Pelas 20
horas do dia 1 de março, o primeiro-ministro (PM), a partir da sus residência
oficial, fez uma declaração ao país, sem direito a perguntas da parte dos
jornalistas, supostamente, em razão das notícias sobre a sua relação com
empresas de consultoria jurídica e de consultoria técnica e tecnológica (ao
serviço de outras empresas e serviços), mas, em especial, devido à notícia de
que “a Solverde paga 4500 euros, por mês, à empresa da família de Montenegro”,
um dos títulos da primeira página do Expresso,
de 28 de fevereiro.
Como era de
esperar, choveram as críticas da parte de comentadores, de observadores e,
sobretudo, dos partidos políticos da oposição parlamentar. Isto, no rescaldo da
não aprovação de uma moção de censura ao governo apresentada, há uma semana
pelo partido Chega, com base na relação do PM com empresas em que tinha
participação, que geria, que tutelava ou em que tinha interesses.
As
explicações dadas na Assembleia da República (AR) pelo chefe do governo foram
consideradas insuficientes pelos partidos da oposição, que só não aprovaram a
moção, por razões táticas, ou seja, por não quererem eleições, neste momento,
já que poderiam ser penalizados pelo eleitorado. Aliás, segundo alguns juristas,
é ilegal (e nula) a venda de uma empresa a cônjuge em resultado de casamento no
regime de comunhão de adquiridos.
Entretanto,
cedo foi noticiado que o PM falaria ao país no dia 1 de março, pelas 20 horas.
Eis que, a
essa hora, as televisões deram em direto as imagens da saída dos ministros e
das ministras de uma breve sessão do Conselho de Ministros, convocada
extraordinariamente (para recolher apoio e solidariedade, como já tinha feito,
com o núcleo duro governativo e partidário) e postarem-se como pano de fundo na
sala onde Luís Montenegro iria falar ao povo.
Foi um
espetáculo raro, da parte de um chefe do governo. A primeira ideia que me
surgiu era a de uma atitude de intimidação ao eleitorado e às outras
instituições democráticas. Porém, a seguir, imaginei-me brincalhão e vi aquilo
como feira de vaidades, hipoteticamente de beldades (mau gosto); e, depois, até
pensei ser mauzinho (Cruzes, canhoto!) e admiti, por momentos, tratar-se de um
painel de gente de negócios, a ajuizar pelas notícias e por comentários sobre
informação de que, alegadamente, muitos outros membros do governo também têm ou
tiveram (enquanto governantes) participação significativa em empresas.
Recuso-me a
pensar que tenha sido um ato de subserviência dos ministros e das ministras à
personalidade do chefe, do género “Sim, senhor Primeiro-Ministro”.
***
Na
declaração do PM, ressalta a vitimização, a explicação do não necessário e a
tentativa da transferência da responsabilidade da situação em que se envolveu
para a AR, nomeadamente, para os partidos da oposição.
Referiu que
a AR reprovara uma moção de censura sobre a sua “vida profissional e
patrimonial”, quando a moção foi sobre o seu estatuto político.
Depois, fez
resenha fastidiosa do que realizou, a nível empresarial com a família, o que
ninguém lhe pediu, mas sem esclarecer o óbvio: a relação de uma empresa
avençada com empresa de que o PM é beneficiário, direto ou indireto; e o motivo
da venda da sua quota à esposa, com quem está casado no regime de comunhão de
adquiridos.
E passou a
acusar: “Lançaram-se e alimentam-se especulações para que o assunto nunca se
encerre e se criem novas insinuações e novos pedidos de esclarecimento, sempre
sob um culto de gravidade e [de] suspeição sobre o PM”, vincando que “é o ciclo
vicioso que muitos desejam e de que muitos não querem sair”.
Sobre os
benefícios e méritos que descreveu das empresas em causa, atirou: “Por mais que
se explique isto, nunca quem não quer perceber vai dizer que entendeu a
explicação.”
Não deixou
por mãos alheias os créditos do mérito: “Tudo isto foi declarado por mim.
Ninguém descobriu nada [foi obrigado a declarar nos termos da lei, mas há
pormenores que escaparam, pelos visto]. Está tudo na minha declaração de
interesses. Fui eu com os meus filhos, que criei a estrutura e a equipa que se
especializou neste serviço. Não pratiquei nenhum crime nem tive nenhuma falha
ética por isso.”
Sendo assim,
por que motivo ameaçou pôr o lugar à disposição?
Até fiquei
com pena dos filhos do abnegado chefe do governo. Tão competentes e
especializados que são, não podiam ficar sem trabalho, só pelo facto de o pai
ser líder do Partido Social Democrata (PSD) e ser o PM, em resultado da escolha
dos eleitores!
Até o
sistema político foi questionado: “Sinceramente, o nosso sistema político não
aceita nem controla uma conciliação destas entre a vida familiar e a vida
política? De uma assentada, querem políticos sem passado, e sem futuro na
política e fora dela…”
Não deixa de
ser curioso ter-se colocado na linha política “sadia” dos governantes
anteriores, que estiveram sob as duras críticas do PSD, nestas matérias, quando
era oposição: “Nunca cedi a nenhum interesse particular, face ao interesse
público e geral, e assim continuará a ser. Sempre que houver qualquer
conflito de interesses por razões pessoais ou profissionais não participarei
nos respetivos processos decisórios. Eu e qualquer outro membro do governo,
como confio fizeram todos os que nos antecederam nestas funções.”
Também quis
dar uma lição de cultura cívica, de que, sinceramente (como o PM), não
precisávamos: “Nós temos de confiar nas pessoas e nas instituições e,
obviamente, confiar também na fiscalização institucional e democrática.”
Ao mesmo
tempo, acusou o Partido Socialista (PS), que tem sido, taticamente, a muleta
deste governo: “Tem sido particularmente elucidativa a posição do maior partido
da oposição. Não resistiu a fomentar a desconfiança, a especulação, a
insinuação. Não fala de mais nada, para que, depois, se possa dizer que não se
fala de outro assunto.”
Não podia
faltar uma incursão pela propaganda, a substituir o Ministro da Presidência, ao
falar da cimeira com o Brasil e da “histórica visita do Presidente da França a
Portugal” e, ao fazer a resenha de toda a obra feita, durante um ano, para
clamar a plenos pulmões: “Portugal está Forte e recomenda-se!”
Sobre a sua
postura política, enfatizou que tem estado, desde sempre, “em total
exclusividade” (não era preciso dizê-lo: a lei obriga) e que sempre assegurou
“a estabilidade política”.
Vitimiza-se:
“A exposição a que fui sujeito, com a minha família, chegou a um limite que
nunca imaginei.” Deixa de se vitimizar: “Não me queixo: “Sou primeiro-ministro,
porque quis e porque os portugueses me confiaram essa honra. Sempre disponível
para o escrutínio saudável e democrático. Não será por isso que fugirei à minha
responsabilidade.”
Em todo o
caso, fala determinada e magistralmente: “Mas não estarei aqui a qualquer
custo. A situação política tem de ser clarificada, sem manobras táticas e
palacianas.”
Aliás, já
tinha apontado que “a crise política deve ser evitada, mas pode ser inevitável”.
E, agora, lembrou-se de ser inclusivo: “O país precisa da responsabilidade do
governo e da oposição.”
Quase a
terminar, comunicou que a dita sua empresa familiar será, doravante, totalmente
detida e gerida pelos filhos, mudará a sede e seguirá o seu caminho,
exclusivamente, na esfera da vida dos novos donos, que “têm orgulho no que
fizeram com os pais e os pais terão, certamente, orgulho no que eles forem
capazes de fazer sozinhos”. É natural que haja este orgulho intergeracional,
penso eu, mas tenho de sublinhar que, além da questão da propriedade da empresa
familiar, havia a questão da sede, a casa do PM.
E, em termos
políticos, em vez de sustentar que não se demite ou, em alternativa, que
apresentaria a demissão ou, ainda, que o governo faria uma declaração de
política geral, perante a AR, e apresentaria uma moção de confiança, resolveu
provocar os partidos políticos com representação parlamentar a declararem, “sem
tibiezas, se consideram que, depois de tudo o que já foi dito e conhecido, o governo
dispõe de condições para continuar a executar o Programa do Governo, como
resultou, há uma semana, na votação da moção de censura”. Ou seja, o PM quer
mais do mesmo. Só depois de se passar por essa eventual iniciativa parlamentar,
é que o governo poderá propor uma moção de confiança.
Por fim,
afirmou que o governo e ele próprio estão para assegurar a estabilidade e o
foco na resolução dos reais problemas do país, mas que só estarão com a confiança
e com a legitimação do eleitorado. Sente que é esta a vontade do povo, cabendo
à AR e aos partidos interpretá-la.
Em suma,
dispensava-se esta declaração solene, bastando uma nota oficiosa.
***
Segundo
alguns observadores, a solene comunicação do PM teve dois momentos. O primeiro
foi de vitimização, reiterando que já tinha dado todas as explicações sobre o
caso, não podendo prejudicar o trabalho dos filhos, por serem donos e gerentes
de uma empresa, e sustentando que, para alguns, as explicações nunca serão
suficientes. O segundo foi uma provocação, hipócrita e ameaçadora, dizendo
que “a crise política deve ser evitada”, mas advertindo que “poderá ser
inevitável”. E deu o pontapé de saída para uma crise política, ao instar os
partidos da oposição a declararem se acham que, com todas estas explicações, o
governo tem condições para governar.
Sem essa
resposta, o governo apresentará uma moção de confiança.
Assim, na
perspetiva de Luís Montenegro, o caso não desaparecerá por si, mas, apenas, com
a realização de eleições. Isto, porque tanto os partidos mais à esquerda – o Bloco
de Esquerda (BE), o Partido Comunista Português (PCP) ou o Livre – como à
direita, especialmente, o Chega, votariam contra a moção de confiança. O PS já se
definiu: votará contra uma moção de confiança, de acordo com o que referiu o
seu secretário-geral. E, face à anunciada apresentação de uma moção de censura
pelo PCP, o PS também votará contra.
Percebe-se.
O PS não quer ser responsabilizado pela queda do governo, pelo que rejeita a
moção de censura (não é o PS de Vítor Constâncio, que ajudou à queda do
primeiro governo de Cavaco Silva), mas, se o governo insistir na provocação
direta, pela moção de confiança, diz votar contra, por não se sentir participante
na iniciativa da queda do governo, sendo este a não querer governar.
Resta saber
o que pensa disto o Presidente da República (PR), nomeadamente, se, no momento
atual assistimos “ao regular funcionamento das instituições democráticas”, o
que levaria à demissão do governo e à nomeação de outro governo. Porém, a
doutrina dos PR (especialmente, o atual) cristalizou pela dissolução da AR
***
O PM
aproveitou os 16 minutos da sua declaração, para só acrescentar um ponto ao que
já se sabia: a empresa Spinumviva fica sob a gestão dos filhos e muda de sede.
No resto do
tempo, condensou uma semana de notícias, criticou aqueles para quem “os
esclarecimentos nunca serão suficientes”. Garantiu nunca ter cometido “um
crime” e lembrou os “portugueses” que têm de “confiar nas pessoas e nas
instituições e mecanismos de fiscalização”.
Até disse
que explicara tudo, na discussão da moção de censura apresentada pelo Chega e
que foi recusada, mas sem referir que a empresa familiar, logo ele, por fazer
parte da estrutura da mesma, recebeu uma avença mensal de, pelo menos, uma
empresa.
Nos últimos
minutos, mimou-nos com uma amostra de campanha eleitoral: enumerou inúmeros
dados e ações do governo que, na sua ótica, estão a transformar o país para
melhor. Não resistiu a ler que estão a ser construídas 59 mil casas públicas, o
que é exagero palmar.
No final,
patenteou a ideia de que está cansado de governar em minoria, pelo que lançou o
desafio aos partidos para dizerem se consideram que o governo tem condições
para continuar a executar o seu programa. Ou seja, sujeitar-se-á a uma moção de
censura ou apresentará uma moção de confiança – jogada que põe o ónus da
continuação do governo nas mãos dos partidos, sobretudo, do PS, que tem, agora,
de decidir se apoia ou vota contra, ajudando ou não a fazer cair o Executivo.
A Luís
Montenegro, talvez algum dos assessores lhe devesse ter lembrado o velho
aforismo: “À mulher de César não basta ser honesta, tem de o parecer.”
***
Temos o
primeiro-ministro mais minoritário do século, afetado por um “ciclo vicioso”
que assume estar para ficar, pouco mais restando do que contar com o receio da oposição,
quanto ao resultado de mais uma das eleições legislativas antecipadas que têm
marcado a política portuguesa. Assim, o PM, rodeado dos ministros, após
enumerar os processos da governação, da redução de impostos à construção de
habitação pública, vincou a perceção de que a vontade maioritária dos
portugueses é que a Aliança Democrática (AD) tenha condições para cumprir o seu
programa.
Referindo a
moção de confiança como o possível último recurso para garantir a resolução dos
“reais problemas” do país, o PM colocou-se nas mãos da perceção que o PS e o
Chega tenham da suposta “maioria silenciosa” (já se viu isto). O que um e outro
dirão e farão, nos próximos dias, depende, mais do que da relação do PM com a Spinumviva,
do que acreditarem resultar de umas eleições passíveis de reforçar quem se está
no poder executivo.
Tudo o resto
da comunicação ao país, incluindo a parte em que a vida da família ficou de
portas mais escancaradas do que abertas, com considerações do pai acerca da aptidão
dos filhos para a gestão e com a tentativa de vitimização de todo o agregado
familiar, vale o que vale.
Como sucede
desde o arranque da legislatura, e assim será até ao seu fim, prematuro ou não,
tudo está nas mãos dos dois maiores partidos da oposição e da leitura que
fizerem do que os eleitores pensam. Aliás, o PM, antes de garantir que nunca
praticou “nenhum crime”, nem teve “nenhuma falha ética” (só lhe falta ser
canonizado), admitiu que “quem não quer perceber vai dizer que não percebeu a
explicação”.
Em suma, o
importante seria que o governo governasse e que não desconfiasse do eleitorado,
nem dos partidos, que não provocasse e que não intimidasse. Não queremos nada
parecido com o trumpismo, nem com o putinismo.
2025.03.02 – Louro de Carvalho
Sem comentários:
Enviar um comentário