uma poderosa base aérea militar na Gronelândia, mas isso não lhes dá acesso ao Ártico por via marítima, nem por via terrestre. Por isso, é fundamental a Rússia marcar posição e evitar que os EUA não aumentem a sua importância, em termos do contexto do Ártico.
Para lá do encurtar das rotas comerciais, o Ártico tem sido alvo de grandes interesses, por parte das potências mundiais, pelas riquezas dos fundos marinhos, como o hidrocarboneto e outros metais para fazer funcionar as indústrias, sobretudo, no horizonte da transição energética. Só a Gronelândia é uma “mina a céu aberto, quando o gelo derreter” por completo e “um dos sítios do Mundo com mais terras raras”, o que interessa aos EUA, como explicou o tenente-general Marco Serronha à CNN Portugal.
Nesta polémica, é certo que, se a Dinamarca quiser vender a Gronelândia, a Rússia não conseguirá, na prática, fazer nada para evitar o negócio, a não ser que pretenda entrar numa guerra.
Porém, se Donald Trump não conseguir, pela via negocial, a posse da Gronelândia e recorrer ao uso do vetor militar, para consumar o seu desejo, como já referiu, só há uma forma de o contrariar: é a Rússia lançar uma operação militar, o que trará consequências imprevisíveis.
No entanto, não se acredita que tal venha a acontecer, pois, conforme vinca o major-general Agostinho Costa, uma intervenção dos EUA na Gronelândia – que integra o Reino da Dinamarca, que é um país da União Europeia (UE) e da Aliança Atlântica – significaria “um país da NATO a invadir outro país da NATO e não se pode invocar o artigo 5.º.
Tiago André Lopes sublinha que Moscovo “formalmente, nada pode fazer”. “Não tem nenhuma forma de securitizar a Gronelândia, [o que] pode é securitizar as suas rotas, se o quiser fazer”, aponta o especialista, levantando a forte possibilidade de a Rússia vir a desenvolver “patrulhas conjuntas” no Ártico, com a China, que estará interessada, “porque lhe dá mais um pé”, na região.
Para Agostinho Costa, a Rússia “fará tudo para que tal política não se implemente”. Já Isidro de Morais Pereira não descarta que os EUA possam tentar “um negócio” com a Dinamarca, para ganharem “maior presença” na região autónoma dinamarquesa. Mas, daí a conquistarem a ilha seria pôr o Mundo do avesso e voltar ao tempo de antes da I Guerra Mundial – “o regresso ao direito da força para regular as relações entre estados”.
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A UE diz, a pé firme, que não deixará que os EUA ocupem a Gronelândia, pelas armas. Porém, se a Dinamarca e a Gronelândia – ou somente a Gronelândia (importa saber o que pensa a sua população) – virem vantagens na cedência em termos de relação comercial, a UE nada poderá fazer. E pergunto-me se a UE manterá igual postura, face a postura equivalente da Rússia.
São os recursos marinhos, terrestres, subsolares e submarinhos que estão em jogo, bem como interesses geoestratégico de caráter genérico. Donald Trump tem em vista, além das terras raras, dos minerais e dos hidrocarbonetos, o petróleo e o gás natural e, sobretudo, o fortalecimento do sistema de defesa americano, através de radares e de mais bases militares, pois os radares ajudariam a identificar navios e submarinos, principalmente, russos, monitorizando as águas entre a Islândia, a Grã-Bretanha e a própria Gronelândia.

2025.03.27 – Louro de Carvalho


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