domingo, 2 de março de 2025

Que o governo não se vitimize, nem intimide: governe!

 

Pelas 20 horas do dia 1 de março, o primeiro-ministro (PM), a partir da sus residência oficial, fez uma declaração ao país, sem direito a perguntas da parte dos jornalistas, supostamente, em razão das notícias sobre a sua relação com empresas de consultoria jurídica e de consultoria técnica e tecnológica (ao serviço de outras empresas e serviços), mas, em especial, devido à notícia de que “a Solverde paga 4500 euros, por mês, à empresa da família de Montenegro”, um dos títulos da primeira página do Expresso, de 28 de fevereiro.

Como era de esperar, choveram as críticas da parte de comentadores, de observadores e, sobretudo, dos partidos políticos da oposição parlamentar. Isto, no rescaldo da não aprovação de uma moção de censura ao governo apresentada, há uma semana pelo partido Chega, com base na relação do PM com empresas em que tinha participação, que geria, que tutelava ou em que tinha interesses.

As explicações dadas na Assembleia da República (AR) pelo chefe do governo foram consideradas insuficientes pelos partidos da oposição, que só não aprovaram a moção, por razões táticas, ou seja, por não quererem eleições, neste momento, já que poderiam ser penalizados pelo eleitorado. Aliás, segundo alguns juristas, é ilegal (e nula) a venda de uma empresa a cônjuge em resultado de casamento no regime de comunhão de adquiridos. 

Entretanto, cedo foi noticiado que o PM falaria ao país no dia 1 de março, pelas 20 horas.

Eis que, a essa hora, as televisões deram em direto as imagens da saída dos ministros e das ministras de uma breve sessão do Conselho de Ministros, convocada extraordinariamente (para recolher apoio e solidariedade, como já tinha feito, com o núcleo duro governativo e partidário) e postarem-se como pano de fundo na sala onde Luís Montenegro iria falar ao povo.

Foi um espetáculo raro, da parte de um chefe do governo. A primeira ideia que me surgiu era a de uma atitude de intimidação ao eleitorado e às outras instituições democráticas. Porém, a seguir, imaginei-me brincalhão e vi aquilo como feira de vaidades, hipoteticamente de beldades (mau gosto); e, depois, até pensei ser mauzinho (Cruzes, canhoto!) e admiti, por momentos, tratar-se de um painel de gente de negócios, a ajuizar pelas notícias e por comentários sobre informação de que, alegadamente, muitos outros membros do governo também têm ou tiveram (enquanto governantes) participação significativa em empresas.

Recuso-me a pensar que tenha sido um ato de subserviência dos ministros e das ministras à personalidade do chefe, do género “Sim, senhor Primeiro-Ministro”.

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Na declaração do PM, ressalta a vitimização, a explicação do não necessário e a tentativa da transferência da responsabilidade da situação em que se envolveu para a AR, nomeadamente, para os partidos da oposição. 

Referiu que a AR reprovara uma moção de censura sobre a sua “vida profissional e patrimonial”, quando a moção foi sobre o seu estatuto político.

Depois, fez resenha fastidiosa do que realizou, a nível empresarial com a família, o que ninguém lhe pediu, mas sem esclarecer o óbvio: a relação de uma empresa avençada com empresa de que o PM é beneficiário, direto ou indireto; e o motivo da venda da sua quota à esposa, com quem está casado no regime de comunhão de adquiridos.    

E passou a acusar: “Lançaram-se e alimentam-se especulações para que o assunto nunca se encerre e se criem novas insinuações e novos pedidos de esclarecimento, sempre sob um culto de gravidade e [de] suspeição sobre o PM”, vincando que “é o ciclo vicioso que muitos desejam e de que muitos não querem sair”.

Sobre os benefícios e méritos que descreveu das empresas em causa, atirou: “Por mais que se explique isto, nunca quem não quer perceber vai dizer que entendeu a explicação.”

Não deixou por mãos alheias os créditos do mérito: “Tudo isto foi declarado por mim. Ninguém descobriu nada [foi obrigado a declarar nos termos da lei, mas há pormenores que escaparam, pelos visto]. Está tudo na minha declaração de interesses. Fui eu com os meus filhos, que criei a estrutura e a equipa que se especializou neste serviço. Não pratiquei nenhum crime nem tive nenhuma falha ética por isso.”

Sendo assim, por que motivo ameaçou pôr o lugar à disposição?

Até fiquei com pena dos filhos do abnegado chefe do governo. Tão competentes e especializados que são, não podiam ficar sem trabalho, só pelo facto de o pai ser líder do Partido Social Democrata (PSD) e ser o PM, em resultado da escolha dos eleitores!

Até o sistema político foi questionado: “Sinceramente, o nosso sistema político não aceita nem controla uma conciliação destas entre a vida familiar e a vida política? De uma assentada, querem políticos sem passado, e sem futuro na política e fora dela…”

Não deixa de ser curioso ter-se colocado na linha política “sadia” dos governantes anteriores, que estiveram sob as duras críticas do PSD, nestas matérias, quando era oposição: “Nunca cedi a nenhum interesse particular, face ao interesse público e geral, e assim continuará a ser. Sempre que houver qualquer conflito de interesses por razões pessoais ou profissionais não participarei nos respetivos processos decisórios. Eu e qualquer outro membro do governo, como confio fizeram todos os que nos antecederam nestas funções.”

Também quis dar uma lição de cultura cívica, de que, sinceramente (como o PM), não precisávamos: “Nós temos de confiar nas pessoas e nas instituições e, obviamente, confiar também na fiscalização institucional e democrática.”

Ao mesmo tempo, acusou o Partido Socialista (PS), que tem sido, taticamente, a muleta deste governo: “Tem sido particularmente elucidativa a posição do maior partido da oposição. Não resistiu a fomentar a desconfiança, a especulação, a insinuação. Não fala de mais nada, para que, depois, se possa dizer que não se fala de outro assunto.”

Não podia faltar uma incursão pela propaganda, a substituir o Ministro da Presidência, ao falar da cimeira com o Brasil e da “histórica visita do Presidente da França a Portugal” e, ao fazer a resenha de toda a obra feita, durante um ano, para clamar a plenos pulmões: “Portugal está Forte e recomenda-se!”

Sobre a sua postura política, enfatizou que tem estado, desde sempre, “em total exclusividade” (não era preciso dizê-lo: a lei obriga) e que sempre assegurou “a estabilidade política”.

Vitimiza-se: “A exposição a que fui sujeito, com a minha família, chegou a um limite que nunca imaginei.” Deixa de se vitimizar: “Não me queixo: “Sou primeiro-ministro, porque quis e porque os portugueses me confiaram essa honra. Sempre disponível para o escrutínio saudável e democrático. Não será por isso que fugirei à minha responsabilidade.”

Em todo o caso, fala determinada e magistralmente: “Mas não estarei aqui a qualquer custo. A situação política tem de ser clarificada, sem manobras táticas e palacianas.”

Aliás, já tinha apontado que “a crise política deve ser evitada, mas pode ser inevitável”. E, agora, lembrou-se de ser inclusivo: “O país precisa da responsabilidade do governo e da oposição.”

Quase a terminar, comunicou que a dita sua empresa familiar será, doravante, totalmente detida e gerida pelos filhos, mudará a sede e seguirá o seu caminho, exclusivamente, na esfera da vida dos novos donos, que “têm orgulho no que fizeram com os pais e os pais terão, certamente, orgulho no que eles forem capazes de fazer sozinhos”. É natural que haja este orgulho intergeracional, penso eu, mas tenho de sublinhar que, além da questão da propriedade da empresa familiar, havia a questão da sede, a casa do PM.   

E, em termos políticos, em vez de sustentar que não se demite ou, em alternativa, que apresentaria a demissão ou, ainda, que o governo faria uma declaração de política geral, perante a AR, e apresentaria uma moção de confiança, resolveu provocar os partidos políticos com representação parlamentar a declararem, “sem tibiezas, se consideram que, depois de tudo o que já foi dito e conhecido, o governo dispõe de condições para continuar a executar o Programa do Governo, como resultou, há uma semana, na votação da moção de censura”. Ou seja, o PM quer mais do mesmo. Só depois de se passar por essa eventual iniciativa parlamentar, é que o governo poderá propor uma moção de confiança.  

Por fim, afirmou que o governo e ele próprio estão para assegurar a estabilidade e o foco na resolução dos reais problemas do país, mas que só estarão com a confiança e com a legitimação do eleitorado. Sente que é esta a vontade do povo, cabendo à AR e aos partidos interpretá-la.

Em suma, dispensava-se esta declaração solene, bastando uma nota oficiosa.

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Segundo alguns observadores, a solene comunicação do PM teve dois momentos. O primeiro foi de vitimização, reiterando que já tinha dado todas as explicações sobre o caso, não podendo prejudicar o trabalho dos filhos, por serem donos e gerentes de uma empresa, e sustentando que, para alguns, as explicações nunca serão suficientes. O segundo foi uma provocação, hipócrita e ameaçadora, dizendo que “a crise política deve ser evitada”, mas advertindo que “poderá ser inevitável”. E deu o pontapé de saída para uma crise política, ao instar os partidos da oposição a declararem se acham que, com todas estas explicações, o governo tem condições para governar.

Sem essa resposta, o governo apresentará uma moção de confiança. 

Assim, na perspetiva de Luís Montenegro, o caso não desaparecerá por si, mas, apenas, com a realização de eleições. Isto, porque tanto os partidos mais à esquerda – o Bloco de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP) ou o Livre – como à direita, especialmente, o Chega, votariam contra a moção de confiança. O PS já se definiu: votará contra uma moção de confiança, de acordo com o que referiu o seu secretário-geral. E, face à anunciada apresentação de uma moção de censura pelo PCP, o PS também votará contra.

Percebe-se. O PS não quer ser responsabilizado pela queda do governo, pelo que rejeita a moção de censura (não é o PS de Vítor Constâncio, que ajudou à queda do primeiro governo de Cavaco Silva), mas, se o governo insistir na provocação direta, pela moção de confiança, diz votar contra, por não se sentir participante na iniciativa da queda do governo, sendo este a não querer governar.    

Resta saber o que pensa disto o Presidente da República (PR), nomeadamente, se, no momento atual assistimos “ao regular funcionamento das instituições democráticas”, o que levaria à demissão do governo e à nomeação de outro governo. Porém, a doutrina dos PR (especialmente, o atual) cristalizou pela dissolução da AR

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O PM aproveitou os 16 minutos da sua declaração, para só acrescentar um ponto ao que já se sabia: a empresa Spinumviva fica sob a gestão dos filhos e muda de sede.

No resto do tempo, condensou uma semana de notícias, criticou aqueles para quem “os esclarecimentos nunca serão suficientes”. Garantiu nunca ter cometido “um crime” e lembrou os “portugueses” que têm de “confiar nas pessoas e nas instituições e mecanismos de fiscalização”.

Até disse que explicara tudo, na discussão da moção de censura apresentada pelo Chega e que foi recusada, mas sem referir que a empresa familiar, logo ele, por fazer parte da estrutura da mesma, recebeu uma avença mensal de, pelo menos, uma empresa.

Nos últimos minutos, mimou-nos com uma amostra de campanha eleitoral: enumerou inúmeros dados e ações do governo que, na sua ótica, estão a transformar o país para melhor. Não resistiu a ler que estão a ser construídas 59 mil casas públicas, o que é exagero palmar.

No final, patenteou a ideia de que está cansado de governar em minoria, pelo que lançou o desafio aos partidos para dizerem se consideram que o governo tem condições para continuar a executar o seu programa. Ou seja, sujeitar-se-á a uma moção de censura ou apresentará uma moção de confiança – jogada que põe o ónus da continuação do governo nas mãos dos partidos, sobretudo, do PS, que tem, agora, de decidir se apoia ou vota contra, ajudando ou não a fazer cair o Executivo.

A Luís Montenegro, talvez algum dos assessores lhe devesse ter lembrado o velho aforismo: “À mulher de César não basta ser honesta, tem de o parecer.”

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Temos o primeiro-ministro mais minoritário do século, afetado por um “ciclo vicioso” que assume estar para ficar, pouco mais restando do que contar com o receio da oposição, quanto ao resultado de mais uma das eleições legislativas antecipadas que têm marcado a política portuguesa. Assim, o PM, rodeado dos ministros, após enumerar os processos da governação, da redução de impostos à construção de habitação pública, vincou a perceção de que a vontade maioritária dos portugueses é que a Aliança Democrática (AD) tenha condições para cumprir o seu programa.

Referindo a moção de confiança como o possível último recurso para garantir a resolução dos “reais problemas” do país, o PM colocou-se nas mãos da perceção que o PS e o Chega tenham da suposta “maioria silenciosa” (já se viu isto). O que um e outro dirão e farão, nos próximos dias, depende, mais do que da relação do PM com a Spinumviva, do que acreditarem resultar de umas eleições passíveis de reforçar quem se está no poder executivo.

Tudo o resto da comunicação ao país, incluindo a parte em que a vida da família ficou de portas mais escancaradas do que abertas, com considerações do pai acerca da aptidão dos filhos para a gestão e com a tentativa de vitimização de todo o agregado familiar, vale o que vale.

Como sucede desde o arranque da legislatura, e assim será até ao seu fim, prematuro ou não, tudo está nas mãos dos dois maiores partidos da oposição e da leitura que fizerem do que os eleitores pensam. Aliás, o PM, antes de garantir que nunca praticou “nenhum crime”, nem teve “nenhuma falha ética” (só lhe falta ser canonizado), admitiu que “quem não quer perceber vai dizer que não percebeu a explicação”.

Em suma, o importante seria que o governo governasse e que não desconfiasse do eleitorado, nem dos partidos, que não provocasse e que não intimidasse. Não queremos nada parecido com o trumpismo, nem com o putinismo.

2025.03.02 – Louro de Carvalho

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